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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

“Retrato de uma Jovem em Chamas”, filme de Céline Sciamma (2020)

 

Em “Retrato de uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma, além de todas referências a Orfeu, percebi um construção de personagem passado para a tela. Essa referência foi arrebatadora, pois Marianne (interpretada por Noémie Merlant) apresenta o retrato feito a Héloïse (Adèle Haenel). A jovem olha a pintura, parece não se reconhecer e pergunta: “Essa sou eu?” A pintora acaba fazendo um retrato muito técnico, sem trazer a profundidade e a presença da jovem. Héloise então critica a pintora: “Então você me vê assim sem vida, sem presença, sem profundidade?” Marianne diz que o retrato não revela o olhar dela, mas um “olhar de todo mundo”, o olhar da técnica, um olhar frio, mecânico. 

Tal fala da musa, do ser olhado, me remete ao pensamento de Didi-Huberman em “O que vemos, o que nos olha”: “O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu jeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida inquieta, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado” (1998, p.77).

Nesse sentido, o olhar “técnico, sem vida” de Marianne, não revela a falta de vida e profundidade de Héloïse, mas sim da artista que executava seu trabalho dotado de “regras, convenções e ideias”, impessoal, distante. O olhar que construímos em uma obra de arte é um olhar carregado de sentimentos, carregados de certa profundidade, não simplesmente algo carregado de habilidades técnicas.

Héloïse e Marianne: relação que evolui para a intimidade através da arte

Ao receber a crítica, a artista borra sua obra e se propõe a fazer novamente seu trabalho. Há uma quebra da relação hierárquica artista/objeto (musa). A mãe de Héloise, que também exerce um poder nessa relação de criação da obra, visto que é ela quem encomenda e paga a obra. Então, no momento em que a mãe se ausenta, abre-se espaço para a liberdade de criação. Com isso, as jovens Marianne, Héloise e Shopie (a criada, vivida por Luàna Bajrami) passam a ter uma relação mais igualitária, longes das observações vigiadas. A vivência dessa liberdade traz a cumplicidade. 

Marianne aperfeiçoando
o traço

A relação entre artista e musa também parece se tornar mais igualitária. Tremi na cena que em Héloise está posando e Mariane diz o seu ponto de vista enquanto artista e Heloise a convida para ter sua perspectiva. A perspectiva de quem está sendo posada, olhada e diz é a mesma coisa. Há uma espécie de espelhamento, colocando essa igualdade entre artista e seu “objeto”. Essa proximidade vai despertando o desejo de ambas. Artista e musa se tornam íntimas. E com a paixão, é que será possível construir a imagem de uma Heloíse desejante. Melhor Filme (European University Film Award), Melhor Roteiro (Cannes. Cesar e Prêmio do Cinema Europeu) e Melhor Fotografia (Cesar e National Society of Film Critics Award). Quem ainda não viu, veja para ontem.

por Daniel Vicini


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Donald Byrd - "Black Byrd" (1973)



"Há muito tempo, dentro e fora da música, Donald é um pesquisador. Ele continua buscando e absorvendo experiências. Quanto ao seu futuro na música, na opinião do próprio Donald, 'o céu é o limite'".
Nat Hentoff, texto da contracapa original do disco

Um dos melhores e mais perfeitos álbuns que já ouvi. Foda, foda, foda! Os puristas gritaram de indignação quando Donald Byrd lançou "Black Byrd", uma incursão completa no R&B que irrompeu em um fenômeno popular. Byrd foi considerado um vendido e um traidor de suas credenciais no hard bop, especialmente depois que "Black Byrd" se tornou o álbum mais vendido da história do Blue Note. O que os elitistas perderam, porém, foi que "Black Byrd" foi o momento em que a marca de fusão de Byrd finalmente saiu da sombra de sua principal influência, Miles Davis, e encontrou uma voz própria e distinta. Nunca antes um músico de jazz abraçou o som e o estilo de celebração do funk contemporâneo tão completamente quanto Byrd fez aqui - nem mesmo Davis, cujo dark funk da selva caótico contrastava fortemente com a música alegre e dançante do "Black Byrd".

Byrd dá rédea solta ao produtor/arranjador/compositor Larry Mizell, que cria uma série de peças melódicas fortemente focadas, muitas vezes em dívida com as orquestrações mais longas de Isaac Hayes e Curtis Mayfield. Eles são construídos sobre os ritmos funk mais simples que Byrd já enfrentou, e se as estruturas não são tão soltas ou complexas como seu material de fusão anterior, elas compensam com um senso funky de groove que é quase irresistível.

Os solos de Byrd são principalmente melódicos e econômicos, mas isso permite que o funk ocupe o centro do palco. Claro, talvez o piano elétrico, os efeitos sonoros e a onipresente flauta de Roger Glenn datem um pouco a música, mas isso é realmente parte de seu charme. "Black Byrd" era o que há de mais moderno para a época e estabeleceu um novo padrão para todas as futuras fusões jazz/R&B/funk - das quais havia muitas. Byrd continuaria a refinar esse som em álbuns igualmente essenciais como "Street Lady" e os fantásticos "Places and Spaces", Mas "Black Byrd" se mantém como sua declaração de assinatura inovadora.

