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quarta-feira, 4 de julho de 2018
Música da Cabeça - Programa #65
“Isto é como encontrar uma nova câmara na Grande Pirâmide”. As palavras do genial saxofonista Sonny Rollins seriam exageradas se não estivessem se referindo a outro gênio do instrumento, do jazz e da música universal: John Coltrane. As recém-descobertas e divulgadas gravações inéditas do músico norte-americano e seu célebre quarteto estão no quadro “Música de Fato” desta semana. Ainda, muitas outras maravilhas sonoras como a soul brazuca de Tim Maia, o gothic industrial da Alien Sex Fiend, o hawaiian pop de Israel Kamakawiwo'ole e o balê avant garde de Igor Stravinsky. E ainda tem mais! Motivo de sobra pra você não perder o programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e revelações: Daniel Rodrigues.
Rádio Elétrica:
quinta-feira, 3 de agosto de 2017
Meus 10 melhores baixistas de todos os tempos
De novo, minha ressalva é pelos critérios. Como respeitar uma seleção que não inclui, pelo menos entre os 40, nomes fundamentais do instrumento para o desenvolvimento da música pop como Geddy Lee, do Rush, ou Steve Harris, do Iron Maiden? “Ah, Simon Gallup (The Cure) e Matt Freeman (Rancid) não são ‘dinossauros’ virtuosos”. Mas Krist Novoselic (Nirvana) nem Colin Greenwood (Radiohead) o são – e estão entre os votados. E mais: está lá – por merecimento, diga-se – o jazzista Charles Mingus. Ok, mas, se vai entrar na seara do jazz, da qual diversos músicos são de altíssima qualidade, técnica e influência, como não abarcar os óbvios nomes de Ron Carter, Paul Chambers, Jimmy Garrison, Stanley Clarke, Marcus Mïller e Dave Holland? Ou ainda: em 40, nenhum brasileiro? Nem Dadi, Bi Ribeiro ou Arthur Maia? Num mundo globalizado e conectado como o de hoje, foi-se o tempo em que músicos como eles eram meros desconhecidos de um país de música desimportante para o cenário mundial.
Como dizem por aí: “se não sabe brincar, não desce pro play”! Parece, sinceramente, que a tão consagrada NME não tem gente suficientemente entendedora daquilo que está tratando. As lacunas, sejam pelos critérios tortos, desconhecimento ou até preconceito, comprometem as escolhas largamente. Além disso, a ordem de preferências é bastante questionável. Parece terem optado por contemplarem baixistas de todos os estilos e subgêneros dentro daquilo que se considera música pop e deram “com os burros n’água”. Claro que há acertos, mas muito mais pela obviedade (seriam também loucos de não porem Jaco Pastorius, John Paul Jones, Kim Deal ou John Entwistle), fora que há aberrações como Flea aparecer numa ridícula 22ª posição - a Rolling Stone, em 2011, havia escolhido o baixista do Red Hot Chili Peppers como 2º melhor...
Pois, então, minimamente tentando “corrigir” o que li, monto aqui a minha lista de 10 preferidos do contrabaixo. Toda classificação deste tipo, inclusive a minha, é cabível de julgamento, sei. Porém, ao menos tento, com o conhecimento e gosto que tenho, desfazer algumas injustiças a quem ficou inexplicavelmente mal colocado ou, pior, nem incluso foi. E faço-o com algumas regrinhas: 1) sem ordem de preferência; 2) lançando breves justificativas e; 3) ao final de cada, citando três faixas em que é possível ouvir bons exemplos do estilo, performance e técnica de cada um dos escolhidos.
1 - Peter Hook
Um dos mal colocados da lista da NME, Peter Hook é certamente o baixista da sua geração que melhor desenvolveu sua técnica, tornando-se quase que o principal “riffeiro” do New Order. Entretanto, seu estilo próprio e qualidade já se notam desde o 1º disco da Joy Division. Baixo inteligente, potente e de muita personalidade.
Ouvir: “She’s Lost Control” (Joy Division); "Leave Me Alone" (New Order); “Regret” (New Order)
2 - Ron Carter
Qualquer um que pense em elencar os melhores contrabaixistas de todos os tempos, jamais pode deixar de mencionar o mestre do baixo acústico, cujo toque inconfundível tem inequívoca presença para a história do jazz, da MPB e da música pop moderna. O homem simplesmente tocou no segundo quinteto clássico de Miles Davis, participou da gravação de “Speak No Evil”, do Wayne Shorter, e tocou nos discos “Wave” e “Urubu” de Tom Jobim, pra ficar em três exemplos. Aos 80 anos, Ron Carter é uma lenda vida.
Ouvir: “Blues Farm” (Ron Carter); “O Boto” (com Tom Jobim); “Oliloqui Valley” (com Herbie Hancock)
3 - Flea
O cara parece de outro mundo. Compõe linhas de baixo complexas e não apenas sustenta tal e qual durante os show como o faz improvisando e pulando enlouquecidamente. Vendo Flea no palco, seja na mítica banda punk Fear, no Chili Peppers ou em participações como as com Jane’s Addiction e Porno for Pyros, parece fácil tocar baixo. Como diziam Beavis & Butthead: “Flea detona!”
