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terça-feira, 31 de julho de 2012

Stevie Wonder - "Innervisions" (1973)



Ou isso é uma visão em minha mente?
verso da canção “Visions”



Quando vi  Paul McCartney ao vivo chorei praticamente do início ao fim do show. Eu já previa que isso ia ocorrer, tendo em vista meu sentimento por sua obra, tão formativa quanto vital para a história da arte moderna – e até porque o podia fazer sem constrangimento, já que todo o estádio fazia igual a mim. Porém quando assisti pela TV Stevie Wonder no Rock in Rio 2011 eu não esperava que o mesmo acontecesse. E aconteceu... via satélite. Chorei música atrás de música, tanto nas lentas quanto nas agitadas – o que virou motivo de chacota entre os amigos. Mesmo já tendo boa parte da discografia dele há muito tempo, essa reação me surpreendeu, pois eu mesmo não tinha noção do quanto a obra mágica deste gênio (e isso eu já sabia) tinha tanto a ver comigo e que estava tão impregnada em minha alma. Mas se todas as músicas me tocavam, parei para pensar naquela hora, entre soluços e uma felicidade imbecil, com qual disco eu mais me identificava, uma vez que gosto de todos. A resposta veio como numa visão: “Innervisions”.
A escolha só podia ser de cunho emocional, pois TODA a discografia de Stevie Wonder dos anos 70 até o início dos 80 é fundamental. Assim como o lindo  "Talking Book"  (1972), já resenhado aqui, o exuberante “Songs in the Key of Life” (1976) ou a magnífica trilha sonora “Journey Through the  Secret Life of Plants” (1979), “Innervisions” é item obrigatório na prateleira de qualquer diletante. Um marco da black music considerado pelos críticos um dos melhores da música pop de todos os tempos. Mas o que para mim o diferencia e lhe dá um significado ainda maior é a relação estreita com universo onírico e figurativo de um artista que, cego desde a infância, é capaz de produzir uma arte absolutamente fulgurante, cristalina, repleta de verdade e sentimentos genuínos. Sua música vai no fundo do fundo do fundo.
“Innervisions” é o auge criativo de Stevie Wonder. A estas alturas, 1973, ele já não era mais o Little Stevie de quando surgira, aos 16 anos, como um prodígio; mas, sim, o consagrado Stevie Wonder, sucessor de uma linhagem que vem de Sam Cooke, Solomon Burke, Ray Charles, James Brown e que vai parar nos criativíssimos artistas negros da gravadora Motown como ele. Compositor nato, multi-instrumentista e dono de uma voz potente e deliciosa, capaz de ir de uma escala à outra sem esforço, Stevie já era nesta época um artista planetário que vendia milhões de discos. Mas, mais do que isso, “Innervisions”, Grammy de Melhor Álbum do Ano em 1974, é o resultado de um autoacolhimento pessoal, de um sentimento muito íntimo e definitivo de reconhecimento dele mesmo enquanto portador de uma deficiência. Não é à toa que a obra se refere justamente ao sentido que ele não possui: a visão (e será que não possui mesmo?...). Ali Stevie está pleno de si, fazendo com que o problema da falta de visão não seja um problema, mas, pelo contrário, um canal sensitivo que o fez se tornar alguém tão sensível que suas percepções se afinam a tal ponto de não precisar mais enxergar. Prova maior disso é que ele compõe, toca, canta, arranja e produz todo o disco. Até (pasmem!) a capa é concebida por ele: um desenho bastante simbólico em que a energia produzida por seus olhos ganha a atmosfera e a amplidão.
