Foram poucos dias de visita à minha família naquela que é minha segunda cidade, Rio de Janeiro, mas de uma programação cultural significativa. Teve show, feira, bares, passeios, flâneur e, claro, exposições de arte. Dentre elas, uma que juntou mais de um desses atrativos: após uma caminhada pelas ruas entre o Cosme Velho, a Laranjeiras e o Flamengo, minha mãe e eu fomos parar no charmoso Espaço Cultural Arte Sesc, novo espaço cultural do Rio ao qual já saí de Porto Alegre com intenção de conhecer. Minha mãe, já tinha ido ao bistrô tempo antes, mas não às salas expositivas, que guardavam uma rica surpresa para nós: um encontro com as nossas raízes pretas na bela mostra tripla “ÀMÌ: Signos Ancestrais”.
Antes de mais nada, vale, contudo, conhecer o próprio espaço em si,
mesmo que não se almeje ver alguma exposição. Instalado num belo casarão em estilo
Eclético construído em 1912, o Espaço Cultural Arte Sesc foi a moradia do
empreendedor tcheco Frederico Figner, pioneiro da indústria fonográfica no
Brasil e fundador da Casa Edison e da Odeon, a primeira gravadora musical do
país (olhe só esses reencontros com aquilo que a gente gosta). Originalmente
denominada Mansão Figner, a edificação representa ideais da época em que o Rio
de Janeiro era a capital do país, sendo uma das mais relevantes e
significativas casas de natureza residencial que integram o patrimônio
arquitetônico da cidade.
A bela casa estilo Eclético do novo espaço cultural do Rio |
As divindades do Candomblé estão identificadas seja na figuração
quanto na abstração, em que os artistas assumem um lugar de representação e
representatividade. Instigante, a obra de Guilhermina coopta essa divindade
para uma realidade mais urbana e moderna, colocando neste panteão personagens
pretos como Madame Satã, Yêdamaria e Arthur Bispo do Rosário na sequência de
serigrafias. Ela também instiga a reflexão no díptico “Noite Eterna”, em que o
machado de Xangô sustenta seu povo, seja no dia ou na noite, quer dizer, na
eternidade. Interessante também o painel de Cruz, transversalizando a arte
urbana do seu bairro, Irajá, família, ancestralidades e musicalidades
afrorreferenciadas.
Mas, evidentemente, o grande impacto fica por conta da seção
destinada a Emanoel Araújo. Falecido precocemente no ano passado, este
intelectual nascido na terra de Caetano Veloso e Maria Bethânia, Santo Amaro da
Purificação, foi escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador,
cenógrafo, pintor, curador e museólogo. Suas obras tensionam tridimensionalidades
que dialogam com construções totêmicas africanas num conjunto de dogmas retrabalhados
e reinscritos em um novo lugar: na diáspora afro-brasileira. É o que se vê na assombrosa
capacidade de síntese que suas peças deflagram, caso da impactante “Exu”,
montada a partir de elementos não apenas artísticos mas, antes de tudo, totêmico:
espelhos, miçangas, cabaças, conchas, pregos e ferro. Em sua concepção que amalgama
pesquisa em profundidade e sentimento de identidade, a técnica se reveste de simbologia.
O curador da mostra se refere à Araújo dizendo que este “observa
e reflete a África em dimensões contemporâneas, pensa a travessia dos signos,
registra o povo negro com amabilidade e doçura, raras nas interpretações
violentas e caricatas de então, direcionando-se, também, à percepção de si como
um homem negro afrodiaspórico”. “Relevo” (madeira e tinta automotiva), “Xangô”
(madeira, tinta automotiva, vidro, machado, máscara e miçangas) e “Sem título”
(madeira policromada) trazem isso com absoluta coesão. Neste aspecto, a arte de
Araújo remete às composições geométricas de um de seus mestres, o conterrâneo
Rubem Valentim – com quem há paralelo, inclusive, em outra exposição que
visitei, no Casa Roberto Marinho. Os símbolos e emblemas afro-brasileiros
de Valentim reaparecem revisitados e ressignificados em Araújo.
Confiram, então, algumas fotos e vídeos da exposição e do
espaço:
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Entrando na sala expositiva
Arte urbana de Raphael Cruz no Arte Sesc |
Guilhermina Augusti e suas novas divindades |
A eternidade do machado de Xangô |
A fascinante obra de 1985, mais antiga da mostra |
A densa "Exú", de Emanoel Araújo |
Outra obra divina de Araújo |
Detalhe da madeira policromada |
Os dois flâneurs do Rio encerrando o passeio na exposição |
E este blogueiro em frente ao mural do Arte Sesc |
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