Uma de minhas catequeses em cinema foi a finada sessão
CineClube Banco do Brasil, que, nos anos 90, passava aos sábados à noite na TV
Band (com apresentação luxuosa de Fernanda Torres, inclusive). Dentro os vários
cult-movies e clássicos que tive o
privilégio de assistir ali, de produções asiáticas a mexicanas, os filmes
europeus dos anos 80 protagonizados por crianças durante ou pós-Segunda Guerra
me marcaram fortemente, sendo fundamentais para o meu entendimento da
profundidade da arte cinematográfica hoje. A maturidade histórico-social da
Europa naqueles idos parece ter motivado alguns cineastas a produzissem obras
com características em comum: casamento de realismo e poesia, um sabor lúdico,
narrativas sensíveis, desfechos não necessariamente finitos e, principalmente,
uma abordagem crítica, por vezes sutil, mas contundente, na visão das crianças,
fugindo dos estereótipos fantasiosos de filmes sobre a infância. Registro aqui
alguns desses títulos tão especiais a mim.
Adeus, Meninos (França,
1987)
Do mestre Louis Malle, “Adeus, Meninos” é um conto sobre
amizade, intolerância, valores e descobrimento. Durante a Segunda Guerra, na
França ocupada pelos nazistas, uma escola católica esconde alunos judeus. O
garoto Julien vê com desconfiança a chegada do novo colega Jean, mas logo se
torna seu amigo. O absurdo da guerra lhes põem em conflito entre o ser e o
estar, abrindo um paradigma de reflexão e autoconhecimento.
Multipremiado, “Adeus, Meninos” recebeu Leão de Ouro em
Veneza e sete César, incluindo Melhor Filme, Roteiro e Direção, além de
indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Roteiro Original.
A história, baseada em lembranças de infância de Malle, traz um tom
narrativo simples mas sensível e minucioso, deixando de lado a visão romantizada
da infância típica de obras autobiográficas ao criar uma parábola sobre o fim
da inocência. Com referências claras a "Os Incompreendidos" (Truffaut, 1959) e
“Zero de Conduta” (Vigo, 1933), o filme, também escrito e produzido por Malle,
marca uma “volta às origens” na cinematografia deste cineasta que foi um dos
precursores do cinema moderno francês, uma vez que ele vinha de realizações
norte-americanas tanto ousadas quanto questionáveis. Disponível em DVD pela
Silver Screen.
Minha Vida de
Cachorro (Suécia, 1987)
De um lirismo encantador, estilo próprio do diretor Lasse
Hallström, é considerado um dos filmes mais marcantes da década de 80 e o meu
preferido dentre os títulos que destaco. De sucesso comercial à época e
vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, além de indicações ao
Oscar, este cult foi responsável por
impulsionar a carreira internacional de Hallström, que posteriormente seguiu
carreira nos Estados Unidos, dirigindo o aclamado “Chocolate” (2000).
O filme mostra a pré-adolescência do garoto Ingemar, que
mora num vilarejo sueco no final dos anos 50 com o irmão mais velho e a mãe
tuberculosa, uma mulher perturbada que vive em constante conflito com os
filhos. Um pouco Charlie Brown, ele reflete sobre o porquê das coisas, sem compreender
muito bem para onde sua vida o está conduzindo. Mas vai levando! Sua melhor
amiga, a cadela Sickan, sofre, como ele, de um forçado exílio: é enviada para o
canil ao mesmo tempo em que seu dono vai passar a temporada de verão com os
tios, Lá, o garoto conhece novas pessoas e faz amizades. A solidão existencial
do “cachorrinho” Ingemar, resultante da incerteza de ter um lar e da distância
física e emocional para com sua família (incluindo a cadela), não é motivo, no
entanto, para tristeza. À parte de tudo isso, Ingemar é querido pelos tios e
pelos amigos, e a percepção feliz de criança prevalece, o que dá cores
especiais ao filme.