E as músicas, o que dizer? Somente nove faixas, perfeitas em tudo: melodia, harmonia, execução, arranjo, canto, edição de áudio. Clássicos do cancioneiro norte-americano e mundial, marcos do que de mais sofisticado e criativo se fez em música pop no século XX. O álbum abre mandando ver com “Too High”, um funk-jazz fusion cheio de um suingue tão contagiante que isso chega a exalar por sua voz e por todos os sons que emanam. Moderníssima em sonoridade e texturas, é tudo o que músicos cool de hoje gostariam de fazer mas não conseguem atingir. “Too fine”!
Se o clima começa animado e dançante, “Visions”, uma melancólica balada tocada em guitarra base, baixo acústico e guitarra-ponto entra delicada mas dizendo a que veio. De arrepiar. Cantada com extremo lirismo, sua letra fala de igualdade entre os homens e de um princípio natural capaz de promover paz para todos. A lei nunca foi aprovada/ Mas de alguma forma todos os homens sentem que estão verdadeiramente livres finalmente/ Será que realmente fomos tão longe no espaço e no tempo/ Ou isso é uma visão em minha mente?”.
Não seria exagero se Stevie quisesse acabar o disco já na segunda faixa, que é daquelas canções definitivas. Mas o bom é que não acaba!, e na sequência vêm o arrebatador tema-denúncia “Living for the City”, show de vocais e sintetizadores que aborda a opressão aos negros, e “Golden Lady”, um soul romântico e suingado tão belo que chega a reluzir. Sempre colando uma faixa à outra – como é característico de seus discos –, o astral leve de “Golden Lady” dá lugar ao funkão pesado de “Higher Ground”, tão rock em concepção que não precisou muito para que o Red Hot Chilli Peppers  a regravasse anos depois com mais distorção mas sem grande alteração no arranjo. Os versos: People keep on learnin'/ Soldiers keep on warrin'” (“As pessoas continuam aprendendo/ Os soldados continuam lutando”), viraram clássicos. Incrível, incrível.
Outra de deixar de o queixo caído é “Jesus Children of America”, soul cantado em escala decrescente, mas que, do meio para o fim, aumenta um tom, o que faz Stevie soltar, em várias vozes sobrepostas, seu afinado e cintilante falsete. O clima cai novamente, agora para uma suíte romântica ao piano de fazer qualquer casal brigado reatar: “All in Love is Fair”, típica balada Motown, com sua levada carregada de sentimento e um refrão que explode em emoção. Nessa Stevie dá uma verdadeira aula de canto. De chorar, ainda mais no fim em que bateria, voz e piano dão os suspiros finais.
Mas  se Stevie é hábil nas lentas, também possui o mesmo talento para fazer mexer o esqueleto. “Don’t  You Worry ‘bout a Thing”, que vem logo em seguida, é uma rumba marcada no piano e nos chocalhos que faz enxugar as lágrimas e levantar o astral de novo. Usada mais de uma vez no cinema, como na comédia “Hitch” (a cena do passeio de Jet-ski pelo rio Hudson de Nova Iorque), é daquelas músicas tão alegres que remetem diretamente ao colorido alegórico da cultura africana, influência sempre tão presente e hibridizada na obra de Stevie. O disco encerra na atmosfera melódica e gostosa de “He’s Misstra Know-it-all”, com seus bongôs acompanhando a bateria e o piano num andamento suave e suingado que, ao final, vai sumindo devagarzinho enquanto Stevie improvisa nos vocais.
Essas cores e esse brilho estavam no palco quando vi Stevie pela TV no Rock in Rio. Aos 70 anos, toda aquela verdade e prazer de produzir uma arte pura e elevada podia ainda ser percebida. Não tinha como não ficar tocado. Reouvi “Innervisions” dias depois do show, ainda sob efeito da apresentação. Mas não chorei mais, pois me dei conta de definitivamente se tratar de um dos artistas mais importantes para a minha vida. Ele, que eu já sabia ser um dos maiores de todos os tempos, como Mozart, Ravel , Coltrane , Chico  e o próprio MacCartney. Pode colocá-lo tranquilamente nesta fila, que aqui pra mim o altar dele já está reservado.

