A Jogada do Zico
Não é de hoje que
digo que meu interesse por futebol se restringe ao
Sport Club Internacional. Cada vez mais, ao longo dos anos, desde que, guri, fui
ao
Gigante da Beira-Rio, em meados dos anos 80, assistir a um Inter e
Coritiba levado por meu pai e meu irmão, percebo que não gosto
propriamente do esporte em si, mas do meu time. Minha impressão é
que, nascido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, como sou, se, por
acaso do destino, os irmãos Poppe não tivessem fundado uma
agremiação que sustenta, até hoje, o desígnio sincero de “clube
do povo”, e isso significasse que restasse apenas o arquirrival
como alternativa, não torceria por clube nenhum. Por isso, deve ser
estranho para quem está lendo ver no enunciado que, justamente, no
jogo que considero o da minha vida o Inter não seja um dos
disputantes. E pior: não só não ser jogo do Inter como ser do
Grêmio! E um 0 a 0?
Pois essa aparente
incoerência tem explicação, inclusive a ausência de gols. O
referido jogo, quartas-de-final do Campeonato Brasileiro de
1988-1989, tinha, sim, direta ligação com o Inter. E com a minha
vida, ou melhor, com a preservação dela. Grêmio e
Flamengo disputavam uma das vagas na semifinal do certame nacional, enquanto o
Inter enfrentava o Cruzeiro mirando a mesma finalidade. E o Inter
daquele ano, treinado por um jovem técnico chamado Abel Braga, tinha
boas chances de avançar. Contávamos com um centroavante goleador,
Nílson, um ponta-direita rápido e atrevido, Maurício, o goleiro da
Seleção Brasileira,
Taffarel, além de um meio campo e uma zaga de
qualidade. Depois de uma ótima campanha (1º colocado, com 47 pontos, considerando os dois primeiros turnos), estávamos embalados
e chegávamos às quartas confiantes.
Porém, avançar de
fase também significava, além do esperado aumento da dificuldade do
confronto, a possibilidade de dar um Gre-Nal inédito numa semifinal
de Brasileirão. Podíamos topar com o Grêmio logo à frente, e isso
era bem provável. Meu irmão e eu havíamos ido a todos os jogos
ocorridos no Beira-Rio naquela campanha, fosse na geral, fosse na
saudosa “coreia”, ora acompanhados de amigos e parentes, ora
somente nós dois. Não perdemos uma partida, e comungávamos da
mesma confiança de todos os colorados naquele ano. Entretanto, se
para meu irmão assustava a possibilidade de cruzar com o Tricolor na
fase seguinte, a mim, mais irresponsável, agradava. Queria a emoção
de derrotá-los num confronto inédito e sem precedentes na história.
Aconteceu de o jogo
de ida do Inter contra o Cruzeiro ser no Mineirão, em Belo
Horizonte, num domingo. Assistiríamos pela TV uma partida que
terminou em 0 x 0. Entretanto, no dia anterior, sábado, num fatídico
28 de janeiro de 1989, Porto Alegre receberia outra partida, ou seja,
nós dois não ficaríamos sem atração naquele fim de semana, mesmo
que não fosse diretamente do nosso time. Era o primeiro
enfrentamento da outra chave, o tal Grêmio e
Flamengo. Queríamos
ver de perto nosso possível adversário, fosse um ou outro. Então decidimos assistir ao jogo no estádio Olímpico. Na torcida do
Grêmio.
Isso não foi uma
escolha, bom que se diga. Tendo definido em cima do laço de irmos ao
jogo, não deu tempo de articularmos a compra de ingressos na seção
destinada aos torcedores visitantes, no anel superior. Aliás, seria
quase trocar seis por meia dúzia, uma vez que compartilhamos ainda
hoje quase da mesma antipatia com relação ao
Flamengo a que
dedicamos ao Grêmio. Resultado: usando camisetas de cores neutras
(dois colorados usarem azul, jamais!), eu e meu irmão, sem nenhum
outro colorado corajoso que tenha aceitado nos acompanhar, compramos
entradas para a geral do Olímpico e sentamos atrás de uma das
goleiras. Rodeados de gremistas. Ali assistimos ao jogo “na nossa”,
sem falsas manifestações de exaltação, como se fôssemos
torcedores pacatos e concentrados no evento.
Essa junção de
fatos fez toda a diferença para este episódio.
O estádio estava
inexplicavelmente não-lotado, e eu e meu irmão, sem dizer uma
palavra, nos entreolhamos com cumplicidade e espanto crítico como
que dizendo: “como esses gremistas conseguem não lotar o próprio
estádio num fim de semana e numa quartas-de-final de Brasileiro?”.
