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domingo, 21 de agosto de 2011

Stravinsky/Debussy/Ravel/Toyama– Concertos OSPA – Teatro Dante Barone – Porto Alegre/RS (16/08/2011)




Nunca tinha visto uma orquestra fazer bis. Pois na noite de 16 de agosto, no Teatro Dante Barone, da Assembleia Legislativa do RS, presenciei isso. Foi no 15° Concerto da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) – Temporada 2011, desta vez sob a ótima regência do maestro japonês Kiyotaka Teraoka, oficial da Orquestra Sinfônica de Osaka.
Em junho, já tinha assistido a outro concerto da Ospa, em homenagem Sergei Rachmaninoff. Muito bom. Mas este foi magnífico. A começar pela primeira peça: o balé “Petrouchka”, do genial maestro e compositor russo naturalizado francês Igor Stravinsky (1882-1971), que eu já adorava e tinha a maior vontade de ouvir ao vivo pela primeira vez. E as minhas expectativas foram totalmente atendidas. “Petrouchka” conta a história de um fantoche tradicional russo feito da palha e um saco de serragem como corpo que acaba por tomar vida e ter a capacidade amar. Como a outra grande obra de Stravinsky, o marco “A Sagração da Primavera” (1913), “Petrouchka”, feita entre 1910 e 1911, é absolutamente revolucionária, sendo uma das maiores responsáveis por mudar a cara da música universal no último século.


 A peça de Stravinsky inova em estrutura rítmica, orquestração, timbrística, forma, harmonia, uso de dissonâncias. Uma obra complexa e moderníssima que valoriza, particularmente, a percussão acima da harmonia e da melodia, algo nunca visto antes na música erudita. Influenciou largamente trilhas para cinema, a se perceber, por exemplo, uma clara referência em dois históricos temas: a do hitchcockiano “Psicose”, “hino” do suspense composto por Bernard Herrmann, com seus gritos agudos de violino, e a de “Tubarão”, de John Williams para o thriller de Spielberg, com aquela inesquecível levada minimalista de cellos em duas notas, repetem trechos de “Petrouchka” de forma quase idêntica.

Kiyotaka Teraoka regeu com brilhantismo
as peças de Stravisky, Ravel e Debussy
e ainda proporcionou um
emocionante e surpreendente bis.
O balé também tem várias parecenças com a música pop. As quatro partes que compõem a obra são coladas umas às outras, imprimindo uma unidade incrível à música como um todo, mesmo com tantas variações. Esse expediente foi utilizado com inteligência, por exemplo, pelos Beatles no clássico e influente disco "Sgt. Peppers". Outro detalhe muito similar à música pop é a forma como essas partes se interligam: uma sequência de bombo, forte e contínua, igual aos rolos de bateria que o rock instituiu.
Na segunda parte do concerto, seguiram a bela “Petite Suite”, do impressionista Claude Debussy (1862-1918), e “Pavanne pour un Enfante Défunte”, de Maurice Ravel (1875-1937), que, mais do que a de Debussy para com sua grande obra (“Prélude à L’Apres-Mid d’un Faune”), nem chega perto da genialidade de seu “Bolero”, esta, sim, um verdadeiro patrimônio da humanidade.

Maestro Yuzo Toyama:
lenda viva em seu país.
Mas a surpresa guardava-se para o final. Lembram-se que havia mencionado que nunca tinha visto uma orquestra tocar um bis? Pois a incrível “Rhapsody for Orchestra”, do maestro e compositor japonês Yuzo Toyama (ao qual eu dei graças a Deus por passar a conhecer) foi o que motivou. Nascido em 1931, Toyama é vivo, idolatrado em seu país e, mesmo a idade avançada, ainda se apresenta regendo por aí. “Rhapsody...”, sua obra mais celebrada, de 1960, me transportou para dentro dos filmes clássicos de Korosawa como “Os 7 Samurais” e “Yojimbo”. A abertura, só com percussão, adaptando a musicalidade típica do Japão feudal, é um desbunde. Rico em harmonia e construção melódica, o intenso e curto número de Toyama (pouco mais de 7 minutos) ainda desfecha incrivelmente. Depois de um breve silêncio (um “Ma”, na terminologia da música tradicional japonesa), um dos percussionistas retoma-a maravilhosamente percutindo duas bachi, pás de madeira adornadas que produzem um som fino e estridente. Dali para um final triunfante, aplaudido de pé por uns bons cinco minutos pelo bom público presente. E o bis veio exatamente a partir da repetição deste último trecho, para entusiasmo geral.
O maestro Teraoka, claramente afeito à obra do conterrâneo, colocou o coração na batuta e regeu com emoção extra, o que contagiou orquestra e plateia. Satisfeito, voltei louco para rever um bom Kurosawa e conhecer mais a obra do agora admirado Toyama.
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Rhapsody for Orchestra