Faixas: “Sir Psycho Sexy” (Red Hot Chili Peppers); “Pets” (Porno for Pyros); “Ugly as You” (Fear)
4 - Jaco Pastorius
Dos acertos da lista da revista. Afinal, como deixar de fora a maior referência do baixo do jazz contemporâneo? O instrumentista e compositor, presente em gravações clássicas como “Bright Size Life”, de Pat Metheny, e “Hejira”, de Joni Mitchell, equilibra estilo, timbre peculiar e rara habilidade. Como seria diferente vindo de alguém que se diz influenciado (nessa ordem) por James Brown, Beatles, Miles Davis e Stravinsky?
Ouvir: “Birdland” (com Weather Report); “The Chicken” (Jaco Pastorius); “Vampira” (com Pat Metheny)
5 - Geddy Lee
Quando o negócio é power trio, fica difícil desbancar qualquer um dos três no seu instrumento. Caso de Geddy Lee, do Rush. Mas acreditem: ele não está na lista da NME! Pois é: alguém que cria e executa linhas de baixo altamente criativas, de estilo repleto de contrapontos (e ainda toca teclado com o pé ao mesmo tempo), não poderia deixar de ser citado jamais. Pelo menos aqui, não deixou.
Ouvir: “La Villa Strangiato”; “Xanadu”, “Spirit Of The Radio”
6 - Les Claypool
Outro dos gigantes do instrumento que não tiveram sua devida relevância na lista da NME (29º apenas). Principal compositor de sua banda, o Primus (outro power trio), Claypool, além disso, é um verdadeiro virtuose, que faz seu baixo soar das formas mais improváveis. Tapping, slap, dedilhado, com arco: pode mandar, que ele manja. Domínio total do instrumento.
Ouvir: “My Name is Mud”; “Tommy The Cat”; “Mr. Krinkle”
7 - Simon Gallup
Se Peter Hook aperfeiçoou o baixo da geração pós-punk, colocando-o à frente muitas vezes da sempre priorizada guitarra no conceito harmônico do Joy Division e do New Order, o baixista do The Cure não fica para trás. Dono de estilo muito próprio, seu baixo é uma das assinaturas do grupo. Se a banda de Robert Smith é uma das bandas mais emblemáticas dos anos 80/90 e responsável por vários dos hits que estão no imaginário da música pop, muito se deve às quatro cordas grossas de Gallup.
Ouvir: “Play for Today”; “Fascination Street”; “A Forest”
8 - Mark Sandman
Talvez a maior injustiça cometida pela NME – pra não dizer amnésia. Se fosse apenas pela mente compositiva e pelo belo canto, já seria suficiente para Sandman ser lembrado. Mas, além disso, o líder da Morphine, morto em 1999, era um virtuose do baixo capaz de inventar melodias com a elegância do jazz e a pegada o rock. Fora o fato de que seu baixo soava a seu modo, com a afinação totalmente fora do convencional, que ele fazia parecer como se todos os baixos sempre fossem daquele jeito: geniais.
Ouvir: “Buena”; “I'm Free Now”; “Honey White”
9 - Bernard Edwards
A Chic tinha na guitarra do genial Nile Rodgers e no vocal feminino e no coro de altíssima afinação uma de suas três principais assinaturas. A terceira era o baixo de Bernard Edwards. O toque suingado e vivo de Edwards é um patrimônio da música norte-americana, fazendo com que a soul disco cheia de estilo e harmonia da banda influenciasse diretamente a sonoridade da música pop dos anos 80 e 90.
Ouvir: "Good Times" (Chic); “Everybody Dance“ (Chic); “Saturday” (com Norma Jean)"
10 - Bootsy Collins
Quando se pensa num contrabaixista tocando com habilidade e alegria, a imagem que vem é a de Bootsy Collins. Ex-integrante das míticas bandas Parliament-Funkadelic e da The J.B.’s, de James Brown, Bootsy é um dos principais responsáveis por estabelecer o modo de tocar baixo na black music. Quem não se lembra dele no videoclipe de “Groove is in the Heart” do Deee-Lite? A NME não lembrou...
Ouvir: “P-Funk (Wants to Get Funked Up)” (com Parliament); “Uncle Jam” (com Funkadelic); “More Peas” (com James Brown & The J.B.'s)
por Daniel Rodrigues
com a colaboração de
Marcelo Bender da Silva
e Ricardo Bolsoni
sexta-feira, 15 de janeiro de 2016
“BOULEZBOWIE”: Esse (esquizo)frênico mundo que une (ou separa) a vanguarda do pop
Tá sempre morrendo gente pública por aí, sei. Mas nem sempre
tenho o que lamentar. Morre gente conhecida toda semana, o que não quer dizer,
necessariamente, que embora conhecidas de um relativo número de pessoas (às
vezes, milhares delas), sejam de fato importantes. Essa dialética é típica
desses tempos descriterizados e esquizofrênicos que vivemos. Lágrimas demais ou
de menos sem se saber o porquê. Mas não deixa de ser, no mínimo, questionável,
ainda mais quando, em menos de uma semana, morrem duas pessoas de extrema
importância e ocupantes cada um de uma dessas esferas: o quase ignoto e o
altamente popular. O quase ignoto por conta do mesmo descritério e
esquizofrenia que empurra as massas a rechaçarem qualquer profundidade; o outro,
altamente popular e cuja comoção pela morte foi gigantesca, é às vezes reduzido
a um percentual mínimo daquilo que ele mesmo representa.