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FAIXAS:

1. "Too High"  Stevie Wonder 4:36
2. "Visions"  Wonder 5:23
3. "Living For The City"  Wonder 7:23
4. "Golden Lady"  Wonder 4:58
5. "Higher Ground"  Wonder 3:43
6. "Jesus Children Of America"  Wonder 4:10
7. "All In Love Is Fair"  Wonder 3:42
8. "Don't You Worry 'bout a Thing"  Wonder 4:45
9. "He's Misstra Know-It-All"  Wonder 5:35


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Ouça:
Stevie Wonder Innervisions



terça-feira, 10 de abril de 2012

Maurice Ravel - "Bolero" (1928)

"Ele sabe muito bem o que fez.
Não se pode falar de forma
nem de desenvolvimento ou modulação (...)
é uma coisa que se autodestroi,
uma partitura sem música, uma fábrica orquestral sem objeto,
um suicida cuja arma é apenas o alargamento, a amplificação do som."
Jean Echenoz, 
escritor francês, autor do romance "Ravel"


Um único movimento.
Uma sequência rítmica que se repete ao longo de mais de 15 minutos assumindo variações, adquirindo forma, desfazendo-se e incorporando elementos. Ora erguendo-se em ênfases, ora reduzindo-se quase a silêncio.
Uma obra-prima minimalista de linhas grandiosas, tons heróicos, um acento levemente ibérico e percussão quase militar.
Uma composição crescente que vai ganhando corpo, forma, amplitude pelo acréscimo progressivo de instrumentos, partindo de um vazio sonoro até chegar um final apoteótico no qual todos os elementos se unem para propiciar um êxtase total.
Modelo de composição altamente moderno e sofisticado, influente para a música da sequência do século 20, encontrado com frequencia em gêneros tidos por vezes como limitados ou burros, como a música eletrônica, por exemplo.
Este é o "Bolero".
De Maurice Ravel.
Um único movimento.
Um movimento único.

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FAIXAS:
1. Boléro (16:13)
2. La Valse (13:17)

*Os primeiros lançamentos em disco de "Bolero" apareceram em um compacto que tinha "La Valse" no outro lado. Teve vários outros formatos posteriormente mas ainda há edições onde se encontra esta primeira disposição.
*Há divergências quanto à duração oficial da peça: originalmente, pela partitura de Ravel ela teria algo em torno de 14 minutos, porém execuções mais lentas chegam mesmo a ter durações superiores a dezoito.
* A minha versão, que tenho em casa, da Slovak Radio Symphony Orchestra, tem duração de pouco mais de dezesseis minutos.
*"La Valse", apenas pra não deixar passar, também é uma peça bastante interessante. Intensa, de tom grandioso, misterioso e de valseado levemente insinuado. Muito valorosa também e não deve ser ignorada, de forma alguma.


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Ouça:
Bolero - Maurice Ravel (Orquestra Sinfônica de Londres - regência Valerie Gergiev)
La Valse - Maurice Ravel (Orquestra Filarmônica Radio France - regência de Myung-Whun Chung)

Cly Reis

domingo, 21 de agosto de 2011

Stravinsky/Debussy/Ravel/Toyama– Concertos OSPA – Teatro Dante Barone – Porto Alegre/RS (16/08/2011)




Nunca tinha visto uma orquestra fazer bis. Pois na noite de 16 de agosto, no Teatro Dante Barone, da Assembleia Legislativa do RS, presenciei isso. Foi no 15° Concerto da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) – Temporada 2011, desta vez sob a ótima regência do maestro japonês Kiyotaka Teraoka, oficial da Orquestra Sinfônica de Osaka.
Em junho, já tinha assistido a outro concerto da Ospa, em homenagem Sergei Rachmaninoff. Muito bom. Mas este foi magnífico. A começar pela primeira peça: o balé “Petrouchka”, do genial maestro e compositor russo naturalizado francês Igor Stravinsky (1882-1971), que eu já adorava e tinha a maior vontade de ouvir ao vivo pela primeira vez. E as minhas expectativas foram totalmente atendidas. “Petrouchka” conta a história de um fantoche tradicional russo feito da palha e um saco de serragem como corpo que acaba por tomar vida e ter a capacidade amar. Como a outra grande obra de Stravinsky, o marco “A Sagração da Primavera” (1913), “Petrouchka”, feita entre 1910 e 1911, é absolutamente revolucionária, sendo uma das maiores responsáveis por mudar a cara da música universal no último século.