quarta-feira, 4 de julho de 2018

Música da Cabeça - Programa #65


“Isto é como encontrar uma nova câmara na Grande Pirâmide”. As palavras do genial saxofonista Sonny Rollins seriam exageradas se não estivessem se referindo a outro gênio do instrumento, do jazz e da música universal: John Coltrane. As recém-descobertas e divulgadas gravações inéditas do músico norte-americano e seu célebre quarteto estão no quadro “Música de Fato” desta semana. Ainda, muitas outras maravilhas sonoras como a soul brazuca de Tim Maia, o gothic industrial da Alien Sex Fiend, o hawaiian pop de Israel Kamakawiwo'ole e o balê avant garde de Igor Stravinsky. E ainda tem mais! Motivo de sobra pra você não perder o programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e revelações: Daniel Rodrigues. 


Rádio Elétrica:

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

9° Sinfonia de Beethoven pela Orquestra Sinfônica Brasileira - Theatro Municipal - RJ




Conheci ontem finalmente o Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Bonito mas, surpreendenetemente para mim, pequeno. E conforme já sabia, uma imitação do Opera de Paris, o que não o desmerece em nada. Além da fachada de seu ecletismo remetendo ao neoclássico, já exaustivamente vista a cada ida à Cinelândia no centro do Rio, agora pude conhecer o espaço interno absolutamente nobre com seus veludos e tapetes vermelhos, evocativo com seus vitrais, brilhante com seus dourados e lustroso com seus mármores italianos.
Um dos belíssimos vitrais
A colunata da fachada
Fomos à apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira, no último concerto do evento chamado Série Fora-de-Série, no qual executaram com brilhantismo a 9° Sinfonia de Beethoven, uma das maiores obras musicais já concebidas pelo homem. Inegavelmente um privilégio assistir a execução de uma obra como esta e de quebra, depois de 5 anos morando aqui,  conhecendo, finalmente, um dos pontos turísticos históricos mais importantes da cidade.
O interior rico e suntuoso.

THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO
O Teatro Municipal do Rio de Janeiro localiza-se na Cinelândia (Praça Marechal Floriano), no centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ), no Brasil.
Construído em princípios do século XX, é um dos mais belos e importantes teatros do Brasil. A responsabilidade de sua gestão é da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, vinculada a Secretaria de Estado de Cultura, que é presidida por Carla Camurati desde 2007, possui direção artística de Roberto Minczuk e direção operacional de Sonja Dominguez de Figueiredo França.


