"Eu
inventei o negócio da música.
Onde está a estátua para mim?"
Phil Spector
Talvez
não combine muito com o espírito natalino fumar, beber e se drogar
compulsivamente dentro do estúdio de gravação. Muito menos andar
armado, a ponto de mirar uma espingarda nos integrantes dos Ramones para que estes o obedecessem. Pior: disparar um tiro a esmo e deixar
John Lennon com permanentes problemas auditivos. Mas, sobretudo, não
combina com o ato de usar um revólver para matar a
atriz Lana Clarkson em sua própria casa. Pois, ironicamente, esta
criatura, que bem poderia passar por qualquer delinquente, é nada
mais, nada menos que uma das mentes mais geniais que o mundo da
música pop já viu. Foi ele que concebeu integralmente este
histórico disco.
Claro
que estamos falando de Phil Spector. O talentoso produtor que deu
forma às obras-primas “Let it Be”, dos Beatles, a “Plastic Ono
Band”, do Lennon, e a “All
Things Must Pass”, do
George Harrison. Que é também o mesmo tirano que se trancafiava no
estúdio como fez em “Death
of a Ladies’ Man”, de Leonard Cohen, em 1977, para não deixar
ninguém entrar (nem mesmo o próprio Cohen). Mas, talvez, por uma
missão divina – motivada, quem sabe, por um milagre de Natal –
esse judeu pobre nascido no Bronx em 1939 não escolheu o caminho do
crime como seus amigos de bairro e encontrou sua salvação na música
para, passando por cima de todas as excentricidades, egocentrismos e
loucuras, entrar para a história. No final dos anos 50, esse
iluminado ajudou a dar forma à música pop, a forjar o que se passou
a chamar de enterteinment.
Compositor,
arranjador, produtor, instrumentista e até cantor, Spector ostenta
ao menos dois títulos de pioneirismo: o de primeiro multimídia da
indústria fonográfica e o primeiro grande produtor de discos. Pois,
além de todos esses predicados, ele também sabia empresariar astros
e encontrar talentos. E aí ele era infalível. Cabeça do selo
Philles Records, ele liderava projetos, lançava grupos e cantores,
direcionava carreiras. Tina
Turner, Ben King, The Righteous Brothers e Dusty Springfield passaram
por sua mão. Criador
de peças de forte apelo popular, mas com pés firmes no R&B, no
country
e no folk,
Spector inventou as teenage
symphonies, quando pôs
grupos vocais como Ronettes e Crystals a serviço de seus arranjos
elaborados e primorosos.
”A
Christmas Gift for You from Phil Spector” é o resultado dessa
profusão. Primeiro álbum-conceito de Natal do mercado fonográfico,
ajudou a impulsionar as hoje tradicionais vendas de música nessa
época do ano (o próprio título, inteligentemente sugestivo, já
induz ao ato da compra). Dono de um apuro técnico inconfundível das
mesas de som, Spector desenvolveu o que até hoje se conhece como
“wall of sound”,
ou seja, a “parede de som”, técnica própria dele que
aproveitava o estúdio como
um instrumento, explorando novas combinações de sons que surgem a
partir do uso de diversos timbres (elétricos e acústicos) e vozes
em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações.
É
isso que se ouve em todo o álbum, em maior ou em menor grau e sempre
na medida certa. Recriando melodias de standarts
natalinos, Spector, junto com o grupo de compositores e sob a batuta
de Jack Nietsche, pôs para interpretar em ”A
Christmas Gift...”, além dos já citados girl
groups Ronettes
e Crystals, a cantora Darlene Love e, para equilibrar, o grupo vocal
misto Bob B. Soxx & the Blue Jeans, cada um com três faixas
(exceto o último, com duas).
Cabe
a Darlene Love iniciar o disco com “White Christmas”, clássico
de Irving Berlin que, na mão de Spector, ganha uma dimensão
apoteótica. O primor do arranjo dá contornos s eruditos à música,
como uma minissinfonia. Mas, antes de mais nada, nada rebuscada e
saborosamente pop. Exemplo perfeito do seu método de gravação, a
música começa com a voz potente de Darlene no mesmo peso dos
instrumentos (banda e orquestra), que, por sua vez, soam com
amplitude, reverberados. A massa sonora vai se intensificando à
medida em que a carga emocional também avança na interpretação da
cantora. Ao final, banda, voz e cordas parecem explodir no ambiente,
quando atingem o ponto máximo do volume, que Spector modula
cirurgicamente. Nota-se um permanente equilíbrio de alturas:
percussão grave como tímpanos de orquestra, instrumentos de base
assegurando os médios e a voz, juntamente às cordas, com o
privilégio diferencial dos agudos, aqueles que fazem arrepiar o
ouvinte.
Na
sequência, “Frosty The Snowman”, com as Ronettes, traz o
marcante timbre agudo de Ronnie Spector – esposa do produtor à
época – animando mais o álbum, num R&B típico dos anos 50. O
coro das companheiras Estelle Bennett e Nedra Talley ao fundo encorpa
a harmonia, mesclando-se as cordas e à percussão permanentemente
cintilante dos chocalhos e sinos, como os do trenó do Papai Noel. Os
motivos natalinos, também com os característicos sininhos, voltam
na outra das Ronettes, o hit
“Sleight Ride”, com uma frenética levada de jazz
swing.
