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sexta-feira, 22 de março de 2024

Gene Vincent - "I'm Back and I'm Proud" (1969)

 



"Consciente do fenômeno Elvis
de quem observava cada movimento (...),
Gene Vincent se situava
a meio caminho entre seu herói
e o lirismo romântico de Buddy Holly."
do livro "Raízes do Rock"
de Florent Mazzoleni




Conheci "Be-Bop-a-Lula" no filme "Coração Selvagem", um road-movie frenético e improvável do diretor David Lynch, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1990. A canção era uma espécie de música-tema da personagem Lula, ainda que não se repetisse diversas vezes ou a cada aparição dela, como costuma acontecer nesse tipo de identificação no cinema.
Desde então passei a gostar muito da excelente trilha sonora do filme e em especial, entre outras de "Be-Bop-a-Lula".
"Be-Bop-a-Lula", um delicioso rockabilly embalado, descontraído, cheio de alternativas vocais, "gagueiras", respirações e gritinhos, foi o primeiro grande sucesso de Gene Vincent, cantor e compositor que surgiu naquela leva de novos-Elvis dos anos 50, mas que mostrava uma série de predicados que o qualificaram como algo diferenciado em meio àquele monte de promessas comerciais.
Curiosamente, a música que impulsionou a carreira de Vincent só veio a sair em álbum de carreira, 13 anos depois de seu lançamento, em 1969, no disco "I'm back and I'm proud", que como o nome sugere, representava uma espécie de retomada numa carreira que, depois dos primeiros anos de grande sucesso, não conseguira manter o mesmo patamar. Assim, para tal retomada, nada melhor do que partir do que tinha de melhor, ou seja, seu maior hit e, desta forma, "Be-Bop-a-Lula" era a arma nada secreta de Vincet.
Mas "I'm back and I'm proud" não se limitava a um apelo a "Be-Bop-a-Lula" que aqui, exigência dos tempos, aparecia numa versão  levemente mais psicodélica que sua original, lá de 1956. Merecem destaque também o rock vigoroso e elegante "Rockin Robin" que abre o disco; a eletrizante "White Lightning" gravada também pelo The Fall, posteriormente; a incendiária "Sexy Ways"; as releituras poderosas para duas lendas do country, "Rainbow at Midnight" de Ernest Tubb, e "I Heard the lonesome whistle", de Hank Williams; a revisitação de duas de suas antigonas, "Lotta Lovin'" e "Ruby Baby", uma espécie de variação de "Be-Bop-a-Lula" reproduzindo alguns versos e vocalizações, e ainda uma versão melancólica do clássico de domínio público "Scarlet Ribbons".
A retomada não veio, ainda que Gene Vincent mostrasse com o bom "I'm Back and I'm Proud" que que ainda tinha gasolina no tanque e lenha pra queimar. No auge do psicodelismo, das bandas inglesas, d ascensão de novos estilos, pouca gente queria saber dos ícones topetudos dos anos 50, embora, particularmente, Vincent gozasse ainda de um bom prestígio na Europa. A tentativa de ressurreição artística durou pouco pois, dois anos depois, Gene Vincent viria a falecer em decorrência do álcool, deixando, por um lado a impressão que a geração rock'n roll raiz, cinquentista, havia dado o que tinha quedar, mas por outro, a sensação que com um disco tão interessante quanto àquela, ainda poderia ter algo a oferecer.

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FAIXAS:

1 Rockin' Robin
2 In the Pines
3 Be Bop a Lula 69
4 Rainbow at Midnight
5 Black Letter
6 White Lightning
7 Sexy Ways
8 Ruby Baby
9 Lotta Lovin'
10 Circle Never Broken
11 I Heard That Lonesome Whistle
12 Scarlet Ribbons (For Her Hair)

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Ouça:

Gene Vincent - I'm Back and I'm Proud"
https://www.youtube.com/watch?v=X_xURXbVhyA&list=OLAK5uy_ljNPj1atjQgPcahNjaugSGhO4XJfR3M5w



Cly Reis

quinta-feira, 24 de março de 2022

"Duna", de David Lynch (1984) vs. "Duna", de Denis Villeneuve (2021)