HISTÓRIA
A atividade teatral era, na segunda metade do século XIX, muito intensa na cidade do Rio de Janeiro. Ainda assim, a cidade não dispunha de uma sala de espetáculos que correspondesse plenamente a essa atividade e que estivesse à altura da então capital do país. Os seus dois teatros, o de São Pedro e o Lírico, eram criticados pelas suas instalações, quer pelo público, quer pelas companhias que neles atuavam.
Após a Proclamação da República brasileira (1889), em 1894 o autor teatral Arthur Azevedo lançou uma campanha para que um novo teatro fosse construído para ser sede de uma companhia municipal, a ser criada nos moldes da Comédie-Française.Entretanto, naqueles agitados dias, a campanha resultou apenas em uma lei municipal, que determinou a construção do teatro municipal. Essa lei não foi cumprida, apesar da cobrança de uma taxa para financiar a obra. Observe-se que a arrecadação desse novo tributo nunca foi utilizada para a construção do teatro.
Seria necessário esperar até à alvorada do século XX quando a sua construção viria a representar um dos símbolos do projeto republicano para a então capital do Brasil. À época, o então prefeito Pereira Passos promoveu uma grande modernização do centro da cidade, abrindo-se, a partir de 1903, a Avenida Central (hoje avenida Rio Branco) moldada à imagem dos boulevards parisienses e ladeada por magníficos exemplares de arquitetura eclética.
Nesse contexto, realizou-se um concurso para a construção de um novo teatro, do qual saiu vitorioso o projeto de Francisco de Oliveira Passos (filho do então prefeito Francisco Pereira Passos), que contou com a colaboração do francês Albert Guilbert, com um desenho inspirado na Ópera de Paris, de Charles Garnier.
O edifício foi iniciado em 1905 sobre um alicerce de mil e seicentas estacas de madeira fincadas no lençol freático. Para decorar o edifício, foram chamados os mais importantes pintores e escultores da época, como Eliseu Visconti, Rodolfo Amoedo e os irmãos Bernardelli. Também foram recrutados artesãos europeus para executar vitrais e mosaicos.
Finalmente, quatro anos e meio mais tarde – um tempo recorde para a obra, que teve o revezamento de 280 operários em dois turnos de trabalho – no dia 14 de julho de 1909 foi inaugurado pelo então presidente da República, Nilo Peçanha, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Serzedelo Correia era o então prefeito da cidade.
Originalmente com capacidade para 1.739 espectadores, em 1934, com a constatação de que o teatro estava pequeno para o tamanho crescente da população da cidade, a capacidade da sala foi aumentada para 2.205 lugares. A obra, apesar de sua complexidade, foi realizada em apenas três meses, também tempo recorde para a época. Posteriormente, com algumas modificações, chegou-se ao número atual de 2.361 lugares.
Em 1975, a 19 de outubro, o teatro foi fechado para obras de restauração e modernização de suas instalações e reaberto em 15 de março de 1978. No mesmo ano foi criada a Central Técnica de Produção, responsável por toda a execução dos espetáculos da casa.
Em 1996 iniciou-se a construção do edifício anexo, visando desafogar o teatro dos ensaios para os espetáculos, que, com a atividade intensa da programação durante todo o ano, ficou pequeno para eles e, também, para abrigar condignamente os corpos artísticos. Com a inauguração do anexo, o coral, a orquestra e o balé ganharam novas salas de ensaio e espaço para as suas práticas artísticas.
Em seus primórdios, apresentavam-se no teatro apenas companhias e orquestras estrangeiras - especialmente as italianas e francesas - até que, em 1931, foi criada a Orquestra Sinfônica Municipal do Rio de Janeiro. Entre as personalidades ilustres que nele se apresentaram destacam-se os nmomes de Maria Callas, Renata Tebaldi, Arturo Toscanini, Sarah Bernhardt, Bidu Sayão, Eliane Coelho, Heitor Villa-Lobos, Igor Stravinsky, Paul Hindemith, Alexander Brailowsky entre outras. Hoje a casa abriga a Orquestra Petrobras Sinfônica e a Orquestra Sinfônica Brasileira e são apresentados, majoritariamente, programas de dança e de música erudita.


fonte: Wikipedia

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

“BOULEZBOWIE”: Esse (esquizo)frênico mundo que une (ou separa) a vanguarda do pop

Tá sempre morrendo gente pública por aí, sei. Mas nem sempre tenho o que lamentar. Morre gente conhecida toda semana, o que não quer dizer, necessariamente, que embora conhecidas de um relativo número de pessoas (às vezes, milhares delas), sejam de fato importantes. Essa dialética é típica desses tempos descriterizados e esquizofrênicos que vivemos. Lágrimas demais ou de menos sem se saber o porquê. Mas não deixa de ser, no mínimo, questionável, ainda mais quando, em menos de uma semana, morrem duas pessoas de extrema importância e ocupantes cada um de uma dessas esferas: o quase ignoto e o altamente popular. O quase ignoto por conta do mesmo descritério e esquizofrenia que empurra as massas a rechaçarem qualquer profundidade; o outro, altamente popular e cuja comoção pela morte foi gigantesca, é às vezes reduzido a um percentual mínimo daquilo que ele mesmo representa.
De minha parte como jornalista, crítico e diletante, lamento de verdade ambas as perdas. Falo de Pierre Boulez e David Bowie.