Sob o enfoque do garoto, que narra a história através de sua
visão pura e imaginativa, o filme transporta o espectador para a realidade
do protagonista, por vezes engraçada, por vezes dura, mas nunca triste.
Sensível, aborda aspectos cotidianos com naturalidade e beleza, como a amizade
com a menina que gosta de se vestir como menino para poder jogar futebol, a
conquista dele para com o tio, resistente de início àquela nova pessoa em sua
casa, ou sua descoberta da sexualidade, ainda cheia de interrogações mas
intuitivamente saborosa. Esta aparente simplicidade do filme, porém, acaba
suscitando aspectos profundos e ricos de significado. Um filme adorável.
Disponível em DVD pela Versátil.
Quando Papai Saiu em
Viagem de Negócios (Iugoslávia, 1985)
Segundo longa-metragem de Emir Kusturica, recebeu a Palma de
Ouro no Festival de Cannes – feito que o diretor repetiria 10 anos depois com
“Underground”, entrando para uma seleta lista de cineastas que levaram duas
vezes a distinção. O filme se passa nos tempestuosos anos pós-Segunda Guerra na
Iugoslávia stalinista, revelando a visão de Miki, um garoto de 6 anos cujo pai,
funcionário do Ministério do Trabalho, é preso pelo sistema político repressor
da época. A família, por verem-no preocupado com o sumiço do pai,
conta-lhe que este viajou a negócios. Acreditando na história, a criança passa
a viver sempre à espera do retorno, mas o tempo vai lhe ensinando outros
desafios.
Como fuga daquela realidade tão terrena, o sonho do menino é
uma viagem ao espaço. Neste sentido, “Quando Papai…”, assim como “Minha Vida de
Cachorro“, aborda de maneira inteligente e bem-humorada o descobrimento de
valores e o questionamento das razões da existência. A dicotomia proximidade/distância
e sentir/estar se repete, inclusive no aspecto da “viagem espacial”, uma vez
que no longa sueco a mente imaginativa do protagonista constantemente
relacionava a cadela Sickan à outra cachorrinha, a Laika, conhecida
mundialmente por ter viajado ao espaço e lá morrido. Nos dois filmes, a
significação simbólica do elemento “espaço” está fortemente relacionada à
construção da identidade dos dois personagens, que buscam conceber sentidos,
como o de usar como defesa para seus medos a irrealidade, e o de tentarem,
dentro de suas limitações e pureza, compreender o mundo que lhes rodeia.
Profundo e belo. Disponível em DVD pela Lume Filmes.
Filhos da Guerra
(Alemanha/França/Polônia, 1990)
Obra-prima da talentosa Agnieszka Holland sobre aspectos
muito profundos da condição humana e da barbárie promovida pela guerra, é
certamente o mais intenso dos filmes aqui destacados. Assim como os filmes de Hallström
e Kusturica, “Filhos da Guerra” também foi o alavancador ao cinema
norte-americano para a diretora polonesa por conta de seu sucesso (recebeu o
Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro), que, em 1993, rodou nos Estados
Unidos o belo “O Jardim Secreto”.
Baseado em fatos verídicos, conta a incrível história de
Solomon Perel, um jovem que sobrevive ao Holocausto escondendo sua identidade
judaica e, paradoxalmente, encontra refúgio junto à Juventude Hitlerista. Sua
trajetória começa quando sua família alemã de origem judaica é perseguida pelos
nazistas e se refugia na Polônia. Com a invasão, o que parecia ser o começo de
uma vida tranquila, rapidamente se transforma em um grande pesadelo. Perel
consegue fugir levando seu irmão, mas acaba se perdendo dele e busca refúgio
entre os bolcheviques. Depois de viver em um orfanato, acaba sendo capturado
pelos nazistas. Sua única alternativa é se alinhar ao exército de Hitler e,
para isso, tem que esconder sua verdadeira identidade. Disponível em DVD pela
Spectra Nova.
por Daniel Rodrigues