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sexta-feira, 29 de abril de 2022

cotidianas #753 - O Cangaceiro

 

por Daniel Rodrigues

Admirar e criar arte tem, claro, muito da sensibilidade daquilo que vem conosco na alma. Porém, não podemos esquecer daqueles que, de alguma maneira, contribuem para esse olhar artístico e sensível que se desenvolve na vida. Meu irmão é um caso cristalino disso para mim. Já falei para ele do quanto de responsabilidade ele tem no que se refere à minha paixão pelo cinema desde quando, generosa e amoravelmente, me contava ipsis litteris as histórias do que havia visto nos cinemas quando eu ainda não podia acompanhá-lo em determinadas sessões por causa da idade. Mas não é sobre isso que eu quero falar agora (quem sabe, deixo para uma outra recordação escrita) mas, sim, justamente sobre este olhar artístico. Um olhar que não deixa de ser, no final das contas, a preservação daquele sentimento lúdico de quando nós, eu e ele, crianças, brincávamos juntos, tornando ideias inanimadas em algo nosso, em diversão, em comunhão. Em arte.

"O Cangaceiro" (2022)
RODRIGUES, Daniel
Pastel sobre papelão pardo (21x29cm)
E posso afirmar que a arte salva. Ao menos, salvou a minha pele uma vez em que contei com esse olhar artístico de meu irmão para me tirar de uma enrascada. E que salvamento foi aquele! Sabe aquela mania de aluno de deixar para fazer o que foi pedido na escola para a última hora? Quem nunca, né? Pois, desta vez, no entanto, não foi uma mera lição de casa, mas a preparação para uma festinha na escola. 

À fantasia. 

Eu e meu irmão estudávamos no Edgar Luiz Schneider, escola estadual na Intercap, bairro periférico da Zona Leste de Porto Alegre, que ficava a poucas quadras de nossa casa. Ele, mais velho, pela manhã, nos anos mais avançados do Ensino Fundamental, e eu, criança, à tarde, pela quarta ou quinta série. Haveria, portanto, uma festa à fantasia na minha sala naquele dia, a qual havia sido anunciada pela professora a todos os alunos com a devida antecedência. Tudo bem, considerando que não era incomum as professoras mobilizarem os alunos para alguma celebração, às vezes nos pedindo para levar de casa lanches ou bebidas. E tudo bem também em deixar para a última hora, pois dava para comprar uns salgadinhos ou um refri no mercadinho a caminho do colégio. Porém, naquela vez eu havia deixado de providenciar justamente o motivo da festa, ou seja, a fantasia.

Almoçado e de mochila pronta, lembro que congelei antes de cruzar a porta de saída de casa: “E a minha fantasia?!”, lembrei-me. Bateu aquele pavor. Mesmo que aquela falta não tirasse ponto no boletim, seria muito vexatório chegar com a roupa do dia a dia e encontrar meus colegas vestidos de Super-Homem, fadinha, Batman, bailarina, She-Ra, Smurf ou seja lá o que fosse. Havia apagado da mente a tal festinha e, com isso, cancelei a oportunidade de ir à antiga loja SuperFestas, no Centro, com minha mãe para achar algo que me trajasse. Aliás, minha mãe, no trabalho àquela hora, início da tarde, nem desconfiava que o filho passava por uma complicação daquela natureza. 

O que eu faria? Como sairia daquela? Nada ocorria a mim, criança pouco despachada para traquinagens que poderiam desencavar alguma solução. Foi então que, percebendo minha aflição, um anjo se postou à minha frente. E quem tem anjos em forma de irmãos artistas, tem mais chances de ser salvo – nem que seja da reprimenda da profe ou, pior, da tiração de sarro de coleguinhas fantasiados.

Informado do meu caso, meu irmão (não sem antes me lançar aquele olhar repreensivo de: “Tu, hein, Dã!...”), pôs-se a pensar comigo numa roupa que tivesse caráter de alegoria, mas que conseguíssemos resolver ali, dentro de casa e em poucos minutos, pois a sirene do colégio tocaria dali a pouco. O que poderia ser com o que se tinha a mão? Quem sabe, algo dele mesmo. Não daria, visto que a nossa diferença de idade, àquela época, eu, criança, e ele, adolescente, significava também uma brutal diferença de medidas. Esquece... Algum vestido de minha mãe? Mas seria uma fantasia de que, de Super-Dona Iara? Não, não era uma boa ideia também... Ou, talvez, procurar alguma peça guardada de minha vó... mas o que exatamente? E quanto tempo se levaria para, provavelmente, não encontrar algo que cumprisse a função de fantasiar? Estava difícil. Até que ele, artístico como sempre foi, afeito ao desenho e às formas, teve uma brilhante ideia. Afastou-se de mim e saiu pela casa. Via-o passando de peça em peça procurando coisas. Depois, vasculhou o guarda-roupa e, de volta, por fim, me perguntou: “Tu ainda tem aquela sandália horrível de couro que a mãe te deu?” Sim, eu ainda tinha as tais sandálias de dedo, as quais, de fato, eram horríveis, próprias para um bom retirante nordestino. Nunca gostei de usar sandálias, mas daquela vez não só tinha de usar como acabei gostando da ideia. Explico.

Obediente e colaborativo, visto que parecia que meu problema ia se resolver, fiquei tal um manequim imóvel à disposição de meu irmão enquanto ele, com um figurinista, me produzia. Pôs-me um casaco de inverno bege com as mangas encurtadas e aproveitou a própria calça de jeans escuro que eu já vestia dando um jeito de virar suas bainhas até quase a altura dos meus joelhos. Também enrolou um lenço em meu pescoço com o nó para a frente, fechado no gogó. Claro, tive que trocar meus confortáveis tênis pelas benditas sandálias franciscanas, mas eu estava convencido de que calçar aquilo era por uma boa causa. O requinte final do figurino foi um malcheiroso chapéu de couro de vaqueiro que decorava a parede de nossa sala, o qual meu irmão enfiou-me na cabeça, e ainda me deu na mão uma espingarda de plástico tipo baioneta tirada do nosso cesto de brinquedos. 

Estava pronta minha fantasia: eu havia virado um cangaceiro.

De quase intruso e deslocado, eu virei a atração da festa por causa de minha fantasia de pequeno Lampião. Até meus óculos de armação redonda lembravam, coincidentemente, os usados pelo valentão Virgulino. Não teve pra Super-Homem, bailarina, fadinha, Batman, She-Ra, nenhuma daquelas fantasias prontas e compradas pelos pais de meus colegas. Embora perfeitas, nenhuma batia a minha em criatividade e impacto, tanto que as professoras, que me queriam muito bem e admiravam aquele guri dedicado e estudioso que eu era, perguntavam-me, admiradas: “Quem teve a ideia de fazer essa fantasia, Daniel?” E eu dizia, orgulhoso: “Meu irmão”. O mesmo que hoje, arquiteto, pai dedicado e compartilhador de sua veia artística com a filha e com o mundo, completa mais um aniversário. Um eterno cúmplice e parceiro de minhas investidas artísticas. Estarei sempre aqui para te servir de manequim e me transformares naquele homenzinho do Cangaço ou naquilo que te vier à mente. Sei que será algo muito criativo e inspirador para a minha vida, com certeza. Isso é infalível. 

Te amo, cabra da peste.


Para Clayton

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