O rocker de batuta
Boulez, o compositor, maestro, professor e ensaísta francês, desconhecido totalmente de um relativo número de pessoas, era o último representante dos compositores da vanguarda erudita da primeira metade do século XX. Junto com os contemporâneos John Cage, Kerlheinz StockhausenLuciano Berio, Edgard Varèse, Benjamim Britten e Luigi Nono, ele, seguindo a sina aberta pela tríade de Viena nos anos 10 (Schöenberg, Berg e Webern), pôs de ponta-cabeça toda a tradição musical, subvertendo todos os conceitos: tom, harmonia, métrica, instrumentalização, timbrística. Raivoso e aferrado, Boulez foi um roqueiro punk com 40 anos de antecedência ao movimento. De modos elegantes e clássicos, por dentro era um punk total, combativo até no seu meio. A mesma agressividade expressiva, a violência como método e estilo. À imbecilidade ele respondia com doses desmedidas de cerebralismo. Era sua adaga perfurante. “Acredito que a música deve ser uma histeria coletiva de palavras violentas sobre o tempo presente”, disse em 1948.
Anos atrás, quando de seu aniversário de 80 anos (morreu dia 5 de janeiro, aos 90), li um artigo que, pertinente e conscientemente, colocava “Pli selon Pli”, uma de suas mais concisas e importantes obras, ao lado de outras duas significativas revoluções na música do século XX: o nascimento da bossa-nova com “Chega de Saudade”, com João Gilberto (1958), e a não menos vanguardista “Gesang der Junglinge” (1956), obra referencial do alemão Stockhausen.
Dessa vez, Boulez foi notícia novamente, mas muita gente que passou por esta não deu bola, o que é normal. Um compositor e maestro ligado a antipopulares termos como dodecafonia, atonalismo, eletroacústica, serialismo ou música aleatória só pode mesmo não ser popular. Ser desconhecido de um grande número de pessoas era, certamente, um elogio para Boulez. O desconhecido, afinal, nunca o assustou. Pelo contrário: era-lhe combustível. De língua afiada e criatividade idem, o jovem que estudara com Messiaen, logo o mandou às favas e o confrontou ideologicamente. Fez o mesmo com outro professor, Leibowitz, sem resquício de culpa. Jamais lhe existiam mestres. Não são poucos seus manifestos ferinos e altamente intelectualizados escritos ao longo da vida onde expunha suas ideias, o que o colocaram como um importante ensaísta da arte do seu tempo.
Boulez é responsável, na longa carreira que teve, por promover pelo menos três revoluções na música mundial.  Afora as marcantes obras da juventude, as cantatas "Le visage nuptial" (revista por ele quase quatro décadas depois), "Le soleil des eaux", onde explorava os ensinamentos do dodecafonismo aprendidos com Messiaen, e da primeira obra totalmente serializada, “Polyphonie X”, para 18 instrumentos, é entre 1953 e 1957 que lança a que é considerada sua primeira obra-prima: “Le marteau sans maître” para conjunto e voz, de relativo sucesso e uma síntese surpreendente das várias correntes na música moderna, englobando os mundos sonoros do jazz be-bop, o gamelão balinês, músicas tradicionais africanas e melodias tradicionais japonesas. Até o por ele satanizado Igor Stravinsky deixou de fora as críticas que recebia e aplaudiu de pé.
Outra radical criação: a já mencionada “Pli selon Pli”, cuja “original” data do final dos anos 50. Trata-se de um concerto inspirado em poemas do poeta francês Mallarmé onde passa a explorar com veemência a ideia de “obra em movimento”. Revisto em sua estrutura e métodos nas décadas seguintes, foi ganhando novas versões à medida que o irrequieto compositor reavaliava sua linguagem, fazendo com que, por conceito, sua concepção final estivesse sempre por vir. Tal como o já mencionado João Gilberto, que reelabora incessantemente os clássicos sambas da música brasileira em seu filarmônico violão, cunhando ao longo do tempo sempre versões únicas da mesma melodia, “Pli selon Pli” “nunca” acaba. Entendimento que só poderia brotar de alguém que representou tão firmemente a geração pós-Guerra, cujas marcas ainda são sentidas mais de 100 anos de eclodida a primeira delas.
Na maturidade, quando poucos compositores eruditos de sua geração não mais se arriscavam depois de tanto inovarem nas décadas anteriores, Boulez manteve-se na ponta da vanguarda, propondo novas experimentações. Se a música eletrônica o havia decepcionado nos anos 50 por sentir-se insatisfeito com o resultado das fitas magnéticas e seu processo “inorgânico” de realização, nos 70 volta à carga para dar-lhe nova identidade. Os meticulosos resultados dessa “velha descoberta” seriam sentidos em 1980, quando compõe “Répons” (para dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica). Ali, dá luz a uma obra em que a ressonância e a espacialização dos sons criados pelo conjunto se processam todos em tempo real, inclusive os elementos eletrônicos, normalmente criada penosamente em situações controladas. Nova síntese, nova profusão de ideias.
O fato é que, como um punk, amoral e dono da sua razão, Boulez jogou-se no labirinto do desconhecido e dali tirou o magma que brotaria dos vulcões de sua criatividade pronto para queimar todas as concepções preestabelecidas. Da tensão secular, criou uma linguagem densa e lírica. Sua partida deixa uma lacuna insubstituível. Um pilar que cede. O planeta Terra não tem mais nenhum representante da original vanguarda do século XX, a geração pós-Wagner, que passa por Strauss, Mahler e Debussy. A geração que aprendeu com – ou aprendeu a contrariar – Stravinsky, Eric Satie, Bela Bártok e Maurice Ravel. O longevo Boulez ainda resistia, e agora leva consigo uma herança que, a ver por esses tempos de descritério e esquizofrenia (e desmemoriados, consequentemente), um dia possa se apagar da memória do homem. Quiçá, cheguemos ao triste dia em que serão desmentidas oficialmente as barbaridades do Holocausto que Boulez presenciou e da sua forma combateu. Quem sabe, foi bom mesmo ele não viver tanto mais para ter de presenciar isso.