Uma substância valiosa e a disputa pela administração e a exploração desse produto no planeta onde ele é extraído está  no centro das ações de ambas as versões de "Duna". O duque Atreides é incumbido pelo Imperador para a tarefa de chefiar o planeta Arrakis, mas o que parecia ser uma honra e benefício mostra-se, na verdade, uma armadilha tramada pelo Império com os perigosos Hakkonen para eliminar o duque e seu filho, o jovem Paul Atreides que, gerado da relação com uma bruxa, tem atributos um tanto especiais que se acentuam ainda mais quando o jovem chega a Arrakis. Seus talentos, sua sensitividade, seus poderes que ele própro não domina completamente, mostram-se fundamentais, especialmente depois que seu pai é traído e morto pelos Hakkonen, e o rapaz, fugitivo, é obrigado a se isolar no deserto com sua mãe, se aproximando a cada momento, a cada passo, de uma profecia que anuncia um "escolhido" que liderará o povo de Arrakis e acabará com a tirania do Império.
Não estou entre os tantos que deploram a adaptação de David Lynch, de 1984, para o romance de Frank Herbert. O filme tem bom elenco, com Jürgen Prochnow, de "O Barco", Sean Young, de "Blade Runner", Max Von Sydow, de "O Sétimo Selo", Patrick Stewart, que viria  estrelar a saga "Star Trek", o astro pop Sting, e Kyle McLachlan que estrelava seu primeiro longa mas que seria, a partir dali, um dos atores preferidos de David Lynch. Os figurinos são incríveis, a direção de arte é bem impressionante, os cenários muito interessantes, a fotografia, na maioria das vezes, é bem competente, e além de tudo isso, a trilha sonora ficava por conta de Toto e Brian Eno.
O grande problema do filme de Lynch foi a parte técnica. Os efeitos especiais, para um filme de ficção científica e com o bom orçamento que teve, são, no mínimo decepcionantes. Mesmo se levando em consideração a época, as limitações técnicas, a primariedade de alguns recursos, eles são, em determinados momentos, quase risíveis. A armadura, por exemplo, que envolve o corpo dos guerreiros de Atreides, uma espécie de campo de força, é simplesmente ridícula. Uma animação geométrica constrangedora. E não me venham dizer que era o que dava pra fazer em 1984 porque, àquelas alturas, já tinham sido feitos três "Star Wars" (1977, 1980, 1983), "Blade Runner" (1982), dois "Superman" (1978, 1980), só pra ficar em alguns, com efeitos visuais muito mais impressionantes e convincentes.
Mas se ficasse limitado a isso, dava pra dar um desconto. A narrativa é apressada, tem muito texto narrado, o que, ao invés de ajudar, atrapalha mais a compreensão, e a última meia hora é atropelada e confusa. Aí, o resto de boa vontade que podia-se ter com o filme de 1984, foi pro espaço.
O que podia ser um gol contra a nova versão de "Duna", que é o fato de não acabar a história (não estou dando spoiler pois todo mundo sabe que vão rodar uma sequência), acaba sendo positivo pelo fato de não correr com a trama pra resolver logo, como fez seu antecessor. O novo "Duna" usa mais tempo mas desenvolve bem a história, sem presa, com paciência, sem precisar recorrer a uma narração explicativa durante todo o filme, e ainda dá mais profundidade e destaque a alguns personagens subutilizados no primeiro, aproximando-os do espectador. Colabora para isso, também, o elenco, igualmente muito qualificado, como no original: Oscar Issac, de "Ex-Machina" e da nova saga "Star Wars", Rebecca Ferguson, de Doutor Sono" e da franquia "Missão Impossível", Jason Momoa ("Aquaman"l), a veterana Charlotte Rampling ("Coração Satânico", "Melancolia"), a carismática Zendaya, dos novos "Homem-Aranha", e, capitaneado o time, o grande queridinho do momento, Timothée Chalamet, de "Me Chame Pelo Seu Nome" e "Não Olhe Para Cima", ente outros, no papel do "messias" Paul Atreides.
A parte técnica, então, que era o ponto fraco do outro, é exatamente uma das maiores virtudes do novo, com efeitos visuais e som espetaculares, não à toa indicados ao Oscar, além da fotografia, com seu visual sombrio e suas locações no deserto simplesmente impressionantes.

"Duna" (1984) - trailer


"Duna" (2021) - trailer


Elenco por elenco, vamos deixar no empate; protagonista por protagonista, também não vejo grande vantagem para ninguém; no entanto, na caracterização e desenvolvimento dos personagens, o remake salta na frente no placar. E, a propósito de desenvolvimento, o andamento do filme e sua estrutura garantem mais um para a nova versão. Os cenários e a direção de arte, os figurinos do primeiro garantem um tento para o time de 1984, contudo, a fotografia, magistral, do novo filme acabam com a alegria do antigo "Duna" que tem que buscar mais uma no fundo das redes. De um modo geral, os efeitos especiais do filme de Villeneuve são muito melhores, mais espetaculares e, sem dúvida representam um golaço para o time de 2022, embora tenhamos que fazer justiça para com os vermes do primeiro filme que também era muito impressionantes, mesmo para as limitações da época. Em compensação, o que os habitantes subterrâneos do deserto de Arrakis acrescentam de positivo, a tal armadura que envolve o corpo dos guerreiros, tira. Quase um gol contra.
Quanto aos caras da casamata, ou seja, os diretores, são dois maestros competentíssimos e, apesar de ser fã de David Lynch, tenho que reconhecer que, mesmo com um bom material humano, com um bom investimento, ele comete alguns erros que comprometem o desempenho final de seu time, ao passo que Denis Villeneuve conduz seu time com precisão, usa um esquema mais adequado para a situação de jogo e, assim, extrai o melhor de cada um de seus atletas.
Duna '84 foi indicado ao Oscar de melhor som mas sua refilmagem atual, além de ser indicada na mesma categoria, ainda recebeu nomeações para outras nove, incluindo melhor filme. Por aí já dá pra ter um pouco da ideia da diferença entre os dois filmes. Duna '21 está muitos anos-luz à frente.

