Tínhamos a melhor banda de rock do Rio Grande do Sul dos
anos 90. Digo isso sem soberba, até porque, se sobrava qualidade, faltou
persistência a nós para prosseguimos e provar todo esse talento. A Hímen
Elástico, nossa banda, era uma mistura muito bem azeitada de todas as
referências que nós, integrantes, tínhamos: punk rock, hip hop, quadrinhos, samba,
poesia concreta, música clássica, revistinha adulta, skate, hardcore, desenho animado. De tudo
um pouco e tudo misturado emaranhando as mentes de Clayton Reis, meu irmão e
principal vocalista/letrista; Leandro Reis Freitas, o Lê, primo backing assim
como eu e dono de sacadas e ideias sempre criativas; Cezar “Pereba” Castro, o
melhor batera dessas bandas sulistas depois de Pezão; e o baixo, vocais, and
other instruments by Lucio Agacê, irmão de Lê e também nosso primo, um
turbilhão de musicalidade e o verdadeiro músico entre nós – não à toa, o cara
que mais seguiu por esse caminho entre todos nós depois da “dissolução” da
Hímen, como carinhosa e debochadamente nos apelidávamos,.
Compúnhamos juntos e de forma contributiva, aliás, como
sempre fizemos desde a infância, crescendo juntos como guris e seres criativos.
Se a sintonia entre nós era sanguínea, geracional e afetiva, na guitarra a
Hímen ainda reservava um charme à parte: sempre tínhamos um guitarrista diferente.
Sabe a The The, a P.I.L., a This Mortal Coil, todos com guitarristas móveis?
Pois é: éramos iguais. Dependendo da ocasião, algum amigo, familiar, parceiro
ou até fã nosso era contemplado – desde que soubesse minimamente tocar o
instrumento, visto que nenhum de nós tinha essa capacidade.
Todas essas características faziam da Hímen uma banda sui
generis, que botava no chinelo em musicalidade Comunidade Nin-Jitsu, Cidadão
Quem, Papas da Língua, Tequila Baby... todas as bandas de sucesso do RS na
época. E nada dessa de banda “couve”: nossas músicas eram todas escritas por
nós mesmos. O que não era de nossa autoria, transformava-se assim, como as
versões de Ramones e Legião Urbana, que emendávamos com uma de nossas canções,
“Fórmula de Bhaskara’, ou as ousadas versões de “Ego Sum Abbas” de CarminaBurana ou da techno-punk Suicide para o formato baixo-guitarra-bateria.
Tínhamos inteligência musical e repertório suficiente para gravar um disco,
certamente. Mas o fato é que não tivemos muito tempo de “estrada”. Embora as
músicas ainda existam, foram poucos os que, ao contrário das bandas de sucesso
do rock gaúcho, bem mais persistentes, tiveram o “privilégio” de nos ouvir. A
não ser numa fatídica, gélida, perigosa e memorável noite de rock ‘n’ roll que
nós promovemos.
Não vou lembrar com detalhes, pois lá se vão 28 anos, mas
recordo que ensaiamos algumas horas na tarde daquele 13 de agosto de 1993 num
estúdio que alugamos no Bom Fim. Terminados os ensaios, ‘simbora lá pra nossa
casa, meio do caminho para nosso destino final, para comer alguma coisa feita
por minha mãe, dona Iara, que levou as mãos à cabeça ao saber para onde iríamos
depois dali: Alvorada. E à noite! E numa sexta-feira 13! E na cidade mais
perigosa do Estado! Isso porque, naquela semana, a imprensa havia noticiado,
assombrada, vários assassinatos cometidos em Alvorada em que os criminosos
haviam decapitado suas vítimas. Misto de irresponsabilidade e descomplicação
juvenil, obviamente, fomos. Seria a primeira apresentação ao vivo da Hímen
Elástico! Nossas músicas, nós no palco! Adrenalina, rock ‘n’ roll! Não íamos
perder de jeito nenhum a oportunidade de fazer aquele show, nem que, para isso,
cortassem nossas cabeças!
Rock a gente associa a algo quente, infernal, furioso,
certo? Neste caso, porém, substitua-se o calor dos infernos por um frio dos
infernos. Sim: afora todas as justificativas que inibiriam qualquer ser
minimamente ajuizado de não sair de casa, fomos nós, sob uma temperatura quase
negativa, pegar dois busões em direção a Alvorada para desespero de minha mãe.
Além de caminhar trechos com os instrumentos nas costas, sabe como é pegar
ônibus de noite num fim de semana, né? Chá de banco. E com aquele frio! Deu pra
ver que a galera não tinha grana, né? Táxi? Impossível, muito caro. Carro
próprio? Àquela época, nem carteira aqueles guris tinham. Mas se faltava grana,
assim como para com nossas músicas, sobrava criatividade – e um bocado de
ousadia, confesso. No caminho para a condução, Cezar, quieto e sempre atento,
encontrou uma garrafa de cachaça inteirinha e quase intocada. Que alento para
aquele frio! E tudo bem pegar a bebida numa ocasião como aquela, não fosse a
cachaça ser de um despacho. E acham que a gente se intimidou com o santo? Que
nada! A insolência falou mais alto. Afinal, estávamos indo para um show de
rock, caramba! O NOSSO show de rock.
Foi realmente uma apresentação digna a que fizemos no
Woodstock Bar. Com uma formação de guitarra, baixo, bateria, voz e backing
vocals, abrimos, como numa homenagem àquela sexta-feira 13 maldita, com “A
Marcha Fúnebre”, (sim: trata-se de "Sonata para piano Nº 2 em si bemol menor, Op. 35", de Chopin),
que havíamos ensaiado bastante durante o dia, embasbacando quem assistia.