vídeo "Pli Selon Pli", Pierre Boulez



A batuta do rocker
Assim como para Pierre Boulez, o desconhecido também sempre foi combustível a David Bowie. Se o maestro buscava esse estado incessantemente, de modo a não repetir-se e recriar sua obra ao longo dos tempos, Bowie, no meio do mainstream, não só fazia isso como transformava essa busca em produto “vendável”. Ninguém como ele se valeu do universo de referências estilísticas da sociedade moderna e os reelaborou como Bowie, forjando um trabalho próximo do público mas sem deixar de infundir-lhe “dificultações”. Boulez, inventor de muitas dessas complexidades formais quase sempre desconhecidas do grande público, até por isso era quase um completo desconhecido do próprio. Bowie, na outra ponta, era popular mas impunha-se uma tarefa provocativa e rara: a de propor essas “dificultações desconhecidas” e torná-las, se não conhecidas, pop e assimiláveis.
Poderia falar longamente sobre vários dos períodos que Bowie orquestrou. De Ziggy Stardust ao vilão mutante Nathan Adler de “Outside”, passando pelo “Pin Up” à fase “limpa” de artifícios de Berlim. Mas em meio à enxurrada de coisas a seu respeito escritas e ditas nos últimos dias creio que o melhor recorte para esse momento é essa contribuição da desacomodação que o artista britânico sempre trouxera. “Sou uma prateleira de frascos vazios”, disse o poeta Fernando Pessoa em seu “Livro do Desassossego”. Bowie foi esse frasco vazio, onde fazia caberem todas as possíveis referências e mitos.
Escrevi sobre Bowie em meu livro, "Anarquia na Passarela", algo que se baseia bastante na questão da moda e comportamento dos punks, mas que vale tranquilamente para tal argumentação. Reproduzo dois:
“Vindo da cultura mod londrina dos anos 60, logo foi formando um estilo próprio de dândi ultrasofisticado e exagerado que desembocaria no seu ‘cameleônico’ individualismo cênico. Bowie era uma estrela do rock que nunca é ele próprio como pessoa: ele ‘interpreta’ papéis num enorme ‘palco’ chamado show-business. Por causa deste distanciamento bretchniano que tem da cultura de massa logrou influências vitais à cena [punk].”
“Tudo em Bowie era estilo, o que se percebia na sua indumentária ultradandi, barroca e ‘camp’. Seu passado mod, os anos 50, o cinema expressionista, a Berlim ‘decadente’ e suburbana, os anos pré-nazismo, o dandismo de Brummell, a androginia, a estética dos cabarés. Tudo lhe era alimento para a formação de um estilo pessimistamente decadente, cerebral e imaginário. Criava uma mitologia na qual nada era em vão; em cada ‘máscara’ sua vinha um efeito estético e fantasioso.“
Por tudo isso, Bowie mostrou facilmente que fazer música pop simplesmente é simplório e vago. Há de se adicionar personalidade e conceito para que se produza algo significativo. Bowie entendeu isso cedo, catalisando música, estilo, comportamento e equilibrando “alta” e “baixa” cultura – ou melhor, quebrando as barreiras entre uma e outra. Entendeu que a vanguarda das artes não existe apenas para impor a “alta cultura” de modo estanque e autobajulador. É, sim, célula orgânica, viva, que, compreendida em seus símbolos e elementos, podem e devem ser assimiladas, reelaboradas e deglutidas em outros e diferentes níveis de cultura e conhecimento.
