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sexta-feira, 8 de março de 2024

"Vivos", de Frank Marshall (1993) vs. "A Sociedade da Neve", de J.A. Bayona (2023)

 



Enfrentamento dificílimo!

Dois grandes times!

Duas equipes de muita garra, muita coragem e determinação.

Por mais que "Sociedade da Neve" seja o time do momento, o mais conhecido, mais badalado, indicado ao Oscar, "Vivos", o esquadrão mais antigo que muita gente nem sabia existir, também tem muitas qualidades e chega para causar tantas dificuldades ao adversário quanto as montanhas dos Andes causaram aos passageiros daquele voo.

Ambos os filmes contam a história da queda de um avião, com uma equipe estudantil de rugby uruguaia, na Cordilheira dos Andes, da qual, após mais de setenta dias de sofrimento, frio, privações, fome, 14 tripulantes conseguiram sobreviver depois de terem que consumir carne humana de companheiros mortos, de modo a manterem-se suficientemente nutridos e enfrentarem as dificuldades daquele ambiente inóspito.

Com pequenas diferenças, uma omissão aqui, uma adaptação ali, uma liberdade criativa acolá, o enredo é basicamente o mesmo, o que não significa que os roteiros sejam iguais. A nova versão se fixa um pouco mais no passar dos dias, aumentando a expectativa e a dramaticamente do ocorrido, e ainda coloca para o espectador, a cada nova morte, o nome e a idade do falecido, amplificando a comoção e a ansiedade pelo fim daquela agonia. 1x0 para o time de 2023.

A construção dos personagens também é mais completa e bem elaborada no filme atual. A história é narrada por um dos tripulantes, o dedicado Numa o que aproxima o espectador daquela realidade. O espectador quase se sente próximo daqueles garotos, tão jovens, tão cheios de sonhos, de planos, tão cheios de vida pela frente. A gente sente a juventude. Só que sente também aquelas vidas, tão breves, indo embora. 2x0 para a Sociedade.

Por outro lado, senti falta de um comportamento um pouco mais "humano" dos sobreviventes, no filme atual. E quando digo "humano" não  me refiro a humanismo, boa vontade, compaixão, não! Isso tem de sobra. Sei que se tratava de um time, cujo grande mérito para conseguirem a sobrevivência do maior número possível de pessoas fora o trabalho em equipe, mas acho impossível que em mais de dois meses afundados entre as montanhas, atolados na neve, desesperados, não tenham tido altercações, desentendimentos, indisposição, brigas, egoísmos, coisas típicas do comportamento humano, especialmente em situações de desespero. Pois é, isso praticamente não aparecem no filme de 2023. Pelo contrário: a cada discordância, até mesmo na questão mais importante, que de certa forma salvou suas vidas, que era comer ou não a carne dos colegas, a solução era... rezar. Sei que a ênfase do filme era no companheirismo, na união, no trabalho de grupo, na amizade, mas, nesse sentido, o original é um pouco mais realista com uma serie de desentendimentos, rusgas e discussões de pessoas que, no fim das contas, eram apenas seres humanos. Vivos aproveita a falha do adversário e marca o primeiro: 1x2 no placar.

"Vivos" (1993) - trailer



"A Sociedade da Neve" (2023) - trailer


No entanto, tal 'suavização', creio que deve ter sido uma opção do diretor J.A. Bayona, muito competente, por sinal, de modo a enfatizar o lado positivo do grupo, uma vez que, em matéria de credibilidade, "Sociedade da Neve" é bastante mais fiel que "Vivos". Baseado no livro de um jornalista uruguaio, Pablo Vierci, que quando adolescente, acompanhou a tragédia, tinha amigos no voo e chegara até mesmo a cogitar, na época em fazer parte da delegação, "SDN" certamente se aproxima mais dos fatos ocorridos do que seu antecessor que, baseado nas pesquisas de um romancista inglês, Piers Paul Read, se dá a liberdade de mudar alguns nomes, criar alguns elementos ficcionais, e até, como Hollywood gosta, adicionar alguns momentos de ação. Mais um para SDN: 3x1.

Embora o bom Frank Marshall tenha caprichado em seu filme, lá em 1989, com uma parte técnica bastante competente e nada comprometedora, o novo é bem superior nesse sentido. Efeitos visuais, maquiagem, som, montagem, proporcionam sequências absolutamente impressionantes como a do momento do impacto da aeronave com o solo e as consequências com os passageiros (um voando pelo buraco na cauda do avião, pernas fraturadas entre os assentos, etc.), e a da primeira avalanche, que é   simplesmente apavorante. Filme que tira vantagem da tecnologia e dos recursos de sua época pra marcar mais um. 4x1. Sociedade da Neve parece uma avalanche sobre Vivos.

Mas Vivos ainda diminui. Se ambos não são totalmente fiéis quanto à parte do resgate e das repercussões, ou no mínimo incompletos, talvez para não se estenderem mais ainda, o filme dos anos 90 tem um elemento mágico que lhe garante mais um gol. O sapatinho vermelho! "Vivos" utiliza o elemento do sapatinho de bebê que o jovem Nando levaria para seu sobrinho no Chile e que, impedido de cumprir sua meta, divide o par com o amigo Carlitos como uma promessa de que voltaria, unindo novamente os dois pés do calçado quando retornasse da expedição final. Ao que ambos exibem exultantes quando resgatados, cada um com o seu, como símbolo de uma vitória. A vitória no confronto não veio, mas Vivos guarda seu segundo. Gol com um pezinho pequeno, de chuteira vermelha, mas que valeu a comemoração.

"Sociedade da Neve" vence o confronto de Libertadores, no frio, na altitude, ambiente hostil mas, na verdade, nesse confronto todos os sobreviventes são vencedores. 

No alto, à esquerda o grupo de "Vivos" e à direita o de "Sociedade da Neve",
amontoados dentro do que sobrou do avião.
Abaixo, à esquerda, um momento de ânimos alterados em "Vivos" e, em "Sociedade da Neve",
uma noção da aproximação que o diretor estabelece do espectador com os personagens,
aqui só pela expressão do ator.



"Vivos até tinha melhor elenco, com o medalhão Ethan Hawke, 
mas "Sociedade da Neve" veio com uma garotada e um time bem montado
e levou a Batalha dos Andes.

(Jogo daqueles disputado com bola colorida pra poder enxergar na neve)





por Cly Reis

terça-feira, 21 de abril de 2015

Maria Bethânia – Show “Abraçar e Agradecer” – Teatro do SESI – Porto Alegre/RS (16/04/2015)



O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI
foto: Amanda Costa
Não sou um expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não há comparação.
O espetáculo “Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória, carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua trajetória como uma das mais importantes artistas da história da música brasileira.
Sob luzes intensas de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas, Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela (junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado “Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia, misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira, mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel), evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi” ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971, ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/ Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz: “Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia, retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”, aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia: a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano, faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos, voltar com toda a velocidade.
As referências aos orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e “vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”), “Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”) dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa: “Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”), “Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo, “Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”, “Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira, representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de 1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta, por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”. Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio” fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/ Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `”É o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando, entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.