De minha parte como jornalista, crítico e diletante, lamento
de verdade ambas as perdas. Falo de Pierre Boulez e David Bowie.
O rocker de batuta
Boulez, o compositor, maestro, professor e ensaísta francês,
desconhecido totalmente de um relativo número de pessoas, era o último
representante dos compositores da vanguarda erudita da primeira metade do
século XX. Junto com os contemporâneos John Cage, Kerlheinz Stockhausen, Luciano Berio, Edgard Varèse, Benjamim Britten e Luigi Nono, ele, seguindo a sina
aberta pela tríade de Viena nos anos 10 (Schöenberg, Berg e Webern), pôs de
ponta-cabeça toda a tradição musical, subvertendo todos os conceitos: tom,
harmonia, métrica, instrumentalização, timbrística. Raivoso e aferrado, Boulez
foi um roqueiro punk com 40 anos de antecedência ao movimento. De modos
elegantes e clássicos, por dentro era um punk total, combativo até no seu meio.
A mesma agressividade expressiva, a violência como método e estilo. À
imbecilidade ele respondia com doses desmedidas de cerebralismo. Era sua adaga
perfurante. “Acredito que a música deve
ser uma histeria coletiva de palavras violentas sobre o tempo presente”,
disse em 1948.
Anos atrás, quando de seu aniversário de 80 anos (morreu dia
5 de janeiro, aos 90), li um artigo que, pertinente e conscientemente, colocava
“Pli selon Pli”, uma de suas mais concisas e importantes obras, ao lado de
outras duas significativas revoluções na música do século XX: o nascimento da
bossa-nova com “Chega de Saudade”, com João Gilberto (1958), e a não menos
vanguardista “Gesang der Junglinge” (1956), obra referencial do alemão Stockhausen.
Dessa vez, Boulez foi notícia novamente, mas muita gente que
passou por esta não deu bola, o que é normal. Um compositor e maestro ligado a
antipopulares termos como dodecafonia, atonalismo, eletroacústica, serialismo
ou música aleatória só pode mesmo não ser popular. Ser desconhecido de um
grande número de pessoas era, certamente, um elogio para Boulez. O
desconhecido, afinal, nunca o assustou. Pelo contrário: era-lhe combustível. De
língua afiada e criatividade idem, o jovem que estudara com Messiaen, logo o mandou
às favas e o confrontou ideologicamente. Fez o mesmo com outro professor, Leibowitz,
sem resquício de culpa. Jamais lhe existiam mestres. Não são poucos seus
manifestos ferinos e altamente intelectualizados escritos ao longo da vida onde
expunha suas ideias, o que o colocaram como um importante ensaísta da arte do
seu tempo.
Boulez é responsável, na longa carreira que teve, por
promover pelo menos três revoluções na música mundial. Afora as marcantes obras da juventude, as
cantatas "Le visage nuptial" (revista por ele quase quatro décadas
depois), "Le soleil des eaux", onde explorava os ensinamentos do
dodecafonismo aprendidos com Messiaen, e da primeira obra totalmente
serializada, “Polyphonie X”, para 18 instrumentos, é entre 1953 e 1957 que
lança a que é considerada sua primeira obra-prima: “Le marteau sans maître”
para conjunto e voz, de relativo sucesso e uma síntese surpreendente das várias
correntes na música moderna, englobando os mundos sonoros do jazz be-bop, o gamelão
balinês, músicas tradicionais africanas e melodias tradicionais japonesas. Até
o por ele satanizado Igor Stravinsky deixou de fora as críticas que recebia e
aplaudiu de pé.
Outra radical criação: a já mencionada “Pli selon Pli”, cuja
“original” data do final dos anos 50. Trata-se de um concerto inspirado em
poemas do poeta francês Mallarmé onde passa a explorar com veemência a ideia de
“obra em movimento”. Revisto em sua estrutura e métodos nas décadas seguintes,
foi ganhando novas versões à medida que o irrequieto compositor reavaliava sua
linguagem, fazendo com que, por conceito, sua concepção final estivesse sempre
por vir. Tal como o já mencionado João Gilberto, que reelabora incessantemente
os clássicos sambas da música brasileira em seu filarmônico violão, cunhando ao
longo do tempo sempre versões únicas da mesma melodia, “Pli selon Pli” “nunca”
acaba. Entendimento que só poderia brotar de alguém que representou tão
firmemente a geração pós-Guerra, cujas marcas ainda são sentidas mais de 100
anos de eclodida a primeira delas.
