Desagradavelmente bom. É o que
posso dizer de “Titane”.
Um violento acidente de carro
deixou longos e duradouros efeitos colaterais: uma criança carrega uma placa de
titânio em seu crânio; uma modelo de showroom de carros começa a ter atração
sexual por seus produtos; depois de um tempo, uma gravidez inesperada se
transforma em um massacre aterrorizante e um bombeiro se reencontra com um
homem brutalmente queimado que diz ser seu filho perdido.
Um filme que vai direto para te
chocar. Ele quer deixar você desconfortável e, devo admitir que em várias cenas fiquei. Se sua vibe é aquela famosa “Vou ver um filme para desligar o cérebro”, esquece! Impossível isso. A diretora, Julia Ducournau, do também chocante "Raw", quer seu cérebro bem ligado.
Muitas vezes, na minha opinião, "Titane" tenta chocar até demais e se prolonga em algumas cenas para este objetivo, contudo, quando decide ir direto ao ponto, mesmo com todo seu “horror” desconfortável, ele
só tem acertos. E quando vai para uma
direção de autoaceitação, de se respeitar, de se compreender mesmo com seus defeitos, acerta mais ainda e , nisso, tanto Agathe Rousselle, como Alexia, com sua fixações e fetiches (e crimes
também), quanto Vincent Lindon, como Vincent, que nosé apresentado injetado hormônios no próprio
corpo para manter a virilidade, trazem essa carga de tentar se adequar e se
aprovar, ambos com suas tragédias e suas histórias.
Entre acertos e erros, “Titane”, vencedor da última Palma de Ouro em Cannes, se sai bem com muito mais pontos positivos que negativos. É desconfortável na
medida certa mas tem a capacidade de gerar algumas boas reflexões. Um longa que daqueles que continua na sua cabeça por dias.
O filósofo polonês Zygmunt Bauman, grande leitor dos nossos tempos, bem descreve que a modernidade “líquida” em que vivemos gera, por conta e culpa da globalização descontrolada, o que ele chama de “mixofobia urbana”, a tensão permanentemente desagradável e perturbadora da estranheza ao outro. Essa presença irritante entre estranhos da mesma cidade, vizinhos separados pelas diferenças sociais por meio de espaços “interditados”, é, segundo ele, “uma fonte inesgotável de ansiedade e de uma agressão geralmente adormecida, mas que explode continuamente”. O longa sul-coreano “Parasita”, escrito e dirigido por Bong Joon-Ho, é um dos filmes mais perspicazes na leitura destes tempos líquidos. Mordaz e crítico à sociedade capitalista, a obra expõe uma alegoria da vida real, em que, recorrendo aos mais animalescos recursos de sobrevivência nesta selva chamada cidade, todos os caminhos dessa violência sistêmica levam a uma coisa: a morte.
Palma de Ouro no Festival de Cannes e vencedor de três Globo de Ouro – Filme, Diretor e Roteiro –, “Parasita” retrata as ações de uma família pobre, os Kim, que manipula outra família, os abastados Park, para arrumar trabalho. Através de uma série de mentiras e planos mirabolantes, os vigaristas conseguem se "infiltrar" na mansão luxuosa, como um parasita que habita um corpo sem que ele perceba. A casa, no entanto, também está cheia de mistérios, que os Kim vão desvendando ao longo do desenrolar dos fatos, o que vai tornando a narrativa de um humor ácido para um terror psicológico. Muito bem fotografado e montado, alia ainda com precisão trilha sonora e edição de som para adensar essa atmosfera sinistra.
Os Kim: pobreza e miséria social que os assemelha a defuntos
A densidade psicológica do filme, entretanto, é evidenciada logo de princípio com a fotografia suja da casa onde os Kim moram. Ou melhor: se entocam, haja vista as condições subumanas daquele porão escondido e da indignidade social a que são sujeitados. Para piorar, na era digital não são apenas as condições de moradia, trabalho e ensino que compõem a situação de miserabilidade: a tecnologia se torna mais um elemento de segregação. Se tem internet, está-se vivo; ao contrário, não. As pessoas da família Kim, esteticamente parte essencial deste cenário, são tão emporcalhadas daquela subvida que parecem defuntos. Eis um dos elementos narrativos principais do longa: a morbidez, expressa tanto nas peles e corpos quanto, mais simbolicamente, nas relações sociais e interpessoais. Cenas como o casal Kim deitado sobre o chão e enfileirados, o momento em que se arrastam para fugir da mansão sem serem percebidos ou o sono profundo do qual a senhora Park é acordada pela governanta denotam esse aspecto mórbido.
O designo irrefreável da morte que “Parasita” suscita, assim como em Kafka, é uma metáfora a vários níveis da sociedade, seja a da oriental sul-coreana, seja a nossa, do Ocidente. A exclusão das classes desfavorecidas, a displicência cruel do estado liberal, a americanização desmedida – que leva à descaracterização/morte cultural – e as feridas não curadas da guerra se embolam, formando um suco de insegurança e medo de todos os lados: os miseráveis, já muito próximos da morte caso não melhorem sua condição; e os ricos, permanentemente inseguros quanto à invasão do “estranho” às suas vidas estabelecidas. Assim, num sistema desequilibrado em que se privilegia o que está na superfície, aquilo que é feio e não quisto vai para baixo, é disfarçado, tapado, soterrado. Como defuntos sepultados – ou, pior, pessoas enterradas vivas. A casa dos Kim e o bunker da mansão dos Park – cujos portais simbólicos, a porta rodeada de objetos e a que dá acesso ao porão, fazem a ligação entre os espaços “interditados” – são cânceres que inevitavelmente coexistem com o mundo ideal do capitalismo. Mas mesmo que se finja não existirem, o lado escuro é retroalimentado pelo próprio sistema e suas desigualdades. Seus habitantes, proibidos à convivência “civilizada”, são como ratos e insetos que vivem de parasitar. Mas essa interdição, claro, tem seus limites, e é aí que se abre espaço para a explosão de toda a agressividade silenciada.
