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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

cotidianas #784 - Pílula Surrealista #52

 

Caroline era muito querida pelos colegas de firma. Tanto que foi um choque para o grupo quando souberam que ela havia sido demitida. A notícia, dada pela gerente de RH, caiu como uma bomba silenciosa no meio do escritório. Incrédulos, os colegas se entreolhavam, uns com lágrimas nos olhos, outros tentando conter a indignação ou cabisbaixos ou abismados ou recorrendo à reza de um terço. Como ficariam sem Caroline? E as visitas dela aos setores... e o "bom dia" que não mais receberiam... e o sorriso largo, a risada encantadora... os gestos educados...? Passou pela cabeça de um deles deflagrar uma greve. Não seria estranho que quisesse também, em represália, implantar uma bomba bem debaixo da mesa da gerente. Mas não poderiam, sabiam. 

O jeito foi sequestrar Caroline antes que ela pusesse o pé na rua e escondê-la amarrada no porão. Ali, davam-lhe água e a alimentavam com os restos da refeição de todos os colegas arrecadada dos pratos no restaurante da esquina onde iam religiosamente todos os dias da semana. 

Acontece que custava muito alimentar alguém, assim, em tempos de crise. Afinal, o vale-refeição de Caroline havia sido desativado fazia mais de um ano, desde que a direção fizera aquela barbaridade de despedi-la. 

Soltaram-na, então. A primeira coisa que Caroline fez foi voltar à sua casa para rever marido e filhos. Ingênua, não previu que encontraria o companheiro casado novamente. Até a barba, a qual nunca havia aberto mão, estava feita, rosto limpo.

- A senhora quer alguma coisa? Não tenho trocados, me perdoe. Verônica, você tem uns 2 pilas aí contigo?

A maltrapilha e fedorenta Caroline nem deixou que a nova esposa respondesse e escapuliu, como um rato ágil e conhecedor dos atalhos subterrâneos.

A tranca de acesso ao porão estava destravada, tal como havia deixado. Então, pode retornar à nova casa, que agora lhe parecia tão acolhedora e familiar. Mesmo com a crise econômica, alguém haveria de seguir alimentando-a com o que desperdiçava da refeição diária. Sentia-se cidadã e cumpridora de seu papel social ao reaproveitar comida. Esta dignidade não iriam negar-lhe.


Daniel Rodrigues

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