Assistimos a uma partida morna. Os adversários se equiparavam, o que
motivou um jogo de meio campo, com poucas oportunidades para os dois
lados. A não ser por uma jogada. Do
Zico.
Arthur
Antunes Coimbra, o
Zico, já era um dos maiores jogadores que
a história do futebol havia visto. Craque desde os anos 70, havia
comandado seu
Flamengo, em 1981, na conquista do título Mundial, e,
no ano seguinte, embora derrotado pela Itália, fez parte da
inesquecível Seleção Brasileira ao lado de Sócrates, Júnior,
Falcão, Éder e outros – para muitos, o melhor selecionado
canarinho de todos os tempos. Artilheiro, driblador, armador, exímio
cobrador de faltas. Jogador inteligente, rápido e habilidoso, havia
quem o apelidasse de “Pelé branco”, alcunha que por si só já
fala tudo. Mesmo a desclassificação para a França na Copa do Mundo
de 1986, a qual foi um dos principais responsáveis ao perder um
pênalti no segundo tempo que selaria a vitória brasileira, não
ofuscara a idolatria a
Zico. Somava-se a essa mitologia o fato de, um
ano antes da Copa do México, um zagueiro chamado Márcio
Nunes
ter-lhe propositadamente quebrado o joelho esquerdo numa jogada
covarde e criminosa. À época, de pré-informatização e de uma
medicina esportiva ainda pouco avançada, uma contusão como aquela
geralmente tirava um jogador para sempre dos gramados.
Zico, no
entanto, com persistência, curou-se, ajudou seu Mengo a ganhar o
Módulo Verde da Copa União, em 1987
(em cima do Inter!) e, naquele 1989, disputava mais uma vez a
temporada nacional.
E
ele estava em campo naquele sábado. Além dos jogos pela TV e da
Copa de 86 – a primeira a qual me lembro com clareza de assistir e
torcer –, já o tinha visto jogar duas vezes ao vivo, ambas contra
meu Inter. Gabo-me disso. Uma, em 1987, num 2 x 0 para nós (contra
um Flamengo treinado por Telê Santana e que tinha ainda em campo
Renato Gaúcho, Zinho, Leonardo, Andrade e Jorginho); e num histórico 3x1, já válido por aquele campeonato, em que, afora os dois gols
de Nilson e um de Edu, foi ele, Zico, quem marcou pelo Rubro-Negro.
Numa jogada na ponta da grande área, do lado direito, o Galinho
cortou o zagueiro para dentro e, na frente da área, enfiou um chute
seco e certeiro no ângulo, descontando. Nunca me esqueci da
habilidade e velocidade de movimentos e pensamento de Zico naquele
lance, que calou por uns instantes todo o estádio, ainda eufórico
com o segundo gol do Inter um minuto antes. Eu assistia,
coincidentemente, também atrás do gol.
Era
onde eu e meu irmão estávamos. Mas não na nossa casa, Beira-Rio,
e, sim, no Olímpico em uma tarde nublada em todos os sentidos. Quase
o mesmo ângulo. Porém, ao contrário do movimentado confronto do
time carioca com o Inter (com quatro gols, três só no primeiro
tempo), aquele Grêmio e Flamengo chegava a dar sono. Intervalo, e
zero a zero. Na segunda etapa, as equipes voltam a campo com uma
tentativa de jogar melhor. Tentativa. Seguia o mesmo marasmo, e já
se começava a ouvir reclamações aqui e ali por conta de uma jogada
mal concluída, um passe errado, um chute não arriscado. Os
torcedores gremistas já perdiam a paciência – e nós, ali,
secadores enrustidos, na maior satisfação.
Até
que, por volta dos 35 minutos, uma jogada marcaria para sempre a mim,
não necessariamente por sua beleza futebolística, mas por outro
motivo. Zico, pouco inspirado naquele dia como todos os companheiros,
havia mudado seu estilo de
jogo depois que voltou das contusões, substituindo seu ímpeto e
dribles rápidos pela cadência, toques de primeira e lançamentos.
Mas, como diz Jorge Ben naquela música dedicada ao Camisa 10 da Gávea: “quando não está inspirado, ele procura a inspiração”.