Alguns pontos de comparação entre os dois filmes:
No alto, a Reverenda Madre da ordem das Bene Gasserit nas duas versões.
 original, à esquerda, mais requintada e exótica, e à direita, a nova, mais sobria.
Na segunda linha, o barão Hakkonen, o original típico das bizarrices de David Lynch,
o outro, mais sério, sinistro é mais fiel ao livro.
Em seguida, os vermes do deserto, a esquerda o antigo e à direita, o novo.
Apesar das deficiências dos efeitos visuais do primeiro filme, os vermes de David Lynch se salvam 
e até se destacam como uma das coisas boas do filme.
Em compensação o escudo virtual do primeiro filme, à esquerda, na quarta faixa, é lamentável,
enquanto o outro, da nova versão. é meramente discreto, mas funciona melhor visualmente.
E para finalizar, os dois Paul Atreides.
Kyle McLaclan, do primeiro filme, não decepciona e vai bem no papel e a derrota não passa por ele,
 bem como o queridinho do momento, Timothée Chalamet, que se não é brilhante , não compromete também. 






Cly Reis 

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Jesus e o Diabo na Terra do Pop

 

Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.

Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.

Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.

filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha


O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).

Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção. 

Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com
"Barton Fink": referências diretas

Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.

Miklos: atuação que
enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.

Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.

Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.

teaser de "Jesus Kid"



Daniel Rodrigues

sábado, 18 de julho de 2020

Roy Orbison - "In Dreams" (1963)



"Roy era um cantor de ópera.
Ele tinha uma voz grandiosa."
Bob Dylan

"Vendo Roy Orbison,
eu aprendi como cantar uma
balada romântica."
Mick Jagger

"Quando estava quase adormecendo,
escrevi a introdução de "In Dreams",
 fui dormir, levantei-me na manhã seguinte
 e já tinha a letra. 
Todas as músicas são presentes,
 mas essa foi realmente um presente."
Roy Orbison



O primeiro contato que tive com a canção "In Dreams", curiosamente, não foi sonoro. O persoangem John Constantine ouvia a canção no rádio de um táxi num episódio da graphic novel, de Neil Gaiman, "Prelúdios e Noturnos", do personagem Sandman, o Mestre dos Sonhos. "A candy-colored clown they call the sandman/ Tiptoes to my room every night/ Just to sprinkle stardust and to whisper/ Go to sleep. Everything is all right...".  Embora o autor e seus desenhistas lidassem muito bem com a inserção de elementos músicas dentro do formato de quadrinhos, é óbvio que numa HQ não teria ali som para identificar de que música se tratava, contudo, na mesma edição, numa espécia de sumário para os trechos de músicas mencionadas naquela publicação, o autor era creditado: Roy Orbison.



Somente algum tempo depois é que fui ouvir aquela música em "Veludo Azul", de David Lynch, na interpretação célebre da dublagem do personagem Ben usando a luminária como microfone e foi só então que eu liguei os pontos: "quadrinhos-neilgaiman-sandman-mestredossonhos-indreams-royorbison-veludoazul...". Ah,era aquela! Aquela era "In Dreams" que eu havia lido nos quadrinhos. E ela era maravilhosa! Foi o que precisava para fazê-la cair definitivamente nas minhas graças.

"Veludo Azul" - Ben dublando "In Dreams"

"In Dreams", a belísima canção de interpretação emotiva e extasiante, e de arranjo de cordas grandioso, aparece pela primeira vez na discografia de Orbison no disco que leva o mesmo nome, de 1963, mas o álbum não se resume a esta canção que já se eternizou na galeria das grandes baladas da história da música. Roy Orbison é mestre em baladas românticas e "Lonely Wine" e "Dream", não deixam dúvidas sobre isso; "Shahdaroba" também romântica mas um pouco mais embalada é outra ótima canção; mais agitadinha ainda, o rock "Sunset", também merece destaque, bem como "Blue Bayou", outro dos grandes sucessos do cantor que conta com mais uma de suas inspiradas interpretações.
Um dos cantores mais influentes em todo o universo da música, Roy Orbison era admirado por Elvis, Johnny Cash e é frequentemente reverenciado por nomes como Bono, Tom Waits, Bruce Springesteen, entre outros. De minha parte, demorei para conhecer mas desde que tive contato me juntei ao coro dos ilustres fãs.  Sua voz inconfundível e suas interpretações singulares estão, definitivamente, marcadas na história da música.

