Não me lembro ao certo o que aconteceu antes de eu entrar ao quarto e me deparar com um rato cinzento-amarronzado sobre a mesa roendo alguma coisa. Nem sei se comida era. Pensei: “Como minha gata não farejou que havia um rato dentro de casa?” Era minha casa... Sim, a lembrança de que tinha uma gata comprovava que era minha casa. Imediatamente, pensei no pavor que minha esposa sentiria quando soubesse que um rato havia entrado em nossa casa – isso: era nossa casa –, subido sobre a mesa e, mais que isso, se por acaso ela chegasse de repente e encontrasse o seboso animal chafurdando nossas coisas. Não sei onde minha esposa estava àquela hora, afinal, nem eu mesmo sei onde eu próprio estava antes de abrir a porta (sim, lembro-me que abri uma porta...) e me dar de cara com um roedor fazendo o que ele melhor sabe em sua insistente e determinada existência murídea. Sabia, e aí, agora com certeza, que tinha uma gata, uma esposa e que um rato entrara em nossa casa.
Não fiquei sem ação, por óbvio. Peguei, como qualquer um procederia, uma vassoura para atacar o invasor. Lembro-me disso. Presa fácil (estranhei), daquelas que não fogem nem à evidência de um ataque, imprimi-lhe o que me havia de força nos braços para acertá-lo. Meu golpe, no entanto, não surtiu efeito. Ou melhor: atingiu-o, mas era quase como se não tivesse sido desferido. Estranhamente, meus membros superiores, por mais vigor que tentara em meu impulso, nem de longe conseguiam atingir o objetivo. Parecia que meus braços, fracos, não acompanhavam a intenção do cérebro. Mas podia ser que tivesse errado o bote. Então, nova pancada. E nova frustração.Foi então que, antes de teimosamente buscar o terceiro ataque, percebi que não se tratava de um rato, mas sim de uma mulher. Uma senhora de idade e cabelos grisalhos (mais para brancos), estatura baixa, bem apessoada e com vestes bastante distintas, quase anos 30. Talvez essa sensação temporal me impressionara pelo chapéu clochê que usava com um leve declínio no coco da cabeça, até charmosamente para uma mulher de sua idade, algo entre os 60 e 70. Mas isso é só suspeita, haja vista que foi muito rápida a transformação de rato para a forma humana. Aliás, essa é outra suspeita, pois, de fato, não assisti a tal transformação: quando me dei conta, travei a por certo anêmica batida seguinte ao notar não ser mais um bicho. Ou foi muito rápido ou eu estava atento demais à minha intenção assassina para não ver.
Pensei: “Talvez isso explique porque minha gata não correu atrás e, sim, escondeu-se. Deve estar debaixo da cama ou por algum canto”. De imediato, contudo, veio-me outro pensamento em decorrência: “É fácil justificar a ausência da gata, mas muito difícil à minha esposa do porquê de uma senhora ter entrado aqui em casa sem que eu visse”. Ou pior: “Ficará ainda mais inexplicável se tentar justificar-lhe que a senhora usou a tática de entrar como um rato para, depois, sabe-se lá com que finalidade, virar humana”. Certamente, é mais fácil invadir a casa dos outros, independentemente do motivo, sendo rato do que humano. Só sei que, ao que a vaga lembrança onírica me conserva, não agi mais. Deixei-a, a senhora-rato. Não mostrou ela interesse em me morder e nem eu de machucá-la. O que, convim comigo mesmo, acho, não era motivo para que lhe aplicasse a mesma pancada que impiedosamente se dedica aos que não são da nossa espécie. Deve ter sido assim...
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