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terça-feira, 11 de outubro de 2022

cotidianas #773 - Pílula Surrealista #51

 

Ele chegou cansado do trabalho. Desgastado para usar o termo correto. Entrou pela porta e viu a esposa sentada na sala assistindo tevê. Tentou puxar uma conversa amistosa:

- Oi, amor, tudo bem? O dia foi puxado hoje na firma, sabe? Chefe cobrando resultado, cliente reclamando, colega puxando o tapete... até uma multa levei do guarda de volta pra casa.

- Arrã... - consentia ela, vidrada na tela, sem dizer mais nada além desta preguiçoso interjeição.

- Então... vou tomar um banho, sabe? Preciso. Estou exausto, acabado. Mas o banho vai me dar uma nova vida, você vai ver. - disse a ela, como se a esposa, absorvida em seu próprio mundo, tivesse algum interesse. - Vou sair um homem novo do banheiro.

A promessa foi cumprida:

- Tcharaaaaaammm! Viu só, eu não disse que sairia outro?

Ela tirou o olhar da tevê por um instante - mas somente o olhar, sem levar a cabeça junto, apenas conferindo - e constatou que, realmente, o marido mudara. Era outro homem. 

Homem, não: primata. Um mamífero antropoide de hábitos diurnos, vegetariano, muito corpulento, com ombros largos, braços compridos, dentes caninos salientes, focinho curto e orelhas pequenas. Um gorila.

Desconfiada, mas nada surpresa, a esposa moveu pela primeira vez a cabeça da direção da tela e voltou-a para o marido repaginado. Franziu a testa pensando em algo que somente a mente de mulher pensaria, e terminou formando um sorriso discreto mas genuíno no rosto. Voltou a assistir a tevê, mas agora nada entediada e não mais desfez o auspicioso sorriso.


Daniel Rodrigues

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