Na maturidade, quando poucos compositores eruditos de sua
geração não mais se arriscavam depois de tanto inovarem nas décadas anteriores,
Boulez manteve-se na ponta da vanguarda, propondo novas experimentações. Se a
música eletrônica o havia decepcionado nos anos 50 por sentir-se insatisfeito
com o resultado das fitas magnéticas e seu processo “inorgânico” de realização,
nos 70 volta à carga para dar-lhe nova identidade. Os meticulosos resultados
dessa “velha descoberta” seriam sentidos em 1980, quando compõe “Répons” (para
dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica). Ali, dá
luz a uma obra em que a ressonância e a espacialização dos sons criados pelo
conjunto se processam todos em tempo real, inclusive os elementos eletrônicos,
normalmente criada penosamente em situações controladas. Nova síntese, nova
profusão de ideias.
O fato é que, como um punk, amoral e dono da sua razão,
Boulez jogou-se no labirinto do desconhecido e dali tirou o magma que brotaria
dos vulcões de sua criatividade pronto para queimar todas as concepções
preestabelecidas. Da tensão secular, criou uma linguagem densa e lírica. Sua
partida deixa uma lacuna insubstituível. Um pilar que cede. O planeta Terra não
tem mais nenhum representante da original vanguarda do século XX, a geração
pós-Wagner, que passa por Strauss, Mahler e Debussy. A geração que aprendeu com
– ou aprendeu a contrariar – Stravinsky, Eric Satie, Bela Bártok e Maurice Ravel.
O longevo Boulez ainda resistia, e agora leva consigo uma herança que, a ver
por esses tempos de descritério e esquizofrenia (e desmemoriados,
consequentemente), um dia possa se apagar da memória do homem. Quiçá, cheguemos
ao triste dia em que serão desmentidas oficialmente as barbaridades do Holocausto
que Boulez presenciou e da sua forma combateu. Quem sabe, foi bom mesmo ele não
viver tanto mais para ter de presenciar isso.
vídeo "Pli Selon Pli", Pierre Boulez
A batuta do rocker
Assim como para Pierre Boulez, o desconhecido também sempre
foi combustível a David Bowie. Se o maestro buscava esse estado
incessantemente, de modo a não repetir-se e recriar sua obra ao longo dos
tempos, Bowie, no meio do mainstream, não só fazia isso como
transformava essa busca em produto “vendável”. Ninguém como ele se valeu do
universo de referências estilísticas da sociedade moderna e os reelaborou como
Bowie, forjando um trabalho próximo do público mas sem deixar de infundir-lhe
“dificultações”. Boulez, inventor de muitas dessas complexidades formais quase
sempre desconhecidas do grande público, até por isso era quase um completo
desconhecido do próprio. Bowie, na outra ponta, era popular mas impunha-se uma
tarefa provocativa e rara: a de propor essas “dificultações desconhecidas” e
torná-las, se não conhecidas, pop e assimiláveis.
Poderia falar longamente sobre vários dos períodos que Bowie
orquestrou. De Ziggy Stardust ao vilão mutante Nathan Adler de “Outside”,
passando pelo “Pin Up” à fase “limpa” de artifícios de Berlim. Mas em meio à
enxurrada de coisas a seu respeito escritas e ditas nos últimos dias creio que
o melhor recorte para esse momento é essa contribuição da desacomodação que o
artista britânico sempre trouxera. “Sou
uma prateleira de frascos vazios”, disse o poeta Fernando Pessoa em seu
“Livro do Desassossego”. Bowie foi esse frasco vazio, onde fazia caberem todas
as possíveis referências e mitos.
Escrevi sobre Bowie em meu livro, "Anarquia na Passarela",
algo que se baseia bastante na questão da moda e comportamento dos punks, mas
que vale tranquilamente para tal argumentação. Reproduzo dois:
“Vindo da cultura mod
londrina dos anos 60, logo foi formando um estilo próprio de dândi
ultrasofisticado e exagerado que desembocaria no seu ‘cameleônico’ individualismo
cênico. Bowie era uma estrela do rock que nunca é ele próprio como pessoa: ele
‘interpreta’ papéis num enorme ‘palco’ chamado show-business. Por causa deste distanciamento bretchniano que tem da cultura de massa logrou
influências vitais à cena [punk].”
“Tudo em Bowie era
estilo, o que se percebia na sua indumentária ultradandi, barroca e ‘camp’. Seu passado mod, os anos 50, o cinema expressionista, a Berlim ‘decadente’ e
suburbana, os anos pré-nazismo, o dandismo de Brummell, a androginia, a estética
dos cabarés. Tudo lhe era alimento para a formação de um estilo pessimistamente
decadente, cerebral e imaginário. Criava uma mitologia na qual nada era em vão;
em cada ‘máscara’ sua vinha um efeito estético e fantasioso.“
Por tudo isso, Bowie mostrou facilmente que fazer música pop
simplesmente é simplório e vago. Há de se adicionar personalidade e conceito
para que se produza algo significativo. Bowie entendeu isso cedo, catalisando
música, estilo, comportamento e equilibrando “alta” e “baixa” cultura – ou
melhor, quebrando as barreiras entre uma e outra. Entendeu que a vanguarda das
artes não existe apenas para impor a “alta cultura” de modo estanque e
autobajulador. É, sim, célula orgânica, viva, que, compreendida em seus
símbolos e elementos, podem e devem ser assimiladas, reelaboradas e deglutidas em
outros e diferentes níveis de cultura e conhecimento.