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FAIXAS:
  1. "In Dreams" (Orbison)
  2. "Lonely Wine" (Roy Wells)
  3. "Shahdaroba" (Cindy Walker)
  4. "No One Will Ever Know" (Mel Foree, Fred Rose)
  5. "Sunset" (Orbison, Joe Melson)
  6. "House Without Windows" (Fred Tobias, Lee Pockriss)
  7. "Dream" (Johnny Mercer)
  8. "Blue Bayou" (Orbison, Joe Melson)
  9. "(They Call You) Gigolette" (Orbison, Joe Melson)
  10. "All I Have To Do Is Dream" (Boudleaux Bryant)
  11. "Beautiful Dreamer" (Stephen Foster)
  12. My Prayer (Jimmy Kennedy, Georges Boulanger)
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Ouça:


Cly Reis

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Iron Maiden - "Piece of Mind" (1983)




"A luz do homem cego você verá
O veneno que rasga minha espinha 
Os Olhos do Nilo estão se abrindo, 
você verá"
trecho de "Revelations"



Se você gosta de rock, acredito que em alguma vez na sua vida ouviu a seguinte frase: "Isso é do capeta!", ou simplesmente te perguntaram se você tinha pacto com o diabo, entre outros questionamentos que beiram à infantilidade, tal a ignorância das "pessoas normais".Os anos 80 foram marcados por grandes lançamentos e formações de grandes bandas e junto com essas bandas vieram os estereótipos de que todas muitas delas eram satanistas.

Grupos de religiosos fanáticos se aglomeravam próximos aos locais de shows, e com o Iron Maiden não foi diferente. Após o lançamento de "The Number of The Beast", a banda foi diversas vezes acusadas de pacto com o diabo. "Piece of Mind" (1983), o quarto álbum da banda contém uma “mensagem secreta” entre as faixas “ The Trooper” e  Still Life” que servira para assustar ainda mais esses perseguidores religiosos, quando na verdade, o que se ouve é o baterista Nicko McBrain imitando o ditador Idi Amin de Uganda. A propósito, "Piece of Mind" é o disco de estréia do baterista na banda e o segundo de Bruce Dickinson à frente dos vocais.

Encorpada e original , "The Tropper" virou cerveja até artesanal
e foi lançada pela banda em parceria com
cervejeiros da família Cheshire Robinson, em 2013.
Entretanto todo fanatismo religioso é causado por mera ignorância, já que "Piece Of  Mind" explora, na verdade, letras sobre guerras, filmes e obras literárias, como é  caso de "The Tropper", por exemplo, que é inspirada no poema de Lord Alfred Tennyson, "A Carga da Brigada Ligeira", e que narra a Batalha de Balaclava , durante a Guerra da Crimeia, em 1854. Nos shows, a narrativa do ponto de vista do cavaleiro britânico que avança contra as linhas russas é interpretada por Dickinson que veste uma farda do exército e empunha a bandeira do Reino Unido.

Com o objetivo de alcançar fãs americanos, além de "The Tropper", a banda lançou outro single, “Flight of Icarus”, por sua vez inspirada na história de Ícaro, personagem da mitologia grega que ambicionava voar com suas asas feitas de cera.

E as inspirações e referências não param por aí: Em "Revelations" a banda faz referências às teorias de Aleister Crowley, escritor e ocultista inglês e estudioso também de elementos hindus; "Where Eagles Dare" , canção que abre o álbum, é inspirada no romance com mesmo titulo do escritor escocês Alistair MacLean; "Die With Your Boots On" fala sobre charlatões que induzem os fiéis acreditarem em suas auto realizações; "Still Life", fala sobre um cara que fica atraído por uma piscina, tem pesadelos, vê nela seu rosto e, num fim trágico, pula nela e morre, "Quest for Fire" conta a saga de três tribais que vão atrás do fogo que sua tribo perdera, como descrito no romance de J.H Rosny  Aîne; "Sun and Steel" narra a história do Samura Miyamoto Musashi (1584 – 1645) que, com apenas 13 anos já matara seu primeiro inimigo e veio a criar o Niten ichi-ryû, um estilo de luta que utiliza duas espadas;e por fim, "To Tame a Land", a faixa que encerra o álbum, foi inspirada em Dune, livro de ficção científica de Frank Herbert’s que veio também a ser adaptado para o cinema por David Lynch, em 1984.

Além do singles, o álbum possuem duas covers, “ I’ve Got the Fire”, da banda de hard-rock dos anos 70, Montrose, e “Cross-eyed Mary”, do Jethro Tull.