Afinal, craque é craque, né, meu amigo? De repente, mesmo num dia
ruim, pode tirar da cartola uma jogada e mudar o destino. E, além do
mais, um Zico com 60% de capacidade equivale a 100% da maioria dos
jogadores. Pois, numa surpreendente arrancada da intermediária,
Zico, a quem os defensores gremistas não esperavam tal atitude,
driblou um e avançou rápido rumo ao gol, carregando a bola, como
nos velhos tempos. Havia outros dois adversários à sua frente, e
seria difícil supô-los. Pois foi que ele se livrou do primeiro na
velocidade e, já chegando na ponta da área, do lado esquerdo,
aplicou o mesmo drible curto e ligeiro sobre o zagueiro tal qual
havia executado meses antes contra o Inter. Parecia que via a
repetição da jogada, porém do lado inverso. Mas dessa vez era
contra o Grêmio, então, pensava na minha cabeça de torcedor: Zico
tinha a minha permissão para acertar. Ele disparou o chute seco
mirando o ângulo do goleiro Mazzaropi.
Ao
contrário da primeira ocasião, no entanto, Zico, dessa, não fez o
gol. O chute bateu na rede, mas pelo lado de fora. Aquele
tradicional: “uhhhh!!” ecoou no estádio. Foi só um susto para a
torcida tricolor, que terminou quando a bola foi para fora. Porém,
para nós dois, o susto permaneceu. Meu irmão, empolgado com a
jogada e com a possibilidade de o Flamengo abrir vantagem contra o
Grêmio fora de casa (podendo administrar o jogo no Maracanã no jogo
de volta e, assim, eliminar os gaúchos), acompanhou a investida de
Zico de pé na arquibancada feito um torcedor flamenguista, mas sem
dar bandeira até então. Quando o atacante errou o alvo, porém, ele
não conteve a “coloradisse” e, apontando o dedo para o campo,
gritou, a plenos pulmões: “Filho da puuuuutaaaa!...” Sim, as
reticências colocadas por mim após o xingamento são propositais.
Foi exatamente isso que aconteceu naquele momento: reticências.
Dando-se conta do que acabara de fazer, ele congelou. E eu junto. A
impressão era de que toda a geral havia silenciado para entender
aquela reação. Foram segundos intermináveis, que demoraram mais
tempo do que aqueles sonolentos 80 minutos de partida até ali. “Como
vamos sair dessa?”, pensei incrédulo, olhando-o sentado e
boquiaberto com o rabo de olho. Haviam visto que estávamos juntos,
e, afora isso, somos bem parecidos de rosto. Não tinha como negar
que eu não conhecia aquele cara. Então, se ele apanhasse, eu
apanhava também. De toda a geral do Olímpico.
Senti
cerca de 30 mil pares de olhos gremistas nos olhando sem entender
aquela atitude do meu irmão, todos já armando um ar de fúria de
quem está prestes a atacar caso se confirme a suspeita: a de que nós
éramos infiltrados. Estávamos prestes a sermos linchados em plena
arquibancada. No entanto, por alguma graça enviada pelos deuses
colorados, meu irmão teve a espirituosidade que só o instinto de
preservação oferece nessas horas e completou aquela desastrosa e
obscena fala com um: “Mas coooomo vocês deixam o cara entrar assim
na área?!”. A expressão enrubescida de raiva dos gremistas, ao
ouvir aquilo, passou em milésimos da confusão para concordância e
indignação mútua. Um de nosso lado falou: “É! Isso mesmo:
coooomo vocês deixam o cara entrar assim na área?! Mandou bem,
cara”, parabenizando meu irmão. Olharam-nos orgulhosos por aquela
reação incontida de indignação por amor a seu time, coisa que só
um gremista de verdade poderia manifestar... Meu irmão sentou-se
novamente com a promessa de não abrir mais a boca até a eternidade
e só levantou de novo para irmos embora quando acabou o jogo.
Entreolhamo-nos novamente em silêncio, dizendo um para o outro com
os olhos: “Ufa! Escapamos dessa!”.
Meu
irresponsável desejo se realizara. O Grêmio bateu o Flamengo em
pleno Maracanã e o Inter venceu o Cruzeiro no jogo de volta diante
da sua torcida. Em 1º de fevereiro, o aguardado e temido Gre-Nal, o
do Século (depois de um 0 x 0 no primeiro jogo), aconteceu. Vencemos
o Grêmio: 2 x 1, um jogo que ficou marcado na história, o qual
também tive a felicidade de presenciar, porém desta dentro do nosso
Templo. Perdemos o campeonato para o Bahia na final, mas o melhor já
tinha vindo. Afinal, depois de termos passado aquele sufoco em nome
da paixão pelo Internacional, nós merecíamos pelo menos essa
recompensa.
Agora
imaginem o que aconteceria se o Zico tivesse
acertado aquele lance...
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Jorge Ben - "Camisa 10 da Gávea"
(A
meu quase-algoz Clayton)
torcedor do Internacional