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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

"Bingo: O Rei das Manhãs", de Daniel Rezende (2017)


É uma alegria quando se vai ao cinema – coisa que não tenho conseguido fazer com a frequência que gostaria – e o filme supera todas as expectativas. E quando isso acontece com o cinema do meu país, mais ainda. Foi assim com “Meu Nome não é Johnny” (2008), “Castanha” (2014) e “Aquarius” (2015), três dos principais representantes do cinema brasileiro do século XXI. A mesma sensação experimentei ao assistir recentemente “Bingo: O Rei das Manhãs”.  O longa é uma história muito bem contada e atenta a todos os aspectos fílmicos que as grandes obras contêm. Além disso, traz outras duas características marcantes dos filmes que vêm para marcar época: cenas inesquecíveis e a possibilidade de leituras subliminares.

A começar pelo argumento, rico e, literalmente, apimentado. O longa narra as desventuras de um artista que sonha em encontrar a fama e que se depara com sua grande chance ao se tornar Bingo, um palhaço apresentador de um programa de TV. Essa é a sinopse sem a luz correta. Virando o holofote para a direção certa, temos a verdadeira história: uma comédia dramática e biográfica inspirada na vida de Arlindo Barreto, ator que foi um dos primeiros intérpretes do palhaço Bozo, sucesso da TV americana que Silvio Santos importou, no começo dos anos 80, para comandar no SBT um programa idêntico. Claro, não tão igual assim, pois, como o filme mostra, precisou de uma boa dose de “brasilidade”, ou seja, ousadia, subversão e até picardia – como, por exemplo, trazer das boates noturnas a cantora Gretchen para sensualizar a milhões de crianças. Resultado: o programa atingiu o primeiro lugar na audiência das pueris manhãs da TV brasileira. Afinal, o que a Globo fazia com Xuxa e Cia. não era nenhum pouco diferente. O que valia mesmo era a guerra pelo Ibope.

Bingo e Gretchen: cenas quentes para crianças na TV brasileira dos anos 80
O diretor Daniel Rezende, requisitado montador de clássicos recentes da cinematografia nacional (“Cidade de Deus”, “Diários de Motocicleta”, “Tropa de Elite 1 e 2”) e internacional (“A Árvore da Vida”, do norte-americano Terrence Malick), soube mexer esse caldeirão de referências e equilibrar os elementos narrativos, a loucura da vida do protagonista com doses certeiras de comédia, dramaticidade, documentarismo e poesia.

O “vida loka” Augusto Mendes é um arquétipo do Narciso: abençoado mas confuso. Brilhantemente protagonizado por Vladimir Brichta, Augusto é um ator frustrado a quem restou apenas as pornochanchadas para atuar. Além disso, é separado da esposa (uma atriz de sucesso na “Globo” que não perde a chance de lhe rebaixar), pai de um menino que o tem como exemplo e filho de uma desvalorizada atriz de uma velha guarda, situação que o magoa por idolatrar a mãe. No entanto, corajoso, amante de sua profissão e convicto de suas habilidades cênicas, ele encontra na figura tão lúdica quanto assustadora do palhaço a máscara ideal para ascender, mas também para buscar a si próprio. Uma metáfora disso está numa das tais cenas inesquecíveis a que me referi: a do hilário e até desconcertante teste de Augusto para o papel de Bingo, momento em que o até então pouco aproveitado ator se transforma. É um lance especial do longa, quando se tem as visões da câmera da TV – objeto de observação do âmbito interno da obra – e a do próprio filme – externa, pela qual o espectador é quem enxerga o que está sendo contado. Esse conjunto/choque de ações interna e externa dá amplitude  à obra, haja vista a pegada “documental” e o jogo metalinguístico que isso resulta.