O
gogó romântico de Bobby Sheen, primeira voz da Bob B. Soxx &
the Blue Jeans (que tinha a própria Darlene Love mais Fanta James no
backing),
arrasa na versão para “The Bells of St. Mary's” – que ficou
conhecida com Bing Crosby no filme homônimo de 1945, em que, fazendo
um padre, o ator a interpreta totalmente diferente, acompanhado de um
coro de freiras e órgão. Aqui, Spector redimensiona a beleza
litúrgica da canção, aprontando um arranjo vibrante, carregado de
emotividade, com toques de balada de baile de anos 50.
“Santa
Claus Is Coming to Town” traz as Crystals Barbara Alston, Dee Dee
Kennibrew e Mary Thomas num R&B embalado e ao seu estilo vocal
peculiar. O trio reaparece em “Rudolph the Red-Nosed Reindeer”,
de pegada bem infantil, e na divertida “Parade of the Wooden
Soldiers” em que, para representar a lúdica “parada dos
soldadinhos de madeira”, Spector se vale, na abertura, de cornetas
marciais, mas sem perder o astral festivo e descontraído.
As
Ronettes, estrelas da Phillies, têm o privilégio de cantar outro
standart:
“I Saw Mommy Kissing Santa
Claus”, original na voz de Jimmy Boyd que atingira, em 1952, o 1º
posto da Billboard. Por sua vez, Darlene Love ganha “Winter
Wonderland”, um dos mais celebrados cantos natalinos
norte-americanos – composta em 1934 por Felix Bernard e Dick Smith
–, além da única composta para o disco: “Christmas (Baby Please
Come Home)", alçada em 2010 pela revista Rolling Stone à lista
de Grandes Canções Rock and roll de Natal, que justificou a
escolha: "ninguém
poderia combinar tão bem emoção e pura potência vocal como
Darlene Love”.
O
vozeirão de Bobby Sheen mais uma vez encanta na sacolejante “Here
Comes Santa Claus”, outro clássico natalino que, além da gravação
do autor – Gene Autry, hit
em 1947 –, também recebeu versões ao longo dos tempos de Elvis Presley (no aqui já resenhado "Elvis Christmas Album"), Doris
Day, Ray Conniff e Bob Dylan. Sinos de trenó, escala em tom alto,
contracantos, percussão reverberada, melodia em crescendo. Um típico
“wall of sound”
spectoriano.
Para finalizar, o próprio “cabeça” do projeto declama a letra e
“Silent Night” com o suave coro de todos os outros músicos ao
fundo, num desfecho se não brilhante como todo o restante, ao menos
coerente.
Dessa
trajetória iluminada mas altamente conturbada de Phil Spector – a
qual ele, encarcerado desde 2009 pelo assassinato da amante, segue
infelizmente desperdiçando –, fica a rica contribuição de seu
modo de compor e, principalmente, “apresentar” as músicas.
Spector foi uma verdadeira
máquina de sucessos, criando peças que serviriam de exemplo para
toda a geração da Motown e do rock de como fazer uma música
pegajosa e inteligente em menos de 4 minutos. Brian Wilson, Brian Jones, Rod Argent, Frank Zappa, Rogério Duprat, Brian Eno e até George Martin conseguiram pensar como um dia pensaram por causa do caminho aberto por Phil Spector. Sem ele não existiriam os conceitos
de hit
nem perfect pop.
Com Phil Spector a música popular virou negócio – e um negócio
muito bom de escutar. Se isso já não vale por um milagre de Natal,
ao menos justifica uma estátua.
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FAIXAS:
1.
White Christmas (Irving Berlin) - com Darlene Love - 2:52
2.
Frosty the Snowman (Steve Nelson/Walter Rollins) – com The Ronettes
- 2:16
3.
The Bells of St. Mary's (A. Emmett Adams/Douglas Furber) – com Bob
B. Soxx & the Blue Jeans - 2:54
4.
Santa Claus Is Coming to Town (J. Fred Coots/Haven Gillespie) – com
The Crystals - 3:24
5.
Sleigh Ride (Leroy Anderson/Mitchell Parish) – com The Ronettes -
3:00
6.
Marshmallow World (Carl Sigman/Peter DeRose) - com Darlene Love -
2:23
7.
I Saw Mommy Kissing Santa Claus (Tommie Connor) – com The Ronettes
- 2:37
8.
Rudolph the Red-Nosed Reindeer (Johnny Marks) – com The Crystals -
2:30
9.
Winter Wonderland (Felix Bernard/Dick Smith) – com Darlene Love -
2:25
10.
Parade of the Wooden Soldiers (Leon Jessel) – com The Crystals -
2:55
11.
Christmas (Baby Please Come Home) (Ellie Greenwich/Jeff Barry/Phil
Spector) – com Darlene Love - 2:45
12.
Here Comes Santa Claus (Gene Autry/Oakley Haldeman) - com Bob B. Soxx the Blue Jeans - 2:03
13.
Silent Night (Josef Mohr/Franz X. Gruber) com Phil Spector & artistas - 2:08
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OUÇA
O DISCO:
por Daniel Rodrigues