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quinta-feira, 3 de setembro de 2020

cotidianas #688 - Pílula Surrealista #42


Ouviram-se várias batidas de portas de entrada fechando-se, todas praticamente ao mesmo momento, ecoando pelos corredores permanente gélidos do condomínio. Reuniram-se pontualmente na hora marcada no hall de entrada, exatamente 16 vizinhos. Todos de máscara no rosto. Dividiram-se em seus vários carros em direção ao local onde se encontrariam, exatamente 28 minutos e 31 segundos depois de partirem do bairro nobre da Zona Norte. Chegaram naquele casebre na região Sul, pobre e desfavorecida. Mas não se importavam com a desvalia do lugar e nem muito menos com quem procuravam. Queriam, aliás, isso mesmo: seu desfavorecimento. Saídos de seus apartamentos devidamente alimentados para poderem executar a tarefa conjunta a qual haviam se proposto, um linchamento seguido de incêndio à propriedade (se é que dá para chamar aquela maloca velha e irregular de “propriedade”), não levaram muito tempo para, tomados de uma raiva supervalorizada e de uma razão a qual nem sabiam que suportavam, darem por realizado o serviço. Ainda com as mãos sujas e um tanto transpirados, um deles teve a preocupação de alcançar álcool em gel aos outros, que, muito agradecidos por aquele cuidado, se desinfetassem. Emocionaram-se, na verdade, com o gesto. Afinal, os riscos são muitos nessa vida. Notou-se, entretanto, que aquele ato de compartilhamento era o primeiro gesto social que acontecia entre eles, que, embora exitosos coletivamente na demanda a qual haviam se proposto, entre eles mesmos, nada haviam trocado além de um sentimento de vingança consensualmente justificado. Foi quando um deles, sob a iluminação intermitente do fogo incendiário que os aquecia mesmo que a certa distância, propôs amigavelmente que se conhecessem melhor. O primeiro e instintivo movimento foi de tirarem as máscaras. Viram, ou melhor, constataram que todos tinham o mesmo rosto. Idênticos. Menos por surpresa e mais por constrangimento, um a um repuseram suas máscaras faciais e retornaram sem pronunciar uma palavra a seus veículos blindados e insufilmados de modo que ninguém, nem mesmo eles entre si, os vissem tornarem a seus seguros, réplicos, espaçosos e gélidos apartamentos.

Daniel Rodrigues

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