A carreira de Bowie, muito mais profunda do que apenas os
(ótimos) sucessos, é sabiamente contaminada pela vanguarda. "V-2
Schneider" contém claros traços de Boulez, Stockhausen e Varèse; o solo
atonal de piano de "Aladdin Sane" contém Cage e Ligeti; a trilogia berlinense (inclua-se "The Idiot", de Iggy Pop, da mesma leva), contém em sua sonoridade
pós-industrial os experimentos eletroacústicos fruto de ceticismo racional do
pós-Guerra; o recente “Blackstar” contém a sonoridade pós-jazz assimilada tanto
por maestros quanto músicos sem formação teórica como DJ’s, roqueiros e rappers. "Low" e “Heroes”, com Brian Eno, são tão estruturalmente minimalistas que o próprio “pai” do estilo, Philip Glass, homenageou a Bowie e Eno com o duo “Symphony” sobre ambos os álbuns. O
jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, para quem Bowie foi um
roqueiro refinado, observa que, “em
meados dos anos 70, Bowie abandonou a forma ternária da estrutura pop em favor
de formas semiminimalistas, caracterizadas por ataques secos e pulsações
rápidas”.
É por isso que se torna tão penosa e simbólica a perda de
Bowie: quem mais fará isso? É alarmante, se não desolador, que este papel nunca
mais seja cumprido. Quem assumirá (compreenderá ou dará a devida importância) ao
papel de unir e mimetizar essa ponte vanguarda-pop? Numa época em que streamings e mp3 circulam
descontextualizados de suas obras de origem (quando esta, de fato, existe, se é
que já não fora criada sem contexto algum), é salutar que um artista de quase
70 anos e 50 de carreira assombre o universo do entretenimento com o lançamento
de um disco, uma obra que se constitui em si própria. Uma obra.
Walter Benjamin provavelmente ficaria instigado com esse episódio
emblemático da morte de Bowie, e mais possivelmente ainda o ligaria com a já historicamente
simultânea perda do pilar oposto a ele, a de Pierre Boulez. A vanguarda e o pop
perderam seus calços, deixando um questionamento de dupla interpretação: a obra-de-arte
na música morreu também junto com os dois? Findaram-se duas eras basais para a
história da música através dos tempos? Todas as releituras de “Pli selon Pli” e
o obscuro “Blackstar” darão ainda muito a se desvelar se se quiser, a depender
do grau de (des)critério dos tempos (esquizo)frênicos que vierem adiante neste
século XXI recém iniciado. O que se sucedeu, com a morte dos dois, talvez tenha
sido um lampejo de que a arte musical esteja mais viva do que nunca. Ou, se
não, é porque se enterrou de vez junto com Bowie e Boulez. Aí, será quando o
desconhecido se tornará definitivamente desimportante.
video de "Blackstar", David Bowie
por Daniel Rodrigues
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)
"Ornette é um dos meus
astronautas favoritos".
Wayne Shorter
“’Kind of Blue’ era um álbum
bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na
época.
Então, quando Ornette surgiu,
ele de fato soava como se
pertencesse a
uma outra era,
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul
Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos
os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava
a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um
motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não
resenhei: Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento, Paulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The Cure, The Smiths, Cocteau Twins,
Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto
admiro? Do para mim formativo punk rock
(Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no
último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse
planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do
free-jazz como uma das mais revolucionárias
obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual –
de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.
Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do
jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e
“Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio,
não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova
direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman
era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No
início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de
seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as
progressões harmônicas do be-bop, já
demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de
acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas
dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si
próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.
Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um
patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente
coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool
jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi
que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de
consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu
melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas
artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György
Ligeti.
Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da
banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos
à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos
desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística
natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto.
“Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um
ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse
brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso
discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo,
longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry,
pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta,
incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.
Na revolução do free jazz, cada
membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em
alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as
amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado
ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade
técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é
outro. Os riffs e o tom estão lá como
os do be-bop; a elegância do blues trazida
do swing também. Mas o conceito e a
dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas
tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como
praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.
Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas
logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a.
Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo
retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria
lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o
compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância
desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais
“comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um
arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode
parecer um be-bop comum, mas, ditado
pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação),
definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução
da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu
modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.
Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah
Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois
de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman
influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do
naipe de Jimi Hendrix, Don Van Vliet, Frank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte
ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido
“Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our
Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of
America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976),
recriando-se com uma música dançante e suingada.
Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o
que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz
modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e
escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”,
recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os
quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul),
colocavam os dois discos em polos opostos: free
jazz versus modal. No entanto,
como ressalta Kuhn: “No fim das contas,
Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente
opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.
Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos
atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de
também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer
quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma
obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um
Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço,
Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem
soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos
sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se
libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.
