Sobre Bandeirantes e Gaudérios
Uma vez me contaram de um diálogo entre um gaúcho e um paulista
que até hoje reflito. Por motivos de trabalho, o gaúcho, avisando o paulista de
que dia 20 de setembro não haveria como se falarem por causa do feriado regional,
foi surpreendido com a seguinte pergunta irônica do paulista: “Ué: mas vocês
não perderam a guerra?”. Embora claramente jocosa, não há como contrariar de um
todo a observação. Se visto com olhar distanciado, o fato de se optar por
marcar a data pelos iniciais e astutos disparos de garrucha (20 de setembro de
1835) ao invés da discreta assinatura de um documento no seu término, em 1845,
soa suspeito. Suspeita de um engrandecimento de atos que, no subtexto malicioso
do tal paulista, não seriam assim tão grandiosos. A fama do gaúcho valente
seria, no fundo, uma propaganda enganosa, uma vez que a rebelião da Revolução
Farroupilha sucumbira a um diplomático e entreguista acordo. A birra pedante
por um país separado do resto do Brasil se esvanecera num acordo entre rebeldes
e Império, deixando tudo até hoje como o “Império” quer. Como diz o outro:
“rabo entre as pernas”.
Nem tão a terra nem tão a céu. Acho bárbaro esse sul de rios
grandes, serras, campanhas e metrópole, mas confesso que o desejo separatista
mal resolvido soa-me ainda o mesmo quando ouço a risada de muita gente que lê O
Bairrista e só acha graça em um dos lados da piada. Riem porque é engraçado
achar graça de ser superior aos outros, pois só sendo superior para achar graça
de si sem o constrangimento de não parecer ser. Por outro lado, não queiram vir
aqui esses ex-bandeirantes (ou seja, piratas-de-terra mercenários) desfazer um
povo que pensa e que não se omite de posicionar-se quando é preciso. De João
Cândido a Dunga, provas disso não faltam. Farroupilha mesmo! Dia desses, um
amigo meu ponderou-me alguns argumentos interessantes quanto à valorização dos
elementos folclóricos gauchescos. Ele me relatou que uma vez levou uma amiga
paulista ao acampamento farroupilha para que ela conhecesse as tradições de
nossa terra. O impacto e a excitação dela (inclusive desta forma que você está
pensando...) foram tamanhos que ele percebeu o quanto esse folclore vale tanto
quanto o de qualquer outro lugar. A diferença é que está aqui mesmo, é que, lá
fora, chamam de “folk”.
A questão é: em um país continental como o nosso, e onde se está
longe de uma unidade cultural e social de fato, há de se louvar que em algum
lugar, mesmo que no pé do mapa, tenha-se procurado encontrar um sentido por uma
terra que responda a todos. Sei que tanto não responde a todos quanto,
principalmente, a forma como muitas vezes esta unidade é proposta é totalmente
errada, e só faz aumentar (propositalmente) nossa distância dos outros brasis
que, quer queira, quer não, guris e gurias, fazemos parte. Eu, particularmente,
gosto de fazer parte. Orgulha-me neste 20 de setembro, mais do que pilchas e
chamas crioulas, as camisas dos gaudérios com um mesmo que discreto bordado com
as bandeiras do Rio Grande do Sul em um braço e do Brasil no outro (em tamanhos
proporcionalmente idênticos, importante que se diga). Isso sim é estar no aqui
para estar no mundo. Cabendo aqui neste pedaço de terra em forma de cuia onde
insistimos em nos fechar, socados como erva-mate, é possível caber em qualquer
lugar, inclusive nos outros brasis.
Mas além das bandeirinhas bordadas, também me encanta no 20 de
setembro o sorriso da prenda. Mas isso é de uma poesia tão grandiosa e
longitudinal que, este sim, não cabe nesses pagos. Atravessa as coxilhas,
invade os campos, alvoroça o gado. Esse sorriso, índio velho, é muito mais
redentor, não pertence a nós. Não pertence a nós.
por Daniel Rodrigues
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