"Piece of Mind" foi gravado entre janeiro e março de 1983 no Compass Poin Studios, nas Bahamas, e lançado no dia 16 de maio de 83 em formatos LP, cassete e CD pela gravadora EMI, com produção de Martin Birch, tendo alcançado terceiro lugar da parada inglesa, além de ter sido o primeiro a alcançar o top 100 da Billboard 200(chegando à 70ª posição).
Uma obra verdadeiramente inspirada e inspiradora tanto para gerações dos anos 90 como também para as dos dias atuais.


por Diego Almeida

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FAIXAS:
1. Where Eagles Dare
2. Revelations
3. Flight of Icarus
4. Die With Your Boots On
5. The Trooper
6. Still Life
7. Quest For Fire
8. Sun And Steel
9. To Tame A Land


extras da reedição de 1995
10. "I've Got the Fire" (cover do Montrose)
11. "Cross-Eyed Mary" (cover do Jethro Tull)


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Ouça:
Iron Maiden - Piece of Mind








Diego Almeida
(também conhecido por alguns como Ramones) é formado como técnico administração e trabalha numa livraria no Rio de Janeiro.
Curte HQs, filmes e descobriu que escrever faz bem à mente.
É colaborador no blog Zine Musical (www.zinemusical.wordpress.com)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Lana Del Rey - "Born To Die" (2012)




Acima a capa original e,
abaixo a da edição especial dupla.
"Escolha suas últimas palavras,
 esta é a última vez
Porque você e eu,
nascemos para morrer."
da letra de
"Born to Die"



Ela é uma espécie de versão feminina de Morrissey. Muita gente vai achar que não tem nada a ver mas sempre que a escuto pessimista, trágica, dramática, exageraaada... e com uma certa quedinha pelo retrô, não consigo deixar de associar os dois. Ela não escreve como ele, é verdade, ainda que também tenha a língua afiada e tenha lá seus momentos com tiradas precisas e venenosas. Talvez até tenha mais talento vocal, mas, cá entre nós, mesmo já tendo conquistado uma boa legião de seguidores, precisa percorrer uma longa estrada para chegar no nível quase lendário do ex-vocalista dos Smiths. Meio diva anos 60, meio Madonna, meio dark, meio bad girl, o interessante é que, embora seja muito contestada por conta de seu alavancamento profissional, via internet, essa garota de preferências vintage, de certa forma se encaixa num espaço deixado pela geração pós-punk que oferecia, assim como ela, um pop carregado de melancolia. Não é a mesma geração, é verdade, mas o fato de sempre existirem corações sombrios e almas torturadas faz com que tanto um Morrissey, há trinta e tantos anos, quanto uma Lana Del Rey, agora, sejam ouvidos e compreendidos da mesma maneira. "Born To Die" até não é o melhor trabalho da norte-americana, posteriores como "Ultraviolence" e "Lust for Life" trazem progressos em vários aspectos em relação ao primeiro, mas este disco em especial parece representar essa identificação destes espíritos melancólicos com uma nova "representante", mas também por parte de "viúvas" do gótico, com alguém que, de certa forma, depois de algum bom tempo, fazia algo que ia mais ou menos no mesmo caminho que seus ídolos dos anos 80.
Com batidas eletrônicas e samples, num trip-hop que por vezes lembra o Portishead (menos bem acabado e menos fantasmagórico), linhas de teclado normalmente dramáticas e solenes, letras sombrias e sarcásticas sobre rompimentos, drogas, álcool, bad boys e tragédias, com vocais chorosos e líricos, Lana Del Rey oferecia com "Born to Die" um cartão de visitas altamente revelador de suas intenções artísticas e que justificava sua aceitação tanto pelo grande público quanto por alternativos. O disco em determinados momentos acaba soando meio uniforme e perde força na segunda metade mas mesmo assim muita coisa vale ser destacada. A faixa-título, por exemplo, com sua entrada grandiosa de cordas, lembrando aberturas de filmes antigos carrega todo o componente dramático que o trabalho de Lana pretende conter. A balada "Video Games", densa com sua parede de teclados, sua batida militar e vocal arrastado é outra que merece destaque. "Dark Paradise" que mescla toda uma morbidez com elementos pop mais leves que aliviam seu clima pesado; "National Anthem", bem hip-hop com vocal multiplicado como se cantado em coro; a dramática "Carmem" de excelente performance da cantora; e a ótima "Million Dollar Man", uma das minhas preferidas, uma balada de clima meio western, meio cabaré (ou as duas coisas juntas) são alguns dos grandes momentos do álbum. Num disco predominantemente lento, pesado, para não dizer que não tem nada "animado", "Diet Mountain Dew" cuja melodia vocal e combinação da letra lembram "Paradise City" do Guns'n Roses, "Summertime Sadness", de refrão grudento e o hit "Off The Races" são momentos um pouco mais embalados. A versão deluxe do álbum traz ainda mais três faixas, entre elas a ótima e sensual "Lolita", um pop mais agressivo com uma batida eletrônica bem intensa, ecos e um sample alucinante; e um relançamento do disco em versão dupla, chamado "The Paradise Edition", traz mais oito faixas, bastante boas, diga-se de passagem, sendo um delas uma versão de "Blue Velvet", que fez parte da trilha e deu nome ao filme de David Lynch.
Um dos bons discos da segunda década do século XXI, ao que parece, ao contrário do que vaticinaram muitos críticos que na época de seu lançamento, "Born To Die" não cumprirá a profecia de seu título e, se depender da já grande legião de fãs e admiradores, o álbum, um dos novos clássicos da música pop, está sim, fadado à eternidade.

