“É uma relação bem mais sofisticada.
Existe uma interação.
Uma interação de ambas as partes.
A máquina ajuda o homem
e o homem admira a máquina.
Este aparelho é uma
extensão de seu cérebro.
[apontando para o gravador]
Ele ajuda você a se lembrar.
É o terceiro homem
sentado a esta mesa.
Quanto a nós,
nós amamos nossas máquinas.
Temos uma relação erótica com elas.”
Florian Schneider,
sobre a relação homem/máquina
Era a hora de, finalmente, o
Kraftwerk deitar na cama que ele havia preparado tão generosamente para um monte de gente. No final dos anos 70, a tecnologia musical havia avançado bastante, os sintetizadores já eram relativamente populares, a música eletrônica não era mais um alienígena, a disco music, em alta naquele momento, a utilizava de maneira bastante efetiva, e até correntes do punk ousavam inseri-la em suas sonoridades. Ou seja, o eletrônico já era usado com sucesso, gerando dinheiro, sem toda aquela resistência inicial, e só o Kraftwerk, logo o Kraftwerk, que pacientemente construíra aquela linguagem, ainda era visto sob o preconceituoso olhar da esquisitice e do experimentalismo.
Em 1978, então, pela primeira vez, o Kraftwerk fazia um disco que se aproximava do que costumamos chamar de pop. "Autobhan" já era (e continua sendo) a base de toda a música eletrônica,
"Trans-Europe Express" já era reverenciada e extremamente influente, mas ambos faziam parte de projetos musicais mais complexos e por isso de menor potencial comercial.
"The Man-Machine", no entanto, sem apelar para o pop óbvio, cheio de vícios e clichês, trazia formatos musicais mais convencionais e estruturas um pouco mais familiares ao ouvinte comum, sem abrir mão de princípios artísticos e de ambições conceituais. O álbum, de marcante capa escarlate, na qual o design inspirado no construtivismo russo interage brilhantemente com o expressionismo alemão da foto da banda, antecipava a relação homem-máquina, hoje algo tão corriqueiro para nós com inteligências artificiais, perfis robôs, próteses médicas, drones e funções humanas automatizadas, transitando por outros assuntos como a corrida espacial, as grandes metrópoles e a moda, fazendo com que o tema central funcionasse como uma espécie de fio-condutor que estabelecia relações e conexões com os demais.
"The Robots" abre o disco reforçando aquilo que, no fundo, todos desconfiamos: que aqueles caras só podem ser robôs! Mas a afirmação que se repete como verso principal da vigorosa peça musical de abertura, não se resume a essa ambígua "confissão", ela é provocativa, na sua aparente simplicidade, sugerindo uma reflexão sobre a rotina, o cotidiano, sobre o automatismo que muitas vezes toma conta de nossas vidas, mas também sobre as relações humanas de trabalho e sobre como muitas vezes nós somos os robôs de um sistema que só visa produção.
"Ja tvoi sluga/ Ja tvoi Rabotnik" ("Eu sou seus escravo/ Eu sou seu trabalhador"), afirma, em russo, uma voz robótica na música.
A reflexão se estende a "Metropolis", que ao mesmo tempo que é uma constatação do crescimento das grandes cidades e de suas novas possibilidades naquele momento, é uma evidente ode à grandiosa obra de
Fritz Lang de mesmo nome, marco da ficção-científica, que muito antes do Kraftwerk já antevia a era da robótica, a relação homem-máquina, e levantava questões, entre outras coisas, sobre trabalho abusivo e exploração humana. Um filme que retratava homens que, como desejavam os poderosos daquela cidade futurista, deviam trabalhar como máquinas.
O elemento metrópole é a chave para outra conexão dentro dos disco. Desta vez a ligação dá-se com "Neon Lights", a faixa mais longa de um disco em que as durações são mais comedidas para os padrões Kraftwerk. A canção é uma belíssima e elegante declaração de amor à cidade no que talvez seja o momento mais humano do álbum. Mas a amarração não se esgota por aí, uma vez que a alusão às luzes de neon também dialoga, de certa forma, com a era dos robôs proposta pelo disco. Hoje, às voltas com telas HD, lasers e painéis de LED, talvez não tenhamos exata noção de que, ali pelos anos 70, o neon com seus letreiros luminosos e coloridos, de certa forma, transmitia uma certa sensação de futurismo, o que fica evidente até mesmo pela sua presença em diversos filmes que, na época, e ainda hoje, pretendem ilustrar uma imagem de futuro.
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Os manequins idênticos frequentemente
presentes no palco, na época.
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Outra que, por um momento, até nos faz pensar que o quarteto Hütter, Schneider, Bartos e Flür talvez fosse formado por humanos é "The Model", um pop perfeito, lição de casa pro pessoal do synthpop dos anos 80, uma melodia elegantemente simples e de uma levada comedidamente contagiante, que descreve em sua letra uma fascinação quase platônica por uma modelo, deixando transparecer em si uma série de "pequenas emoções" como desejo, frustração, recalque, desprezo...
