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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Grupo Corpo - "Parabelo" e "Piracema" - Teatro do SESI - Porto Alegre (13/09/25)

 

“Toda vez que vejo o Grupo Corpo, fico patriota.”
Luis Fernando Verissimo

Neste Brasil de mil incertezas, uma certeza há: o Grupo Corpo. Presenciar seus espetáculos, o que fazemos há mais de 30 anos, é estar de fronte ao que há de mais profundo, belo, filosófico e artístico deste país continental e rico culturalmente. Eles são dotados de uma assinatura própria, que se expressa em seus movimentos característicos de saltos, giros, quedas, rebolados, contorcionismos e desconjuntamentos dos mais diversos, preenchendo vazios e espaços com fúria e doçura. Fazia anos, desde a pandemia, que não os víamos, uma vez que não pudemos assistir a última montagem, “Primavera”, da dupla Palavra Cantada, em 2021. A última estreia que estivemos foi a de “Gil”, homenagem a e trilha de Gilberto Gil, há 6 anos. 

A expectativa, sempre grande, desta vez, então, era maior. Até porque “Piracema”, o novo balé, marca os 50 anos da companhia de dança mineira, que começou sua sina de unir dança e música brasileira ainda nos anos 70 elegendo “Maria Maria” de Milton Nascimento como passo inicial. Diante disso tudo, eles dificilmente guardariam algo menor para um momento tão significativo – embora, quando dos 40 anos do grupo, a peça “Dança Sinfônica”, com trilha de Marco Antônio Guimarães, tenha deixado um pouco a desejar. O que nos esperaria desta vez?

Consideramos um bom prenúncio do que viria com a primeira parte do programa. Como o Corpo sempre faz, trazendo um espetáculo antigo antecedendo a estreia, revimos pela quarta vez “Parabelo”, a arrebatadora montagem de 1996 com a genial trilha sonora de Tom Zé e José Miguel Wisnik e coreografia de Paulo Pederneiras. O espetáculo é o que talvez melhor defina o trabalho do Grupo Corpo entre os mais de 20 nessa linha que já criaram – e todos da mais alta qualidade. Símbolo da criação artística brasileira contemporânea, a peça é aclamada por onde passa, tanto que foi apresentada ao mundo na abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Colorido, popular e vibrante, mas também vanguardista e ousado, “Parabelo” é daquelas obras de arte que dão orgulho a um brasileiro por pertencer a esta mesma rica terra do Grupo Corpo chamada Brasil. 

O emocionante número final de "Parabelo", 
montagem símbolo do Grupo Corpo

Por “Parabelo” na parte inicial do programa se torna quase um problema para o Corpo, visto que é tão apoteótico, que deixa uma grande responsabilidade para o que vem seguir. Foi o que aconteceu com o já citado “Dança Sinfônica”, em 2016, que perde de longe em trilha e coreografia, ou quando antecedeu “Triz”, com trilha de Lenine e Bruno Giorgi, de 2013, uma boa montagem, mas que quase é solapada também pela beleza impactante de “Parabelo”.

Mas a companhia de Paulo e Rodrigo Pederneiras sabe o tamanho que tem. Com trilha de Clarisse Assad e coreografia de Rodrigo Pederneiras e Cassi Abranches, “Piracema” é, sim, à altura do que o Grupo Corpo representa. Mas não se trata de um trabalho fácil. Sua assimilação se dá aos poucos, ou melhor, no próprio desenrolar do espetáculo. Com um começo quase atordoante, com intensas percussões de diversas tonalidades e texturas, a coreografia se mostra vária, indeterminada, de difícil apreensão. A iluminação de Paulo e Gabriel Pederneiras oscila entre dureza e vivacidade, tendo como cenário um extenso painel escamado composto por milhares de latas de sardinha no fundo do palco. O piano preparado da música “cabeça” de Clarisse intensifica a atmosfera tribal, que aterra o espectador.

Cena de "Piracema": complexidade e beleza

Coreografia ousada e sintética para celebrar os 50 anos do Corpo

Depois, no entanto, a coreografia vai ganhando maior “organização”, por assim dizer, e se começa a compreender melhor a narrativa, que nada mais é do que uma metáfora da criação e da reinvenção por meio da ideia da tensão gerada pelo fenômeno natural da “piracema”, aquela mágica jornada dos peixes contra a correnteza para encontrar seu local de desova. A música passa pelo avant-garde à moda de violão, tendo ainda momentos de música clássica e da mais moderna música eletrônica. A atmosfera indígena que Pederneiras/Clarisse imprimem atravessa, no entanto, toda a peça, desde o som do mar, que a abre e a encerra, até os próprios beats de programação eletrônica, uma espécie de “nativofuturismo”. Não é comum se fazer referência a som “tribal” quando se fala em techno, drum & bass, acid house ou trance, subgêneros da música eletrônica? Pois, então. Na cosmologia dos povos originários, representantes da natureza primitiva, está também a criação do mundo através dos sons e da dança. 

“Piracema” mostra uma companhia madura com a sua obra e legado pela via da síntese, a qual não haveria de ser necessariamente palatável haja vista toda a complexidade cênica e conceitual que o Corpo construiu nesse meio século de palco. Quem já foi de Caetano Veloso a Ernesto Lecuona, de Villa-Lobos a Metá Metá, de Samuel Rosa a Chopin, de Uakti a Bruno Kiefer, de Philip Glass a Wagner Tiso, não haveria de se contentar com pouca densidade artística. Mais do que isso, no entanto, é constatar que esse grau de maturidade em arte é daqui, do Brasil. Um patrimônio. Por isso, é sempre uma surpresa assistir o Grupo Corpo, e, mais ainda, uma satisfação patriótica.


Daniel Rodrigues