********************
FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" -
9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" - 6:41
6. "Chronology" - 6:05
OUÇA O DISCO:
quarta-feira, 1 de abril de 2015
John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)
Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.
Gravado
em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em
fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma
referência essencial não só para toda a geração posterior do
jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock
clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob Gillespie, Moby, Peter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester
Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical,
“A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto
política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o
discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers,
quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você
entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver
pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto,
terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”,
sentencia o baixista Reggie Workman, que
tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a
criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e
pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.
O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
|
É
justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o
impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua
época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as
experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis
e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop,
jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista
Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro
interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo
protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir
em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que
incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a
cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da
presença de Deus.
Nas
breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk,
jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se
furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças
rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por
exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e
“Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época,
também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias
gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta
formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de
vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette
Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963,
“A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O
que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá
com sua música?”, indagavam.
A
resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A
Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e
improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro
ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto
foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo
“menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a
obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade
vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do
jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de
Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como
ser espiritual.
As
quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”,
ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa
original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em
um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement”
acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da
discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros
pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma
radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em
sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto
junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma
suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é
vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação
dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de
levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas,
que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som
as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que
naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”?
Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show
multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um
passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento
e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao
microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas
vezes.
Antes,
no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de
intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e
firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta,
sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo
inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então,
ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de
sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual
remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda
sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é
característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa
desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos
ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda
ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis
Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá
para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e,
depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff
pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce
um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.
Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a
colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution”
– minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do
álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy
como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece
que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e
a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho,
engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues.
Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e
Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente
exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e
imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente,
providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando
liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto
para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu
sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones.
Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e
precisas com outras longas e ressonantes.
Cabe a
Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no
prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante –
que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey,
Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –,
inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”.
Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque
caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se
incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos
timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e
bumbo.
A
“procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos
nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take.
Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na
verdade, não para de solar até o fim de sua participação na
faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e
engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma
sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando
quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus
característicos voicings, saltos de três intervalos acima da
tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia,
pura música.
Detalhe
para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece
segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico
Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe
perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando
Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no
calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas.
Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema
original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo
isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior
expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é
“A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como
diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.
Mas
não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente
cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros,
atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma
fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde
com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem
definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha
viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de
realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema
do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são
ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como
classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.
Depois
da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o
clima meditativo do início do disco vem com força total para
finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece
isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração.
Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take),
é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de
Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia
cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes
atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos
pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos
de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo,
solene e raveliano. E quem “declama”
é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de
“Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a
palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia.
Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos
do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi
salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado
o divino.
Em
vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho
fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante
entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência
que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e
“ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um
câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência
antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por
seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao
que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical
nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a
única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na
França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de
sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia
em torno de Coltrane e sua obra.
No
entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...”
foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que
se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu
lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se
entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28
anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade
o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o
legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John
Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da
vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando
alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento
de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de
John.”
Não
tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
**************
FAIXAS:
1. A
Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A
Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40
todas
as composições de John Coltrane
por Daniel Rodrigues
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
James Brown – “Live At the Apollo – Volume II” (1968)
“- O groove é uma batida do
coração.
Mexe com tudo em você, forte e simples.
Isso é groove.
- E como você se define
exatamente?
- Acabei de definir, moça.”
Diálogo entre James Brown e uma
repórter do filme
“James Brown – Get on Up”,
que estreia no Brasil este ano
Considero-me uma pessoa do meu tempo, por isso não lamento não ter
vivido determinado momento no passado. Com raras exceções. Queria ter estado, por
exemplo, em 1913, na estreia d’”A Sagração da Primavera”, de Stravinsky, quando
a companhia Ballets Rousses, coreografada por Nijinsky, escandalizou Paris e o
mundo com aquilo que se tornaria uma revolução nas artes cênicas e na música
contemporânea. Também, se pudesse, estaria em 1940, na première de "Cidadão Kane", clássico divisor de águas do cinema
moderno, de Orson Welles, quando, indignados com tamanhos “atrevimento” e “impropriedade”, exibidores jogavam na calçada da entrada de seus cinemas os
rolos do filme para quem quisesse ficar com “aquilo”. Queria ter visto a
surpresa na cara dos espectadores dentro da sala de cinema deparando-se com
aquela narrativa irregular e até então inédita (vejam que não tem nada de homem
pisando na lua ou título da Seleção de 70).
Pois outro desses raros eventos que gostaria de ter vivido é o show que
James Brown apresentara no Apollo Theatre, casa de espetáculos encravada no
bairro negro do Harlem, em Nova York, naquelas duas históricas noites de 24 e
25 de junho de 1967. À época, nem pensava
em nascer ainda. Mas para a minha felicidade e de toda a humanidade, esta
apresentação foi registrada e transformada em dois LP’s um ano depois, o que
diminui em parte meu pesar. Não dá pra enxergar Mr. Dynamite dançando
enlouquecidamente, seus trejeitos sensuais, sua boca gesticulando para cantar,
a expressão delirante no rosto do público, o suor escorrendo de sua testa e da dos
integrantes da banda enquanto sustentam o som minutos a fio para Brown entreter
a plateia. Não, não dá pra ver. Mas se sente. O show é tão contagiante, tão
efusivo, tão emocionante que é quase como estar lá presente, no meio da galera.
