por Paulo Moreira
foto: Paulo Moreira |
Cheguei atrasado ao
terceiro dia do Canoas Jazz Festival e só vi o final do show do
octeto de Luizinho Santos. Mas o que vi só me confirmou o que eu já
sabia: que iria ser uma excelente apresentação. Vi todas as outras
vezes em que o octeto se apresentou e eles nunca fizeram nada menos
do que um concerto espetacular. Peço desculpas ao Luiz e à Bethy
por esta falta grave, porém, involuntária da minha parte. Vi
inteiro, porém, o show de Alegre Correa. Este guitarrista de Passo
Fundo morou fora do Brasil durante muito tempo e agora está de volta
à Floripa. No palco com ele, um quinteto, com destaque absoluto para
Uilian Pimenta, um pianista que vai dar muito o que falar. No
repertório, canções compostas pelo guitarrista que abrem espaço
para todos os integrantes da banda solarem. O problema, em minha
opinião, é o próprio Alegre que insistiu em fazer vocalises
acompanhando seus solos de guitarra em TODAS as músicas, deixando-as
umas iguais às outras. Além disso, o som não favoreceu, deixando o
líder da banda com um volume abaixo do que se esperava. A aparição
de Jorginho do Trompete na última música ajudou a levantar o
astral, pois tocou um solo muito bom no flugelhorn.
A coisa começou a
esquentar quando o baterista Kiko Freitas subiu ao palco com seu
trio, integrado pelo mestre Paulo Russo no baixo acústico - uma
verdadeira instituição musical do Brasil - e o não menos exímio
pianista gaúcho radicado no Rio, Rafael Vernet. Começando com
"Beautiful Love", do repertório do Bill Evans Trio, logo se viu que a magia iria se instalar na
próxima hora e não deixaria a cena. De "Prenda Minha",
tocada no baixo de Russo, até "Piano na Mangueira",
tivemos um concerto memorável. Uma aula de musicalidade e de empatia
entre os três integrantes. Kiko até exagerou, iniciando uma versão
de "Someday My Prince Will Come" com um solo de bombo
legüero! Agora, todos estão esperando por um registro do trabalho
deste grupo.
Bem, pra finalizar o
"filho do homem" merece um capítulo à parte. Acompanho o
trabalho de Ravi Coltrane desde 2000, quando o vi tocar no Free Jazz
Festival. Sempre o considerei um bom saxofonista, que conseguia fugir
da sombra acachapante de seu pai, um dos
pilares do jazz moderno. Mas confesso que não estava preparado para
revê-lo com a maturidade e a desenvoltura com que se apresentou em
Canoas. Acompanhado por um quarteto formado por excelentes músicos
(David Virelles, ao piano, Hans Glawichnig, no baixo acústico, e o
impressionante Johnathan Blake na bateria), Ravi desfilou sua técnica
exuberante, tanto no sax tenor quanto no soprano.
Mas parecia que
faltava alguma coisa. De repente, foi como se o espírito do pai se
apossasse de seu filho. Respondendo a este estímulo, reinterpretou
"For Turiya", composta por Charlie Haden para Alice
Coltrane, mãe de Ravi e uma figura importantíssima na sua escolha
pela música, quando a dúvida ainda o acometia. E para mostrar que
está em paz com o legado de seu pai, Ravi e seu grupo fizeram no bis
uma versão monumental da clássica "Giant Steps", canção
definidora do trabalho solo de Trane no início da década de 60. O
público saiu de Canoas flutuando. E esperando a confirmação da
quarta edição do festival.
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por Daniel Rodrigues
O que me mobilizou a ir ao Canoas Jazz Festival especialmente foi para ver Ravi Coltrane. Embora seja grande fã de jazz, poucas atrações me motivariam a ir a um ponto fora de Porto Alegre tão contramão. Mas desde que soube, através do Paulo Moreira, que Ravi Coltrane viria, não pensei duas vezes. Valia a pena.
Isso tudo porque Ravi é nada mais, nada menos do que pode se chamar de, como Paulo bem disse aqui, “o filho do homem”, e este homem se chama John Coltrane. Não à toa as quase invariáveis referências que faço a ele em meus textos musicais aqui no ClyBlog, pois o saxofonista é, para mim, o maior jazzista e um dos maiores músicos que já baixaram por estas bandas a qual chamamos de planeta Terra. Um mito na correta acepção da palavra. Eu e Leocádia Costa, que (não podia ser diferente) estava lá comigo, nutre como eu uma profunda admiração por sua obra, com a qual mantemos uma relação quase religiosa. Ver seu filho, o também jazzista, também saxofonista, também band leader (e muito parecido fisicamente com o pai) era uma ocasião especial.
Confesso que, por conhecer pouco do trabalho de Ravi, mesmo tendo ciência de que não são a mesma pessoa Ravi e John, fui com certo medo de me frustrar não sei exatamente com o quê: se em ser algo que não me tocasse tanto; que me desse a impressão de ser ele apenas uma farsa com um sobrenome que garante o credibilidade; que fosse tecnicamente perfeito, mas seco de emoção. Sei lá.
Mas, depois do excelente show de Kiko Freitas Trio, os temores foram embora na primeira execução de Ravi e seu trio. Irreparável. Ravi, como os bons virtuoses do jazz, é o próprio equilíbrio entre técnica e coração. O que se ouve em mestres do sax tenor como Dexter Gordon, Wayne Shorter, Coleman Hawkins, Sonny Rollins ou Joe Henderson vê-se claramente nele. Como, de forma exímia, foi seu pai, incomparável tanto pelo motivo óbvio, o de ser outra pessoa, quanto pelo de ser o maior ícone do jazz mundial. Ravi, no entanto, alinha-se a estes mestres que inclui John, dando uma bela continuidade e evolução ao que todos já construíram.
Show lindo e tocante, principalmente nas bem destacadas por Paulo, "For Turiya", tema enlevado e elevado cujo tema é, por si só, cheio de desvelos e assimetrias. Agora imaginem o improviso de Ravi? Espetacular, de tirar do chão. Extasiante. Aliás, este último é o termo que pode ser empregado para o bis do show, quando Ravi e sua maravilhosa banda retornaram para executar uma arrepiante “Giant Steps”. Num compasso mais acelerado e até mais pulsante que a clássica versão de 1959, não só parecia que John Coltrane havia baixado ali, em plena Canoas, como que Wynton Kelly assumira o piano, Jimmy Cobb as baquetas e Paul Chambers o baixo. Ao final, foi interessante ver o público quase sem acreditar no que presenciou demorando em sair da frente do palco mesmo depois de os músicos se despedirem totalmente.
Realmente essa sensação de deleite se manteve, ainda mais para mim e Leocádia, que compartilha comigo a admiração pelos Coltrane pai e, agora, filho. É das coisas mais bonitas ver esse tipo de laço que só a consanguinidade e a relação pai-filho suportam, ainda mais quando esta se expressa em uma arte tão elevada e grandiosa.