"Ela é uma modelo e ela está bonita/ Eu gostaria de levá-la para casa, isso é certo/ Ela se faz de difícil, sorri de vez em quando/ Basta uma câmera pra fazê-la mudar de ideia". Mas o olhar sobre essas musas da beleza vai um pouco além de uma mera e rara manifestação de emoções dos nossos robôs de Düsseldorf. Com "The Model", o Kraftwerk, de certa forma, também antecipa a sociedade de consumo, superficialidade e aparências na qual vivemos hoje, onde tudo tem seu preço, inclusive o prazer e a beleza. Se pode adquirir, por exemplo, bonecas em tamanho natural que imitam quase que perfeitamente formas e feições humanas e que satisfazem desejos e fantasias sexuais. Prazer. Beleza. Robôs.
A opção de Ralph Hütter, o letrista e líder da banda, em simbolizar esse aparente rasgo de emoção diante da beleza física feminina, na figura da modelo, não é por acaso, uma vez que essas "mestras da sedução calculada", como definiu certa vez
Fausto Fawcett, na passarela ou diante de câmeras, são, se definidas de maneira bem objetiva, seres de semblantes impassíveis com movimentos padronizados e poses programáveis que utilizam seu equipamento físico, talhado especificamente para aquele fim, para apresentar variedades de indumentárias humanas para consumo e provocar sensações das mais diversas. Quase robôs. Completando o conceito e a ironia, na época do lançamento do álbum, a banda utilizava-se com frequência de um conjunto de manequins, feitos à imagem e semelhança dos quatro integrantes, deixando-os no palco, nas posições dos verdadeiros, dos humanos, causando no público um misto de curiosidade, espanto, dúvida e inquietação. Definitivamente "The Model" era muito mais que uma recaída emocional.
"The Model " era uma aula de música pop que só comprovava a capacidade do Kraftwerk, já demonstrada em músicas como "Showroon Dummies" e
"Airwaves", de álbuns anteriores, de simplificar sua linguagem e compor canções mais adaptadas a um padrão mais convencional. E não que isso fosse uma concessão em nome de aceitação ou "sucesso", era simplesmente o ponto onde sua trajetória havia levado, tendo, muitas vezes para chegar até ali, que extrair sons sons de onde não havia, inventar equipamentos e inovar em métodos de gravação. No entanto, naquele momento, diante das tendências musicais vigentes, repletas de sintetizadores e repetições eletrônicas, era o Kraftwerk que soava como oportunista. "Metropolis" e "Spacelab", ambas de ritmo repetido e pulsante, eram frequentemente comparadas a trabalhos de Giorgio Moroder, compositor e produtor de grande sucesso no universo disco-music daquela metade para o final dos anos 70, em especial a "I Feel Love", música gravada por Donna Summer e que havia sido lançada no ano antes. Semelhanças existem mas o "usurpador", no caso era o produtor italiano que encontrara pronto um modelo que os alemães vinham lapidando há muito tempo, o que pode ser observado, por exemplo, na música
"Kristallo", do disco "Ralph und Florian", ainda da era pré-Kraftwerk que já continha o embrião daquela ideia. A mencionada "Spacelab", no que diz respeito à temática, por sua vez, mantém a linha de coerência e amarração do álbum uma vez que o espaço, as pesquisas, as descobertas, os desbravamentos, sempre tiveram no nosso imaginário, alimentadas pela ficção-científica, ligação com os robôs e humanoides.
Mas toda a questão homem-máquina converge para a faixa que encerra o disco e com ele divide o nome. "The Man-Machine", consegue com seus parcos e sucintos versos sintetizar toda a ideia do álbum, deixando em aberto questões como quem domina quem e quem, na verdade, é o robô:
"Man-machine, pseudo human being/ Man-machine, super human being..." ("Homem-máquina, semi ser humano/ Homem-máquina, super ser humano...). Uma composição magistral que habilmente inverte a hierarquia melódica, fazendo com que, sobre uma percussão eletrônica bem marcada e uma base praticamente fixa, um vocal sintético guie ritmicamente a música até culminar numa repetição da palavra "machine", subindo em escala, até concluir com um último MACHINE prolongado, pronunciado como algo entre o agonizante e o ameaçador.
Apesar da flexibilização do Kraftwerk em "The Man-Machine" e da identificação com a sonoridade do momento, o disco não foi muito bem comercialmente, com exceção de "The Model", que acabou frequentando as paradas, mas mesmo assim, apenas em uma segunda investida, num relançamento três anos depois, como lado-B do single "Computer Love" do álbum sucessor,
"Computer World", que daria continuidade ao conceito de "The Man-Machine" e confirmaria sua importância como consolidador da linguagem da banda dali em frente.
Um trabalho impressionante e assombrosamente profético. Em seis faixas o Kraftwerk antecipava elementos tecnológicos, urbanos, sociológicos e comportamentais do mundo atual como se tivesse visto tudo isso antes... Ei! Peraí...
Não, não pode ser...
...
Será?
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FAIXAS:
01 The Robots - 6:15
02 Spacelab - 5:57
03 Metropolis - 6:05
04 Model - 3:44
05 Neon Lights - 8:57
06 Man Machine - 5:30
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Ouça:
Kratwerk - The Man-Machine