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FAIXAS:
1. Born To Die
2. Off To The Races
3. Blue Jeans
4. Video Games
5. Diet Mountain Dew
6. National Anthem
7. Dark Paradise
8. Radio
9. Carmen
10. Million Dollar Man
11. Summertime Sadness
12. This Is What Makes Us Girls


Deluxe Edition
13. Without You
14. Lolita
15. Lucky Ones


The Paradise Edition
disco 2
1. Ride
2. American
3. Cola
4. Body Electric
5. Blue Velvet
6. Gods & Monsters
7. Yayo
8. Bel Air

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Ouça:
Lana Del Rey - Born To Die + The Paradise Edition


Cly Reis

sábado, 10 de março de 2018

Elas metem medo




As canadenses irmãs Soska
nomes de destaque na nova cena feminina do terror.
Durante muito tempo, devo admitir, nutri uma série de restrições a filmes dirigidos por mulheres. Com exceção de algumas diretoras como Agnés Varda, Jane Campion, Agnieszka Holland, Sophia Coppola e mais uma que outra ou alguma obra eventual, de um modo geral torcia o nariz para filmes de realizadoras. Não por julgá-las menos capazes ou talentosas para a atividade, mas muito em função da própria identidade criada em torno de suas obras, fruto das limitações ou das imposições  estabelecidas pelos estúdios e da própria expectativa comportamental apregoada pela sociedade machista, que com seus dogmas como "isso não é coisa de menina", "mulher tem que ser comportada", entre outros tantos, acabou por padronizar o produto cinematográfico feminino tornando-o, muitas vezes, previsível e enfadonho.
Mas os novos tempos, o surgimento de um novo pensamento no tocante a gêneros e uma nova atitude feminina, associada à abertura, ainda que pequena, de oportunidades e confiança por parte de produtores fez surgir uma nova geração de cineastas "de saias" cheia de ideias, vigor e talento. Desatreladas dos padrões estabelecidos como "femininos", elas abordam, sim, assuntos pertinentes à sua condição de mulher, mas o fazem de maneira mais inventiva, ousada e reflexiva. No terror, por exemplo, estilo cujos princípios básicos sempre foram veementemente apartados das mulheres desde suas infâncias ("menina não vê essas coisas", "isso é muito nojento", "tem que ver filme de princesa"...), e no qual muito raramente figuravam até dez, quinze anos atrás, parece agora encontrar uma safra criativa, madura e livre dessas amarras estéticas e morais capaz de produzir bons trabalhos e imprimir sua identidade. Selecionamos, aqui, alguns destes filmes dirigidos por mulheres que mostram que elas começam a se destacar num dos gêneros até então mais predominantemente masculinos do cinema, com bons argumentos e trabalhos muitíssimo bem realizados. Podem começar a ficar com medo porque elas estão chegando.




1. "O Babadook", de Jennifer Kent (2014) - Um dos filmes de terror mais assustadores dos últimos tempos numa história repleta de símbolos e metáforas que aborda temas como perdas, a maternidade sozinha e estados psicológicos conflitantes e relação a um filho, com muita criatividade e inteligência.
Amelia perde o marido em um acidente de carro no dia em que está para ter seu bebê e a partir dali passa a, de certa forma, responsabilizar o filho pela perda e a todos os problemas decorrentes daquela ausência, nunca dedicando o amor e a dedicação que deveria a ele. O menino Samuel, com 6 anos, tem problemas de comportamento na escola, um temperamento difícil e uma mente muito inventiva e a mãe não lida nada bem com nenhuma destas situações tratando-o com indiferença, negligência e até raiva. Num dos raros momentos em que reúne paciência para dar alguma atenção ao garoto, resolve ler para ele e encontra na estante um livro que não conhecia chamado Mister Babadook e aí que os problemas começam de verdade pois o personagem do livro, um homem de capa, cartola, corpo esticado e unhas enormes, lembrando um figura de expressionismo alemão, começa a atormentar e ameaçar o garoto e a mãe e, pelas páginas do livro anuncia que não irá deixá-los em paz.
Talvez a criatura seja somente fruto da mente confusa e inventiva de Samuel, talvez seja realmente apenas um livro do mal, talvez o pai retornando do além, ou ainda, talvez seja nada menos do que o próprio estado mental de Amelia em relação ao filho e a projeção e materialização de sua negação a ele, da qual ela só conseguirá se livrar se conseguir lidar com isso.