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FAIXAS:

1. "Flight Time"  - 8:31
2. "Black Byrd" - 7:21
3. "Love's So Far Away"  - 6:01
4. "Mr. Thomas"  (L. Mizell/W. Jordan) - 5:04
5. "Sky High"  5:57
6. "Slop Jar Blues" - 5:39
7. "Where Are We Going?" (L. Gordon/ L. Mizell) - 4:39
Todas as composições de autoria de Larry Mizell, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


por Daniel Vicini

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Caetano Veloso - "Caetano Veloso" (1971)



"Esse [disco] é deprimidérrimo. É o primeiro do exílio em Londres e o primeiro disco em que toco violão. Os ingleses me liberaram para o violão. Achavam lindo o meu jeito de tocar e os brasileiros achavam horrível. Se eu não tivesse sido preso e exilado, talvez nunca tocasse violão num disco." 
Caetano Veloso, em 1991

"Um santo francês disse uma vez que é tão perigoso para um escritor experimentar um novo idioma quanto é para um crente experimentar uma nova religião: ele pode perder a alma.Caetano adotou o inglês para as letras deste álbum para converter suas primeiras impressões de viver em um país estrangeiro."
Texto de apresentação na contracapa do disco

Ausência, isolamento, solidão. Exílio. Esta foi a condição de Caetano Veloso ao gravar o álbum de 1971. Em tempos de coronavírus, onde o isolamento nos fez reféns, este álbum nos serve como um bálsamo para abrandar e até compartilhar dos sentimentos de falta, ao menos refletirmos sobre.

“Caetano Veloso”, o álbum, é um disco triste, porém lindo. Muito lindo. E me fez pensar no dito de que “é no desespero que parimos nossas obras mais lindas”. Caetano estava depressivo, ao encararmos sua feição na capa do disco, envolto em um casaco de pele ele nos fere com seu olhar cansado, triste, longínquo.

“A Liitle More Blue”abre o álbum, melancólica, uma carta de saudades do Brasil. O Brasil do “ame-o ou deixe-o”, corrompido por uma falsa promessa de crescimento. Caetano foi vítima do nacionalismo e conservadorismo que, juntos, ceifam o pensamento crítico e a liberdade de expressão. O álbum segue com “London, London”. Linda, uma bela melodia que canta a liberdade numa terra estranha. Porém, não é a casa, não é a Bahia: é o exílio.

“Maria Bethânia”, a terceira música, uma carta para sua irmã que está no Brasil. Aqui Caetano brinca com o diminutivo de Bethânia (Beta) com a palavra em inglês “better”. “Melhorando, Melhorando, Beta, Beta, Bethânia”. No que antecedeu a gravação do disco, Bethânia havia solicitado aos órgãos de repressão brasileiros a possibilidade de Caetano vir ao Brasil para o aniversário de casamento dos pais, o que foi liberado. A música mantém um clima de repente nordestino, que se encaixou perfeitamente na levada samba hipnótica. Sendo que, neste álbum, Caetano tocou violão em todas as músicas a pedido dos produtores ingleses, que adoravam seu estilo de tocar.

“If You Hold A Stone”: Caetano Veloso criou esta música a partir da obra “Nostalgia do Corpo”, de Lygia Clark, realizada na II Bienal da Bahia, em 1968, onde uma pessoa segura uma pedra e outra pessoa faz um abrigo, sem se tocarem. Pode ser bom então tentar resgatar algumas lições deixadas por Lygia Clark: a casa é o corpo, existe cuidado sem contato, é possível exercer o sensível como uma expansão compartilhada da duração e da presença.

“In the Hot Sun of Christhmas Day”, é a história da prisão de Caetano e Gil em 1968, no advento do AI-5. “Asa Branca” fecha o disco, na minha opinião é um lapso do interior nordestino conectado ao cosmos. Caetano universal. Sideral.

Uma curiosidade: no aniversário de 70 anos de Caetano, um esforço foi feito pelas redes sociais para descobrir quem no mundo tinha a edição inglesa deste disco gravado em Londres. Porque a edição brasileira tem um corte em “A Little More Blue” feito pela censura. Caetano fazia uma menção à (atriz argentina) Libertade Lamarque e a censura pensou ser que Caetano estava pedindo liberdade para Lamarca.

Se para preservar a saúde de si e dos outros será necessário mantermos distância, pode ser também propício criar novas formas de contato entre nós – ainda que de longe. Em termos de distância, Caetano Veloso canta sua saudade do Brasil e, obviamente, da Bahia, estando exilado em Londres quando ao lançamento deste disco, que é o meu favorito na discografia dele.

D A N I E L   V I C I N I


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FAIXAS:
1. "A Little More Blue"
2. "London, London"
3. "Maria Bethânia" 
4. "If You Hold A Stone"
5. "Shoot Me Dead"
6. "In The Hot Sun Ff A Christmas Day" (Gilberto Gil/Caetano Veloso)
7. "Asa Branca" (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira)
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


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Daniel Vicini, natural de São Marcos (RS) é, desde sempre, apaixonado por artes plásticas ou simplesmente arte. Estudou Artes, mas não chegou a se formar,, pois no fim, num delírio de êxtase, pensou não ser um diploma que o fizesse o artista que era/queria ser. É um receptor universal, destro, mas de esquerda. Hoje pode dizer que suas paixões na vida são as artes plásticas, o teatro e a música. Era uma vez um artista contemporâneo e os abismos que arrastava por onde ia.