A carreira de Bowie, muito mais profunda do que apenas os (ótimos) sucessos, é sabiamente contaminada pela vanguarda. "V-2 Schneider" contém claros traços de Boulez, Stockhausen e Varèse; o solo atonal de piano de "Aladdin Sane" contém Cage e Ligeti; a trilogia berlinense (inclua-se "The Idiot", de Iggy Pop, da mesma leva), contém em sua sonoridade pós-industrial os experimentos eletroacústicos fruto de ceticismo racional do pós-Guerra; o recente “Blackstar” contém a sonoridade pós-jazz assimilada tanto por maestros quanto músicos sem formação teórica como DJ’s, roqueiros e rappers"Low" e “Heroes”, com Brian Eno, são tão estruturalmente minimalistas que o próprio “pai” do estilo, Philip Glass, homenageou a Bowie e Eno com o duo “Symphony” sobre ambos os álbuns. O jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, para quem Bowie foi um roqueiro refinado, observa que, “em meados dos anos 70, Bowie abandonou a forma ternária da estrutura pop em favor de formas semiminimalistas, caracterizadas por ataques secos e pulsações rápidas”.
É por isso que se torna tão penosa e simbólica a perda de Bowie: quem mais fará isso? É alarmante, se não desolador, que este papel nunca mais seja cumprido. Quem assumirá (compreenderá ou dará a devida importância) ao papel de unir e mimetizar essa ponte vanguarda-pop? Numa época em que streamings e mp3 circulam descontextualizados de suas obras de origem (quando esta, de fato, existe, se é que já não fora criada sem contexto algum), é salutar que um artista de quase 70 anos e 50 de carreira assombre o universo do entretenimento com o lançamento de um disco, uma obra que se constitui em si própria. Uma obra.
Walter Benjamin provavelmente ficaria instigado com esse episódio emblemático da morte de Bowie, e mais possivelmente ainda o ligaria com a já historicamente simultânea perda do pilar oposto a ele, a de Pierre Boulez. A vanguarda e o pop perderam seus calços, deixando um questionamento de dupla interpretação: a obra-de-arte na música morreu também junto com os dois? Findaram-se duas eras basais para a história da música através dos tempos? Todas as releituras de “Pli selon Pli” e o obscuro “Blackstar” darão ainda muito a se desvelar se se quiser, a depender do grau de (des)critério dos tempos (esquizo)frênicos que vierem adiante neste século XXI recém iniciado. O que se sucedeu, com a morte dos dois, talvez tenha sido um lampejo de que a arte musical esteja mais viva do que nunca. Ou, se não, é porque se enterrou de vez junto com Bowie e Boulez. Aí, será quando o desconhecido se tornará definitivamente desimportante.

video de "Blackstar", David Bowie