O personagem Augusto diante da imagem idolatrada da mãe: espelho
De fato, Rezende constrói uma narrativa que alia o entretenimento com uma abordagem mais profunda. O elemento “espelho” é referenciado em vários momentos, como o do camarim, que presencia a fusão ator/personagem; o evidente quadro com a imagem de sua mãe, pessoa a quem Augusto se espelha; e a própria tela da televisão, que, algoz, reproduz uma imagem distorcida da realidade. Como o Narciso, Augusto, a quem a beleza do mito grego é representada pelo brilho do talento, tenta buscar incessantemente o seu autoadmirado reflexo imergindo nas águas, mas acaba por (quase) se matar. O fundo do poço em que Augusto chega, bem como a retomada para um novo momento de vida que ocorre no transcorrer da trama, são, enfim, símbolos de morte e renascimento.

O palco, igualmente, é outra referência-chave no filme, seja o estúdio de TV, o picadeiro, o púlpito da igreja ou qualquer lugar que lhe oferecesse olhares, simbolizando o ator que quer incansavelmente os aplausos para, de alguma forma, sublimar o insucesso da mãe. Desse modo, um dos elementos básicos do cinema, a luz, ganha total importância, seja para, de forma prática, iluminá-lo no palco da vida, seja para, metaforicamente, trazer à luz aquilo que está escondido – caso dos loucos bastidores da TV brasileira daquela época e da própria personalidade autodestrutiva de Augusto, que afunda em drogas e sexo sob a capa de uma figura divertida e alegre. Não à toa, um ponto fundamental da trama é o anonimato do ator por trás do palhaço por conta de uma exigência contratual, o que se torna insuportável com o passar do tempo para Augusto e, principalmente, para seu filho, que, com os olhos descomplicados de criança, enxerga nisso uma mentira injustificável.

No palco e sob todos os holofotes
A direção de arte, a fotografia e a trilha sonora, tanto de canções incidentais (de Tokyo a Echo & the Bunnymen, Dr Silvana & Cia.) quanto compostas (Beto Villares), são trunfos de “Bingo”. Porém, muito do acerto do filme está, acima de tudo, nas atuações, em especial de Brichta. É ele quem protagoniza as melhores – e memoráveis – cenas, como as de interação com os “baixinhos” durante o programa, a da incrível “dança de regozijo” – quando atinge a liderança de audiência e é carregado nos braços da plateia de crianças – e a já referida do teste para o papel. Ator de formação em teatro e bastante tarimbado em tevê e cinema, Brichta consegue entrar no personagem de uma forma visceral. Seu êxito tem todos os méritos não só pelo tempo da comédia e pela carga certa de drama exigida mas, mais do que isso, pela interpretação do clown, coisa que qualquer ator sabe o quanto é difícil internalizar.

Criador e criatura se fundem diante
do espelho
Brichta, ao encarnar o palhaço mais "sexo, drogas e rock'n' roll" da história, sustenta com muita habilidade a dicotomia principal do filme, que é a amoralidade da vida adulta e a inocência da fase infantil. Fica claro que, quando as questões da infância não são devidamente resolvidas, o adulto recorre a perigosos brinquedos para submergi-las. Como a beleza de Narciso conduzida por  Liriope, sua mãe, pelo meio da mentira. Novamente, luz e sombra, o que é e o que não é. Se o público via um palhaço sorridente, na realidade ele carregava por trás da máscara um homem infeliz e perdido no próprio ego.

Pode haver quem critique o desfecho, que em parte credita à conversão do ator à Igreja Evangélica sua recuperação como pessoa. A meu ver, isso passa batido, até por que de muito se sabe que isso realmente ocorrera com Arlindo Barreto, o verdadeiro Bozo. O fato é que estas lendas em torno do Bozoca Nariz de Pipoca que, quando criança, eu e outras milhares assistíamos (sempre o preferi à Xuxa), são trazidas no filme. prestando um serviço documental de uma fase gloriosa – e agora, um pouco menos obscura – da TV brasileira. Agora dá pra entender o que me foi uma decepção na época: quando o Bozo "de verdade" sumiu de repente para entrar o sem graça do Luis Ricardo.

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trailer de "Bingo: O Rei das Manhãs"



por Daniel Rodrigues