
"Até Cathy Barberian sabe/
Não há uma volata que
ela não possa cantar"
da música "Your Gold Teeth"
do Steely Dan
Por séculos a música erudita pautou a música popular, ditando com
autoritarismo estético e formal o que seria aproveitado ou não na música de
acesso geral – já que, historicamente, a música clássica nunca foi acessível. O
contrário mal acontecia, ou seja, da música pop ou folclórica influenciar a
clássica (quando ocorria, prevalecia o lado “clássico”). Até que, na senda
aberta pelos modernistas da primeira metade do século XX, Shoenberg, Berg,
Stravinski,
Orff, entre outros, a turma de compositores da vanguarda erudita
que veio logo em seguida entrou para derrubar todas as barreiras. Um deles foi
o italiano Luciano Berio (
1925-2003), prolífero autor que, em 1964, compôs o que para
muitos é (e para mim também) sua obra-prima: as
“Folk Songs”, marco da fusão
entre pop, folclore e erudito.Concisão,
precisão e requinte em pouco mais de 20 minutos. Resultado de um trabalho de
pesquisa de Berio a cantigas folclóricas de diversas partes do mundo,
"Folk Songs" é perfeito em tudo: sonoridade, melodia, harmonia, métrica.
As sonoridades típicas do lugar de onde se originaram ganham uma síntese, um corpo,
como que uma nova linguagem sonora. O arranjo se resume a sete grupos de
instrumentos: flauta, clarinete, cello, violino, viola, percussão e harpa. Ah!
Claro, tem um oitavo instrumento fundamental e sem o qual a obra não existiria:
a voz da mezzo-soprano norte-americana Cathy Barberian. À época casada com
Berio, Cathy ganhou do marido esse ciclo de músicas, feitas especialmente para seu
vocal apurado e expressivo. Altamente influente em trabalhos para voz na música
como um todo, as "Folk Songs" se tornaram uma referência tanto para
compositores desta linha, como Meredith Monk e
Phillip Glass quanto para
cantoras pop como Elizabeth Frazer (
Cocteau Twins), Sinéad O'Connor, Joni
Mitchell, entre várias outras.
E as faixas? Todas impecáveis. Abrindo, "Black Is the Colour (Of
My True Love's Hair)" e "I Wonder as I Wander" – minha preferida,
com um lindo conjunto harmônico de viola, cello e harpa que forma um som de
sanfona “caipira” –, são adaptações livres de canções do compositor folk
norte-americano John Jacob Niles. A valsa “Loosin Yelav”, da Armênia, país dos
antepassados Cathy, descreve de forma fantástica a trajetória da lua, transmitindo
para os sons a impressão deste movimento onírico. “Rosssignolet Du Bois” vem
suave e assim se mantém, límpida, contrastando com a intensidade dramática
siciliana da seguinte, “A La Femminisca”.
"La Donna Ideale" e "Ballo" não provêm de bardos
populares anônimos; porém, são composições de Berio sobre temas folclórico-amorosos
de sua terra natal. A primeira vem de um poema no velho dialeto genovês,
"A Mulher Ideal", o qual diz que, se um homem encontrar uma mulher
educada, bem formada e com um bom dote, não pode deixá-la escapar. Já a outra, intensa
em seus arpejos de violino e cuja letra também é extraída de um antigo poema,
diz que o mais sábio dos homens perde a cabeça por amor, mas, em contrapartida,
resiste a tudo por causa desse sentimento. Ainda na Itália, a melancólica e
dissonante “Motettu de Tristura” baixa o tom lindamente.
A França retorna nas duas seguintes, inspiradas em peças resgatadas
pelo musicólogo Joseph Canteloube no idioma occitano. "Malurous qu'o uno
Fenno", bastante medieval com sua flauta doce acompanhando o canto, fala
sobre os desencontros conjugais entre homens e mulheres. Já "Lo
Fïolairé", em que uma menina em sua roda de fiar canta uma imaginária
troca de beijos com um pastor, é uma das mais belas do círculo. Com uma maravilhosa
performance de Cathy, que executa uma impressionante progressão harmônica, abre
com um violoncelo grave e introspectivo do desejo reprimido da moça, mas
progride e termina em acordes cristalinos e deleitosos de harpa. Um gozo.
A alegre “Azerbaijan Love Song” termina a obra em dança típica russa e
uma interpretação bem mais solta da solista, fechando este trabalho que é, do
início ao fim e através de várias lógicas, uma declaração de amor do autor à
sua amada.
Um disco pop com ares clássicos ou vice-versa, onde as faixas têm, inclusive,
como que feito para tocar nas rádios, o mesmo tempo médio de 2 min e 30 seg de
duração. Enquanto, nos anos 50 e 60, vários outros compositores modernos como
Berio, ao tentar exprimir os horrores do pós-guerra e as tensões de um mundo
dividido faziam de tudo para combater a tonalidade da música, ele não só
acolheu a escala cromática como, ainda, a reelaborou, criando uma obra única e
agradável a todos os ouvidos, do mais rebuscado ao mais desavisado. Afinal,
quando a música é boa, tudo acaba sendo, saudavelmente, a mesma coisa.
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O CD original traz ainda o “Recital I for Cathy” (para voz feminina e
17 instrumentos), considerada uma das mais importantes releituras musicais da
segunda metade do século passado. Luciano Berio escreveu esta debochada peça de
35 minutos de teatro em que inclui numerosas citações de história musical
(Bach, Monteverdi,
Ravel, Wagner, Prokofiev, Bizet e vários outros, inclusive
ele mesmo) em estilo tragicômico.
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FAIXAS:
1. Black Is The Colour
(Of My True Love's Hair) (EUA) - 3:01
2. I Wonder As I
Wander (EUA) - 1:42
3. Loosin Yelav
(Armênia) - 2:34
4. Rosssignolet Du Bois (França) - 1:17
5. A La Femminisca (Sicília, Itália) - 1:38
6. La Donna Ideale (Itália) - 1:02
7. Ballo (Itália) - 1:20
8. Motettu De Tristura (Sardenha, Itália) - 2:16
9. Malorous Qu'o Uno Fenno (Auvergne, França) - 0:55
10. Lo Fiolaire (Auvergne , França) - 2:50
11. Azerbaijan Love Song (Azerbaijão) - 2:09
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Ouça: