“Dorival é um Buda nagô,
filho da casa real da inspiração.“
Gilberto Gil
Antes de mais nada, um aviso aos
navegantes das águas de Iemanjá: Dorival Caymmi não é música.
Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a verdadeira
arte manifesta algo que não está somente naquilo que se percebe na epiderme da
obra, mas, sim, na sua estrutura, no seu significado mais profundo. Assim como
uma “Guernica” de Picasso é mais do que uma pintura ou “Tempos Modernos” de Chaplin
mais do que um filme, pois são marcos históricos divisores-de-águas da
sociedade, o que Caymmi produziu tem uma amplitude antropológica que vai além
dos limites da música. Caymmi conseguiu traduzir através de sons os costumes de
um povo, os jeitos de um povo, o pensar de um povo. “Canções Praieiras”, de 1954,
é isso: extrapola o sentido de uma simples gravação. É um documento fonográfico
de suma importância para tudo o que se possa classificar como cultura no século
XX, seja popular, folclórico ou erudito, pois ele foi um criador de linguagem.
Como disse
Gilberto Gil , Caymmi é o início da “nova idade de ouro da canção”.
A universalidade da
música deste baiano abençoado pelos orixás está em cada som, em cada dedilhado
graúdo mas delicado na viola, em cada entoar do seu barítono, em cada rebolado sensual
do seu canto. Nos temas, os conflitos, sentimentos e a luta diária pela
sobrevivência daquele que vive em contato com o que há de mais primitivo e puro
na natureza: o pescador. E os elementos dessa poética são os mais essenciais da
vida: o mar, a água, a terra, o vento, a noite, a morte. De uma coesão conceitual
impressionante, as oito faixas que compõem o disco trazem tudo isso do primeiro
ao último segundo. Terra, mar e céu, assim como as dimensões do homem, da
natureza e do místico, são trazidos em sua poesia em plena simbiose,
equiparados, indistinguíveis. Tudo voz e violão, executados com tanta
naturalidade que passa a sensação de que ele gravou na beira da praia, com os
pés sobre a areia e olhando pro mar, apenas deixando os sons virem.
“Canções Praieiras” é uma
escritura de clássicos absolutos, todos irreparáveis. O que dizer de “É Doce
Morrer no Mar”, “O Mar” ou “A Jangada Voltou Só”? Operísticas, as três trazem o
tema da morte, mas abordado sob a ótica mística e singela do pescador. Deslumbrante,
mágico e de uma dramaticidade teatral espantosa. De tão visuais, é possível
enxergar um filme em cada música. Misturando um pouco das histórias de cada uma,
olhem só no que dá:
CENA 1 - EXTERNA – FIM DE TARDE – Várias tomadas do mar
agitado.
CENA 2 - INTERNA – FIM DE TARDE - Pescador Pedro se despede com
pesar de sua amada, Rosinha de Chica, pois não sabe se vai voltar da pescaria.
CENA 3 - INTERNA – FIM DE TARDE – Já sozinha, Rosinha, intuindo o pior, reza chorando.
CENA 4 – INTERNA/EXTERNA – NOITE - Pedro e seus companheiros,
Chico, Ferreira e Bento, encontram-se na praia para iniciar o trabalho. Pegam a
jangada e ganham o mar bravio na noite ventosa.
CENA 5 - EXTERNA – NOITE – Já em alto-mar, as águas se revoltam.
Os pescadores acreditam ser por vontade de Iemanjá. Eles lutam para sobreviver,
mas não resistem e caem no mar.
CENA 6 - EXTERNA – MANHÃ - A jangada aparece na beira da
praia toda quebrada e sem os pescadores. Juntam várias pessoas da comunidade de
Jaguaripe. As moças choram de fazer dó. Comoção geral.
CENA 7 - EXTERNA – MANHÃ – O corpo de Pedro aparece em outra
ponta da praia próximo às pedras, todo roído dos peixes.
CENA 8 – EXTERNA – TARDE – FLASHBACK – Os pescadores felizes
na festa da aldeia. Chico vestido de boi adornado na procissão de Natal. Bento,
cantando modinhas e dançando, diverte a todos. Pedro e Rosinha trocam olhares
de amor.
CENA 9 – EXTERNA – FIM DE TARDE - Rosinha, traumatizada,
enlouquece. Passa a zanzar pela praia catatônica e com os olhos marejados dizendo
baixinho: “Morreu. Morreu”.
CENA 10 – EXTERNA – FIM DE TARDE – Sob o sol vespertino, a
onda do mar quebra lindamente na areia da praia.
FIM
Um roteiro de cinema
perfeito! Caymmi é capaz de criar imagens, verdadeiros quadros da realidade de
uma cultura, semelhante ao que fizeram, cada um em sua área, Jorge Amado,
Caribé e Pierre Verger da mesma Bahia de Todos os Santos. Neste sentido, a
música de Caymmi é extremamente figurativa, pois consegue ser literária ao
mesmo passo que é cênica e imagética. “Canoeiro”, das que mais me assombro, reproduz
em sons e versos o movimento sincronizado e o canto de um grande grupo de
pescadores no ato da pesca, com aquela rede gigante sendo tirada do mar lotada
de peixes. Sempre que ouço lembro sempre de cenas de “Barravento”, do também
baiano Glauber Rocha.
O fantástico (sereias, lendas,
cultos, santos, Batucajé) está constantemente presente. Assim é a incrível “Lenda
do Abaeté”, com seus acordes de violão graves parecendo berimbau e clima
introspectivo (até assustador) que arrepia ao se escutar, pois dá a impressão
que faz suscitar sensações muito viscerais do ser humano. O disco fecha com a
brejeira “Saudade de Itapoã”.
E
m águas calmas.
É de Caymmi que nasce toda
a construção melódica da MPB moderna – esta uma das mais modernas e criativas
expressões musicais de todo o mundo no último século. Carmen Miranda conquistou
o planeta mostrando, com música dele, o que é que a baiana tem. Os grandes
intérpretes, de Nelson Gonçalves a
Gal Costa, de Elizeth Cardoso Nara Leão,
sempre reverenciaram sua obra. A bossa nova herdou-lhe as inusitadas
dissonâncias, o ritmo e o gingado nordestino do samba, além da engenhosidade
timbrística e harmônica e, largamente, o estilo sintético. Voz e violão. Foi o
exemplo que bastou para
João Gilberto ajudar a criar uma música universal como
a bossa nova.
Tudo isso porque, mais do
que um músico que transpõe a realidade para sua arte, Caymmi é, justamente,
ator e personagem dessa própria realidade. Ele é sua própria arte. Morto em
2008, deixou uma obra relativamente pequena se comparado com outros
contemporâneos seus (Cole Porter, Noel Rosa, Carlos Gardel, Pixinguinha,
Ernesto Lecuonda). Mas sua música vai além das fronteiras da própria música; é
arte em sua mais pura essência. Simplesmente, Dorival Caymmi é como o mar
quando quebra na praia: é bonito. É bonito.
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FAIXAS:
01 - Quem Vem Pra Beira do Mar
02 - O "Bem" do Mar
03 - O Mar
04 - Pescaria (Canoeiro)
05 - É Doce Morrer no Mar
06 - A Jangada Voltou Só
07 - Lenda do Abaeté
08 - Saudade de Itapoã
(Todas de autoria de Dorival Caymmi)
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