O portal simbólico que separa sonho de realidade
Tal tensão mixofóbica, vista também em filmes como “O Som ao Redor” (Kleber Mendonça, 2013) ou “Amores Brutos” (Iñárritu, 2000), inibe tanto a empatia quanto a razão. A tal ponto que resta apenas recorrer aos instintos. Não há planos para o futuro: apenas deixa-se os acontecimentos virem, como diz o personagem a certa altura. A esperteza murídea dos Kim de ascenderem do seu subterrâneo a qualquer custo, bem como a superficialidade nada inocente dos Park para com estes e entre eles próprios, são dois lados da mesma miséria. O sexo, a comida e o consumo para a satisfação física são, digamos, o lado “legal” desta instintividade. Mas as coisas complicam, obviamente, haja vista que ninguém recorre à consciência humana e, assim, a luta pela sobrevivência se impõe. É quanto o individualismo, a perversidade e a violência se juntam a este rol de comportamentos, que remetem ao mais animalesco dos seres. Brilhante a analogia com a figura mítica do índio – originária da criticada sociedade norte-americana –, elemento semiótico fundamental para a cena da festa. O roteiro merece aplausos também pela sequência da chuvarada, em que a natureza se mostra alertadora, visto que mais implacável do que qualquer disfarce social. Igualmente, a pedra, presenteada aos Kim como um amuleto, e que serviu, como nas cavernas, para abater o inimigo.
Song: atuação que merecia indicação ao Oscar
Fazia certo tempo que não via um recente Palma de Ouro e, como sempre, ao contrário do que proporciona às vezes o Oscar – ao qual “Parasita” concorre como Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro, simultaneamente, além de Diretor, Roteiro Original, Montagem e Direção de Arte –, não decepciona. A aceitação à crítica e a diversidade ideológica sempre tiveram bastante espaço na premiação francesa, enquanto que, na norte-americana, não raro falte. Até por isso, é evidente que o filme, já ostentador do feito inédito de levar um título sul-coreano ao Oscar, não leve a principal estatueta da noite, mas provavelmente seja devidamente compensado – como ocorrera com o mexicano “Roma”, no ano passado –, com o de Melhor Estrangeiro. Talvez até pinte o de Roteiro, por exemplo, pois merece. Mas senti falta de ver o ator Kang-Ho Song, que faz o pai da família Kim, concorrendo, talvez até no lugar do meu admirado Leonardo DiCaprio, bem em “Era Uma Vez em... Hollywood”, mas abaixo do que já foi desafiado em ocasiões anteriores – inclusive, as várias em que não ganhou.
“Parasita” pode ser considerado daqueles divisores-de-águas no cinema. Em certo sentido, países capitalistas em emergência como a Coreia do Sul, o México e o Brasil estão enfrentando momentos de tensão sociopolítica semelhantes em alguns aspectos e diferente noutro, mas certamente transformadores de suas sociedades e, haja vista a polarização reinante a que somos acometidos atualmente, de alta carga de mixofobia. Talvez por isso não seja coincidência que o Brasil também viva um momento especial em seu cinema com filmes como “A Vida Invisível” e “Bacurau”, principalmente, que, igualmente a “Parasita”, demarcam um “pré” e um “pós” em termos de produção dos países em que se originam. “Bacurau”, aliás, assim como o filme de Joon Hoo, também toca na questão da invasão norte-americana e a tentativa de apagamento do outro, do “estranho”. Metáforas denunciadoras da “mixofobia líquida” que Bauman nos alertou. Espero, no entanto, que obras como “Parasita” não signifiquem apenas denúncia e resistência, mas um princípio de consciência e de mudança a quem as assista com olhos de alerta. Sinceramente, espero.
Depois de muita exibição de glamour, estreias, flashes e polêmicas chega ao fim a edição 2011 de um dos mais importantes festivais de cinema do mundo, o Festival Internacional de cinema de Cannes.
O júri, presidido por Robert De Niro, depois de decretar a indesejabilidade da presença do suposto nazista Lars Von Trier, acabou premiando com o prêmio principal, a cobiçada Palma de Ouro, a produção norte-americana "A Árvore da Vida" de Terrence Melick ("Além da Linha Vermelha"); já o prêmio do Júri foi para o francês "Polisse" de Maiween Le Besc e a direção para Nicolas Winding Refn, pela produção americana "Drive". A Palma de ator foi para Jean Dujardin e a de atriz para Kirsten Dunst pelo polêmico "Melancolia", que aliás deveu grande parte do alvoroço ao seu redor às declarações infelizes de seu diretor, mais do que o brilho do próprio filme, pelo visto. Veja abaixo todos os vencedores da premiação francesa:
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Palma de Ouro: "A árvore da vida", de Terrence Malick (EUA)
Atriz: Kirsten Dunst, por "Melancolia
(Dinamarca/Suécia/França/Alemanha)
Ator: Jean Dujardin, por "The artist" (França)
Diretor: Nicolas Winding Refn, por "Drive" (EUA)
Roteiro: "Footnote", de Joseph Cedar (Israel)
Grande prêmio: empate entre "O garoto de bicicleta" (Bélgica/França), de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, e "Once upon a time in anatolia" (Turquia), de Nuri Bilge Ceylan
Curta-metragem: "Cross country" (Inglaterra), de Marina Vroda
Prêmio Câmera deOuro (para diretor estreante): "Las acacias" (Argentina/Espanha), de Pablo Giorgelli
Prêmio de Júri: "Polisse", de Maiwenn Le Besc (França)