Delirando.
A exemplo do primeiro volume por ele gravado no mesmo teatro, em 1962, “Live
at the Apollo” é esfuziante. Uma aula de soul
music. O script em si já contém
pompas de grande espetáculo. Antes de começar o show, o mestre-de-cerimônias Charles
Bobbit entra no palco e anuncia, em ordem cronológica, os números que serão
executados, ditando o título de cada um intercalado por um golpe na caixa da
bateria. Como que dissesse: “preparem-se,
pois vem aí chumbo grosso!”. E de fato é o que acontece. Finalizada a abertura,
ouve-se Bobbit dizendo efusivamente: “James
Brown, ladies and gentlemens!” A partir dali entra-se no mundo do Godfather
of Soul. Brown sobe ao palco, enlouquecendo a plateia, que explode em festa.
Imediatamente, o clássico “Think” começa a tocar seu ritmo contagiante de mais
puro rithum n’ blues. Em dueto com Marva
Whitney, Brown dá início àquela apresentação, que se tornaria memorável.
Mal “Think” termina e já emenda com “I Wont to be Around”, uma das
baladas do repertório, que fez o ritmo desacelerar. Em compensação, os ânimos
continuam a mil, dada a sensualidade e o groove
que se emitem da rouca voz de Brown. Que vocal! Uma naturalidade e um alcance
de tons impressionantes, que variam da emissão mais sussurrada ao famoso grito
agudo, sua marca registrada, que só um verdadeiro cantor gospel criado nas
igrejas Batista americanas é capaz de fazer. A banda, bem como a Famous Flames,
dupla vocal formada por Bobby Byrd e Bobby Bennett que acompanha o grupo, está
afiadíssima. É o que se vê no R&B “That’s Life” e no bluesão “Kansas City”.
Depois de uma pausa, anunciada por Bobbit, o show reinicia, passando a ter
apenas composições do próprio Brown (à exceção da linda “Prisioner of Love”), e
aí a coisa esquenta de verdade! Uma sequência funk de tirar o fôlego engata
“Let Yourself Go”, “There Was a Time”, “I Feel All Right” (na qual ele começa
sua interatividade com a plateia, brincando com os tempos da música e gesticulando
tão sugestivamente que dá pra enxergá-lo tal a reação do público) e “Cold
Sweet”, esta, a música que inspirou o riff
da clássica "So What" de Miles Davis (que, fã, inteligentemente apenas inverteu
as notas). A já citada bateria de John “Jabo” Starks e Clyde Stubblefield,
aliada à percussão de Ronald Selico, dão um show à parte. Timbre perfeito,
encaixe perfeito, ritmação perfeita. Igualmente, as guitarras de Jimmy “Chank”
Nolen e Alpholson “Country” Kellum seguram todas do início ao fim.
Comandados por Alfred “Pee Wee” Ellis, arranjador da banda e
responsável pelo órgão e sax alto, Brown e Cia. arrasam na terceira parte do
show. O naipe de metais (que ainda conta com Maceo Parker e L.D. Williams nos
saxofones tenor; St. Clair Pinckney, no sax barítono; Waymon Reed e Joe Dupars,
nos trumpetes; e Levi Harbury, no trombone de vara) manda a irresistível “It
May Be the Last Time”, das melhores do mestre. O hit “I Got You (I Feel
Good)” – talvez seu maior sucesso tanto na versão original, de 1964, quanto na
mais funkeada, que gravara em 1975 – vem, aqui, num pequeno e agitado R&B,
quase uma vinheta. Em seguida (antecedida pela ótima “Out of Sight”, também
curta), “Try Me”, de seu primeiro disco, de 1959, tira o pé do acelerador novamente,
noutra balada melodiosa. Aí vem talvez o melhor do show – o que, a esta altura,
é uma atitude quase improvável. A quarta parte começa com a matadora “Bring it
Up”, que põe todo mundo pra dançar (sei que não é possível ver, mas quem teria
ousado ficar parado?).
Depois de incendiar bem o público é hora de
descansá-los, certo? Mais ou menos. Que o ritmo cai, é fato. Mas o que os
próximos 17 minutos e 27 segundos promovem é daquelas coisas que, essas sim, me
deixam com inveja de não ter estado lá. “It's a Man's Man's Man's World”, das
mais célebres canções de sua carreira, e “Lost Someone”, irrepreensível, formam
um medley em que, se o compasso é
mais lento, a interpretação de Brown, sua entrega, sua qualidade vocal, sua
alma, sua interação orgânica e quase sexual com o público, ao contrário, deixam
o clima realmente agitado.
