"Toda personalidade musical, quando atinge a maturidade, é capaz de se dividir em muitas direções. Compare a complexidade rítmica e melódica de 'Playground', a faixa final, com o rhitym-and-blues-quase-objetivo de 'Tom Thumb', a de abertura. Não muito tempo atrás na história do jazz, teria sido difícil encontrar um compositor capaz de produzir duas obras de natureza tão díspares."
Leonard Feather, no texto original da contracapa do disco
Wayne Shorter nunca foi homem de pouco trabalho. Se hoje, aos 86 anos, ainda se mantém ativo, com disco lançado recentemente e não raro fazendo shows pelo mundo, nos anos 60, na flor da idade, seu ânimo era irrefreável. Além de compor as bandas de Herbie Hancock, Lee Morgan, Miles Davis, Grachan Moncur III, Art Blakey, Tony Williams, Lou Donaldson e outros, tinha gás e criatividade suficientes para tocar mais de um projeto solo ao mesmo tempo. Entre 1964 e 65, por exemplo, ele lançava nada menos que seis discos: "JuJu", "Night Dreamer", "The All Seeing Eye", “The Collector”, "Et Cetera" e "The Soothsayer". Em 1966, outros dois: "Adam's Apple", "Speak No Evil". Todos marcos do jazz. Na esteira desta fase abençoada, Shorter trouxe “Schizophrenia”, que se não é tão celebrado quanto alguns de seus antecessores, guarda igualmente as mesmas qualidades: o jazz vigoroso, a melodia penetrante e um punhado de sutilezas muito peculiares de seu autor, certamente uma das mais lendárias figuras da música moderna.
O deleite começa com “Tom Thumb”, um rhytm & blues cheio de latinidade e clara homenagem a Tom Jobim e à bossa nova em que dois acordes dissonantes, tal qual o mais famoso gênero musical brasileiro legou à música moderna, se entrecruzam para formar a melodia central. Tudo começa na elegante base de baixo de Ron Carter, mestre do instrumento e sabedor como poucos do fraseado do samba. Já Shorter e James Spaulding estão arrepiantes cada um com seu saxofone, tenor e alto, respectivamente. Ainda, um Joe Chambers incrível no gingado da bateria e o parceiro Hancock, outro manifesto admirador da música brasileira, fazendo os teclados batucarem. Das melhores faixas de abertura de um disco de Shorter – e olha que têm várias de alto gabarito.
Toda a luminosidade colorida do ritmo latino se converte na enigmática e nebulosa “Go”. Shorter e Spalding soltam literalmente os primeiros sopros, dando a entender que a canção irá se direcionar para determinado lado. Ledo engano, pois os ventos levam a melodia, propositalmente complexa e fugidia, para outras paragens. Primeiro, sobe, depois forma chorus, entra em consonância, desce novamente e nunca estabelece um verdadeiro ritmo, um compasso que a defina. O band-leader e autor da música a domina com altivez e abstratismo, enquanto Spaulding, audaz, amplia essa atmosfera ao atacar agora com a flauta. Mas é mesmo Hancock que se esbalda. Para quem escreveu temas oníricos como “Maiden Voyage”, esse é o tipo de situação para deitar e rolar. Além da base sabiamente modal, que solo brilhante de piano ele extrai!
Dá a se entender que a turma resolveu manter o clima fantástico de “Go”, mas após uma rápida intro de chorus dos sopros, a bateria surge em um crescendo para que todos entrem de vez no hard-bop pulsante da faixa-título em que ninguém deixa por menos em intensidade. A flauta de Spaulding rouba a cena em “Kryptonite”, faixa escrita por ele. Entretanto, não menos engenhosa é a concepção dada por Shorter, que aplica glissandos e variações de volume a seu sax. A bateria potente nas baquetas de Chambers segura, igualmente, um Hancock inventivo tanto na base da mão direita quanto na fluência da esquerda. Carter não fica para trás, tirando do grave do baixo a densidade certa.
Sabe aquele olhar peculiar que Shorter lança sobre sua música a que se referiu anteriormente? Dois deles estão em “Miyako”: a melodiosidade romântica e o toque do Oriente. Budista, o músico era casado à época com a musa inspiradora que dá título à canção, a qual ele já havia dedicado, um ano antes, em “Speak no Evil”, a música “Infant Eyes” e a própria capa daquele mesmo álbum. Resultado: uma balada linda, sensível, algo exótica, com destaque para os saxofones, que se completam mesmo em solos simultâneos. Como era de praxe à sequência de discos da época, o último número trazia uma harmonia mais complexa, o que acontece com “Playground” que, como se supõe, é um parque de diversões para os músicos soltarem a imaginação e destreza.
A se imaginar o trabalhão que deu fazer discos tão incríveis como “Schizophrenia” em tão pouco tempo renderia, ao menos, umas férias, certo? Errado em se tratando de Wayne Shorter, que logo em seguida emendaria mais discos solo, a fundação da banda referência do jazz fusion, a Weather Report, a parceria com Milton Nascimento e por aí vai. Até hoje não tem como parar esse fenômeno da natureza chamado Wayne Shorter. E nem há por que.
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FAIXAS
1. Tom Thumb - 6:15
2. Go - 4:52
3. Schizophrenia - 6:59
4. Kryptonite (James Spaulding) - 6:25
5. Miyako - 5:55
6. Playground - 6:20
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicada
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Adoro ler sobre jazz,mesmo não conhecendo nada sobre o gênero.
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