Seguiram-se nossas músicas: “Ex”, “Grandes Lábios”, E Daí?”, “Clayton” e
outras. Nossas músicas.
Voltando a memória para antes do show, lembro de minutos
antes de entrar no palco – pela primeira vez. Senti aquele famoso frio na
barriga que todo músico ou ator diz ter antes de começar o espetáculo. Dei mais
uns goles na nossa cachaça enfeitiçada e, não sei por que cargas d’água,
arranquei o lenço que eu levava na cabeça e o amarrei numa das pernas, logo
acima do joelho. Depois, foi só transe. Dito assim, parece um ato infantil, sem
propósito ou até irrelevante. Mas aquilo era rock, bebês. Dadas as devidas
proporções (afinal, considerávamos os melhores do nosso território, mas não do
planeta), é a pulseira de spike dos metaleiros; é a camiseta rasgada de Sid
Vicious; é o figurino extravagante do Elton John; é o tênis All Star dos
Ramones; é o crucifixo do Ozzy. Não é a música, mas faz parte. Afinal, rock não
é só som: é atitude. É o momento em que se experencia algo transformador: deixa-se
de ser somente a si próprio para se tornar, pelo menos por minutos, sua própria
criação artística.
Com todo o cenário que se pintou, de perigos tanto do além
quanto da vida real, posso afirmar que subir num palco é como ter a sua cabeça
cortada e entregue numa bandeja para o público. Como no mito de Salomé, sedução
e morte se amigam. É quase um milagre. Ou dá pra explicar de outra forma a voz
do Clayton ter voltado perfeitamente na hora do show depois de emborcar a nossa
aguardente magiada? Deus, ou melhor, o Diabo, pai do rock, fez-se presente
naquele dia para ele tão especial para nos permitir que a nós também fosse. E
foi.
Não eram muitos na plateia, certamente. Mas que quem esteve
lá, viu uma verdadeira banda de rock, isso, viu. A melhor do Rio Grande do Sul
da década de 90, o que muitos nunca souberam. Mas a gente, “hermenêuticos”, sem
modéstia, sabemos que sim.
Ensaiávamos com alguma frequência, guitarristas iam e vinham no posto que nunca fora muito fixo, tínhamos um repertório interessante e consolidado e, a partir de determinado momento, começamos a ansiar por uma oportunidade de tocar em algum lugar. Numa dessas, o Lucio, que era o cara com mais contatos, mais atuação no underground de Porto Alegre e região, conseguiu um showzinho pra nós. Seria em Alvorada, um município próximo à capital, num pequeno festival, com umas quatro ou cinco bandas, num lugar chamado Woodstock Bar. O dia? Sexta-feira 13 de agosto.
Determinados a garantir um bom desempenho, uma apresentação digna, marcamos um ensaio extraordinário para o final da tarde do dia do show. O evento no bar começaria umas10h ou 11h da noite, faríamos nosso ensaio ali pelas seis da tarde, voltaríamos pra minha casa, comeríamos alguma coisa, sairíamos por volta das oito e ainda daria tempo tranquilamente. Nosso planejamento deu certo. Deu, em termos... O ensaio da tarde e, possivelmente, algum stress por ansiedade, levou embora minha voz. Me vi, a poucas horas do nosso momento mais importante, até então, sem a coisa que eu mais precisava naquela noite: a voz. Por sorte, pouco antes da nossa vez de subir no palco, um cara de uma outra banda, vendo a minha situação, recomendou que eu tomasse uma cachaça que era certo que minha voz voltaria. Não deu outra! Foi voltando, foi voltando e na hora do show, eu estava pronto.
Subimos ao palco exatamente à meia-noite da sexta-feira 13 (bom, tecnicamente, já seria dia 14, mas pra efeito da mística da ocasião, ganha mais efeito dramático se colocado assim). Pelo soturno da situação, abrimos os trabalhos com a "Marcha-fúnebre", mas já emendando com a nossa tradicional vinheta de abertura, "Carolina", que já desembocava na nossa eletrizante música de abertura, "Ex" e a partir daí foi só pancadaria. Um show bom, modéstia à parte, mas não apenas na minha opinião, uma vez que nosso som foi elogiado por integrantes de outras bandas e, de quebra, pela gatinha que eu estava azarando.
Numa noite tão envolta em elementos sombrios, uma sexta-feira caindo em13, início do show à meia-noite, marcha-fúnebre, voz indo e vindo e tudo mais, não é de se duvidar que um fato externo tenha influenciado todo o contexto daquela jornada. Ainda na nossa ida, assim que saímos da minha casa, no meu bairro, ao passarmos por uma encruzilhada, com um respeitável despacho, vasto, abastado, repleto de guloseimas, bebidas, pipocas, galinhas e tudo mais, um amigo da banda, o Tantã, sem nenhum temor, passou a mão numa garrafa de cachaça e tascou uma bela golada. O Pereba, não se fazendo de rogado, não hesitou e também caiu dentro da cachaça da macumba. Entre risos, zoeira e muita imaginação, fantasiando que as galinhas do despacho levantariam e nos perseguiriam reivindicando a oferenda roubada, seguimos dali para o local do show, no episódio que ficou conhecido entre nós como a "Cachaça Poltergeist".
Então, não é de se duvidar que, por trás de toda aquela noite mágica, mística, da própria cachaça que eu tomei no bar, estivessem agindo forças sobrenaturais, espíritos, entidades, orixás, que fizeram com que, no fim das contas, nos saíssemos bem dentro das nossas possibilidades e que tudo desse certo no lendário primeiro show da Hímen Elástico.
Hímen Elástico - "Fita p/ Não Comprometer"