Nestas duas, Brown despeja toda a intensidade
existencial de ex-boxeur e quase
marginal que, por essas obras divinas, virou um dos maiores artistas de seu
tempo. Na letra de “It’s a Mans...”, ele critica a sociedade machista e se
revela: “o homem está perdido na selva/ Ele está perdido na amargura”. E ainda complementa filosófica e romanticamente: “O homem fez os carros para nos levar para a
estrada/ Homem fez os trens para transportar cargas pesadas/ O homem fez a luz
elétrica para nos tirar do escuro/ O homem fez o barco para a água, como Noé
fez a arca/ Trata-se de um homem, um homem, um mundo de homens/ Mas não seria
nada, nada sem uma mulher ou uma garota”. Gritos
ensandecidos do público a cada frase cantada, a cada suspiro, a cada movimento
sugestivo no palco, tomados por aquela força negra avassaladora à sua frente. Ele
domina a plateia como um encantador de serpentes. O público, hipnotizado, acompanha
todos os seus passos, atende a todos os seus comandos. Estão magnetizados.
O final disso? A apoteose. “Please, Please, Please”, num soul mil vezes mais quente que sua
original, é a despedida e também quando e acontece uma cena tão marcante que
chega a ser visível só ouvindo-a. Num estado catártico, Brown, tomado pela
música, pelo show, pelo clima, pelo público, canta, grita e dança. O Apollo
Theatre vem abaixo! No meio da performance,
o rei do soul deixa o pedestal do microfone cair no chão mas, inebriado, nem
percebe e segue dançando, enquanto a galera quase desvanece de tanto êxtase. O
apresentador Charles Bobbit, então, recolhe o microfone e, sem mais o que
dizer, simplesmente exalta aquele mito que está ali no palco, a seu lado, concluindo
um show sabidamente histórico já naquele exato momento. “James Brown! James Brown! James Brown! Esse é Sr. Dynamite, o rei do
rithum n’ blues. James Brown!”. O que mais ele conseguiria dizer, né?
A importância de James Brown para a história da música é incalculável. Criador
de um dos gêneros musicais mais difundidos e absorvidos do mercado do
entretenimento, o funk, foi inspiração para toda a geração em estilo,
sonoridade, estética e atitude. A soul
music, o rock, o jazz, a MPB, todos beberam nele. De Sly & Family Stone
a Beatles, de George Clinton a Erasmo Carlos, de Rolling Stones a Lenny Kravitz,
de Miles a Morcheeba. O rap ou o britpop
dos anos 90 nem existiriam, pra se ter ideia. Além disso, foi Brown quem, de
fato, ensinou o mundo pop a dançar, liberando o salão para outros grandes
bailarinos populares como Michael Jackson, Madonna, Prince e John Travolta.
“Live at the Apollo”, evidentemente, não é o seu único grande álbum, mas é
certamente um exemplo fiel da magnitude de sua obra. Ainda mais por superar o
fato de ser duplo e ao vivo, o que me contraria duplamente, que geralmente
prefiro os trabalhos de estúdio e em formato simples.
Contraria, entretanto, mais do que somente meu gosto pessoal. Lembro-me
da difundida tese do filósofo da comunicação Walter Benjamin de que a obra de
arte perde a sua “aura” quando reproduzida, ou seja, quando passada para outra
plataforma, submergem-lhe junto suas autenticidade e alma, mesmo quando
tecnicamente bem copiada. Parece que James Brown consegue, misteriosamente,
subverter essa lógica e preservar intacta toda a emoção do “aqui e agora” que
se presenciou naquelas fatídicas noites de junho de 1967. Quem esteve lá, viu;
mas quem não esteve, consegue captar o calor da emoção, a “aura” do momento
apenas ouvindo. Isso é possível perceber-se até hoje, quase 50 anos depois, através
das milhares de cópias que o mundo tecnológico oferece. E quem há de duvidar um
feito desses vindo de um cara cujo apelido é justamente “o padrinho da alma”?
*******************************
FAIXAS:
1. Introduction – 0:32
2. Think – com Marva Whitney (Pauling) – 2:54
3. I Wanna Be Around (Mercer/Vimmerstadt) – 3:09
4. James Brown Thanks – 1:11
5. That's Life (Duke/Harburg) – 4:05
6. Kansas City (Leiber/Stoller) – 4:49
7. Medley – 14:54:
- "Let Yourself Go"
(Brown/Hobgood) – 6:34
- "There Was a Time"
(Brown/Harris/Hobgood) – 2:45
- "I Feel All Right"
(Brown/Hobgood) – 5:35
10. Cold Sweat (Brown/Ellis/Ellis/Lindup) – 4:43
11. It May Be the Last Time (Brown/Wright) – 3:06
12. I Got You (I Feel Good)
(Brown) – 0:38
13. Prisoner of Love (Columbo/Gaskill/Robin) – 7:25
14. Out of Sight (Brown/Wright)
– 0:26
15. Try Me (Brown/Marley) – 2:54
16. Bring It Up (Hipster's
Avenue) (Brown/Jones) – 4:38
17. Medley – 17:27
- “It's a Man's Man's Man's
World” (Brown/Jones/Newsome) – 11:16
- “Lost Someone (Brown/Byrd/Stallworth/Stallworth) – 6:21
18. Please, Please, Please (Brown/Terry)
– 2:44
***********************
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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