 A peça de Stravinsky inova em estrutura rítmica, orquestração, timbrística, forma, harmonia, uso de dissonâncias. Uma obra complexa e moderníssima que valoriza, particularmente, a percussão acima da harmonia e da melodia, algo nunca visto antes na música erudita. Influenciou largamente trilhas para cinema, a se perceber, por exemplo, uma clara referência em dois históricos temas: a do hitchcockiano “Psicose”, “hino” do suspense composto por Bernard Herrmann, com seus gritos agudos de violino, e a de “Tubarão”, de John Williams para o thriller de Spielberg, com aquela inesquecível levada minimalista de cellos em duas notas, repetem trechos de “Petrouchka” de forma quase idêntica.

Kiyotaka Teraoka regeu com brilhantismo
as peças de Stravisky, Ravel e Debussy
e ainda proporcionou um
emocionante e surpreendente bis.
O balé também tem várias parecenças com a música pop. As quatro partes que compõem a obra são coladas umas às outras, imprimindo uma unidade incrível à música como um todo, mesmo com tantas variações. Esse expediente foi utilizado com inteligência, por exemplo, pelos Beatles no clássico e influente disco "Sgt. Peppers". Outro detalhe muito similar à música pop é a forma como essas partes se interligam: uma sequência de bombo, forte e contínua, igual aos rolos de bateria que o rock instituiu.
Na segunda parte do concerto, seguiram a bela “Petite Suite”, do impressionista Claude Debussy (1862-1918), e “Pavanne pour un Enfante Défunte”, de Maurice Ravel (1875-1937), que, mais do que a de Debussy para com sua grande obra (“Prélude à L’Apres-Mid d’un Faune”), nem chega perto da genialidade de seu “Bolero”, esta, sim, um verdadeiro patrimônio da humanidade.

Maestro Yuzo Toyama:
lenda viva em seu país.
Mas a surpresa guardava-se para o final. Lembram-se que havia mencionado que nunca tinha visto uma orquestra tocar um bis? Pois a incrível “Rhapsody for Orchestra”, do maestro e compositor japonês Yuzo Toyama (ao qual eu dei graças a Deus por passar a conhecer) foi o que motivou. Nascido em 1931, Toyama é vivo, idolatrado em seu país e, mesmo a idade avançada, ainda se apresenta regendo por aí. “Rhapsody...”, sua obra mais celebrada, de 1960, me transportou para dentro dos filmes clássicos de Korosawa como “Os 7 Samurais” e “Yojimbo”. A abertura, só com percussão, adaptando a musicalidade típica do Japão feudal, é um desbunde. Rico em harmonia e construção melódica, o intenso e curto número de Toyama (pouco mais de 7 minutos) ainda desfecha incrivelmente. Depois de um breve silêncio (um “Ma”, na terminologia da música tradicional japonesa), um dos percussionistas retoma-a maravilhosamente percutindo duas bachi, pás de madeira adornadas que produzem um som fino e estridente. Dali para um final triunfante, aplaudido de pé por uns bons cinco minutos pelo bom público presente. E o bis veio exatamente a partir da repetição deste último trecho, para entusiasmo geral.
O maestro Teraoka, claramente afeito à obra do conterrâneo, colocou o coração na batuta e regeu com emoção extra, o que contagiou orquestra e plateia. Satisfeito, voltei louco para rever um bom Kurosawa e conhecer mais a obra do agora admirado Toyama.
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Rhapsody for Orchestra