2. "Raw", de Julia Ducournau (2016) - Terror forte, intenso, pesado, chocante, com cenas gráficas de canibalismo mas que não deixa de trazer assuntos interessantes à tona. Maturidade, sexualidade, autodescoberta e autoaceitação são alguns dos temas presentes em "Raw" , ótimo filme da francesa Julia Ducournau de apenas 34 anos.
Uma garota vegetariana que acaba de entrar na faculdade de veterinária, Justine, em um dos trotes pesados impostos pelos veteranos é obrigada a comer rim de coelho, mudando então drasticamente seu comportamento a partir deste momento, passando não somente a comer carne como a ter atitudes estranhas e assustadoras. A carne parece ter libertado a Justine que estava presa dentro dela. A verdadeira Justine. Uma pessoa que se escondia atrás do vegetarianismo, da virgindade, da pureza, de valores que na verdade talvez não tivessem a importância que ela queria fazer crer. Uma volta ao mais primário instinto do homem. O instinto animal.






3. "Boa Noite, Mamãe", de Veronika Franz e Severin Fiala (2016) - Um dos filmes mais perturbadores que já assisti. "Boa Noite, Mamãe" é tenso do início ao fim. Sua limpidez e calmaria, sem sustos ou sobressaltos, contrasta com a tensão presente no ar o tempo inteiro. Uma mulher volta para casa depois de uma cirurgia plástica no rosto mas seus dois filhos gêmeos, Elias e Lukas, têm dúvidas se aquela mulher que retorna é mesmo sua mãe. A atadura no rosto, sua atitude ríspida, sua indiferença e uma série de outros pequenos indícios fazem com que os garotos, num primeiro momento a confrontem e adiante, a mantenham prisioneira chegando a torturá-la física e psicologicamente em busca de uma confissão e da revelação do paradeiro da verdadeira mãe.
O filme muito bem dirigido pela austríaca Veronika Franz em parceria com Severin Fiala faz questão de deixar uma série de questões em aberto de modo a manter o espectador curioso e intrigado. O que houve com a mulher para que fizesse uma cirurgia plástica? Houve um acidente? Um incêndio? Os meninos teriam algo a ver com isso? Será por isso que a "mãe" proíbe isqueiros? Será por isso que ela ignora um dos gêmeos? E será que realmente são duas crianças?... Assista e tire suas próprias conclusões.






5. "Acorrentados", de Jennifer Lynch (2002) - Essa é filha de peixe! Tem seu talento, tem seu estilo, tem suas próprias ideias mas não dá pra ignorar que ter sido criada no lar de um dos mestes do cinema contemporâneo ajuda muito na formação. E no caso de Jennifer Lynch parece que não apenas na escolha do caminho como na linguagem, uma vez que faz a linha esquisitona do pai com temas sombrios, violentos, surreais e grotescos, o que já ficava evidente em sua estreia com o bizarro "Encaixotando Helena" de 1993. Em "Acorrentados" ela volta ao maníaco obsessivo e dominador desta vez com um taxista que sequestra uma mulher e seu filho na saída do cinema. Bob, o taxista, estupra e mata a mulher mas mantém o garoto de nove anos como prisioneiro e o faz permanecer assim por muitos anos, até a adolescência, acorrentado, sempre presenciando outros sequestros e crimes contra mulheres.
A violência contra a mulher e aquela ideia que muitos homens tem que por usar determinada roupa ou agir de tal maneira a mulher "está pedindo pra ser estuprada" são assuntos evidentes na abordagem da diretora, mas temas como violência doméstica na infância e traumas psicológicos ligados à família também aparecem principalmente no que diz respeito ao vilão Bob.
Esse não é exatamente um terror, mas vindo da família Lynch, no mínimo é de mexer com a cabeça de qualquer um.






6. "Garota Sombria Caminha Pela Noite", de Ana Lily Amirpur (2014) - Uma espécie de justiceira sobrenatural que vaga pelas noites iranianas colocando machões, abusadores e traficantes no seu devido lugar e que, numa dessas perambulações noturnas, topa com Arash, um rapaz envolvido com traficantes e cujo pai é viciado, que está exatamente tentando se afastar daquele universo envenenado de Bad City, a cidade fictícia onde vivem. O encontro dos dois, criaturas que de alguma forma precisam de algo que complete ou que justifique suas vidas, parece frear um pouco os ímpetos da garota e quem sabe, amenizar sua sede de sangue.
Típico cult movie. Preto e branco, cenas longas, diálogos breves, silêncios, quadros estáticos e ação mais psicológica do que prática. Muito interessante a direção de arte que, mesmo com orçamento baixíssimo, mistura elementos dos de épocas diferentes deixando indeterminado o momento em que acontece a ação, bem como a trilha sonora que reforça essa sensação de indefinição de tempo e local, com ênfase em música americana dos anos 80, mas com momentos de música clássica e canções regionais iranianas. Embora seja cheio de referências à cultura e ao cinema americano, "Garota Sombria Caminha Pela Noite", por seu ritmo, sua estética e dinâmica é um daqueles filmes para quem está interessado numa proposta diferente como filmes de arte e "filmes cabeça".





7. "American Mary", de Jen e Sylvia Soska (2012) - Terror com toques de fetichismo. "American Mary" conta a história de uma estudante de medicina que, ainda durante o curso, decepcionada com o universo da profissão que escolhera e vendo sua situação financeira cada dia pior, ao tentar a carreira de stripper sendo que em seu primeiro dia na boate, uma circunstância inesperada faz com que tenha que pôr em prática suas habilidades médicas. a partir dali entra para o ramo de cirurgias clandestinas de modificações corporais executando algumasoperações absolutamente bizarras.
O que começa como uma necessidade financeira que ela realiza cheia de relutância e até repugnância, transforma-se numa atividade sádica e prazerosa e um objeto de vingança. 
Forte, sangrento, sádico, "American Mary" de certa forma coloca em discussão os sonhos profissionais, a ética dentro de uma atividade, os caminhos que podem levar uma pessoa a realizar algo fora de seus padrões morais e mais uma vez, os abusos sexuais contra mulheres. Uma boa mostra do cinema das promissoras irmãs Soska que, sem dúvida, tem muito mais coisas interessantes a oferecer.







8. "O Convite", de Karyn Kusama (2015) - Will e sua namorada Kyra são convidados para um jantar com amigos do tempo de colégio e faculdade na casa da ex-esposa dele, Eden, depois de anos sem se verem e de terem superado, ambos, separados, à distância, a tragédia em comum da morte de seu filho. Eden, agora com um novo marido parece refeita e animada, no entanto o convite e o jantar parece esconder algo de muito suspeito que apenas Will parece perceber mas que é ignorado e subestimado pelos demais convidados supondo que a desconfiança de Will se dê em função de todo o trauma que sofrera.
Embora não seja brilhante, o filme tem o mérito de manter essa dúvida de estar ou não acontecendo alguma coisa estranha e o espectador vai sendo absorvido e cada vez mais envolvido na trama em grande parte graças à atuação do ator Logan Marshall-Green que, sendo o centro de observações dos fatos e das ações dos outros personagens, nos transmite todas as sensações com de maneira muito convincente.
O roteiro meio que escorrega lá pela metade, a justificativa toda em si não é das mais válidas, mas a cena final do filme é simplesmente inquietante.






9. "Quando Chega a Escuridão", de Katrhyn Bigelow (1987) - Este provavelmente é o mais fraco da lista mas vai apenas para destacar a diretora que seria a primeira mulher a ganhar um Oscar de melhor direção, aqui ainda em seu segundo longa. "Quando Chega a Escuridão" é uma espécie de terror road-movie- western de vampiros. Entendeu?
Tudo começa quando um rapaz, Caleb, conhece Mae e no fim da noite ela lhe pede uma carona para casa. Só que durante o caminho ela começa a demonstrar algum pânico pela inevitável chegada da manhã e aí, né, já sabemos porquê. Ele não escapa dos dentinhos dela e é lavado até um grupo de amigos da garota, saqueadores e baderneiros, todos vampiros, é claro, onde ele terá que passar por uma prova para entrar para a gangue uma vez que não é bem-vindo. 
O filme de Bigelow se distingue de muitos do gênero pelo caráter humano que ela confere às criaturas da noite, não mencionado, por exemplo, a palavra vampiro em momento algum do filme. O roteiro se perde um pouco em alguns momentos, a trama acaba corrida demais e o final fica um pouco em desacordo com o que foi todo o resto do filme mas mesmo assim é interessante observar o crescimento do cinema da cineasta. Com certeza que valeu pela experiência e aprendizado até chegar à estatueta dourada.





10. "O Cemitério Maldito", de Mary Lambert (1989) - Esse é um bônus! Outro que não é da nova geração mas serve bem para ilustrar o trabalho das mulheres no cinema de terror.
Uma família se muda para uma nova casa na beira de uma rodovia movimentada. Lá, o gato da família morre atropelado na estrada destino que muitos outros mascotes já vieram a ter, conforme conta Ju, o vizinho ao dr. Louis Creed, o novo morador. Sensibilizado pela tristeza que a morte do bichano causaria ao menininho, filho de Louis, o velhote revela que ali perto existe um antigo cemitério indígena no qual se crê que quem for enterrado lá volta à vida. O médico usa o artifício com o gato e o resultado é positivo apenas em parte pois o bicho volta à vida mas diferente do que era, muito mais agressivo e perigoso. Vendo, logo em seguida seu filho, Gage, ter o mesmo destino na movimentada estrada, Louis não hesita em enterrá-lo no cemitério dos bichos para trazê-lo de volta mas o retorno do filho é ainda pior do que o do animalzinho de estimação. 
Baseado no romance "O Cemitério" de Stephen King e roteirizado pelo mesmo, "O Cemitério Maldito" é um clássico do terror sendo frequentemente lembrado em listas de melhores pelos cinéfilos amantes do gênero. Destaque ainda para o tema musical do filme, "Pet Sematary" dos Ramones, que além da boa história, bom roteiro, maquiagem assustadora e climão aterrorizante, é mais um ponto a seu favor.




Cly Reis