Três mestres do cinema adaptando a obra de um dos grandes mestres da literatura só poderia dar boa coisa. aliás,sendo Edgar Allan Poe o referido gênio das letras, não poderia dar boa coisa uma vez que inevitavelmente a história vai acabar em sangue, morte tragédia ou em qualquer outro aterrador desfecho. Roger Vadim, Louis Malle e Federico Fellini apropriam-se de 3 contos do soturno escritor norte-americano de sua notável coletânea "Histórias Extraordinárias" para compor esta admirável colaboração conjunta.
O francês Roger Vadim, muitas vezes mais lembrado pelas beldades com quem teve o privilégio (e, imagino, sobretudo o prazer) de ter sido casado, dirige a adaptação para "Metzengerstein" e grava sua marca particular à trama substituindo o jovem Frederique, recém elevado à condição de conde pela morte do pai, por uma mulher, aliás uma das referidas esposas, Jane Fonda, conferindo assim um toque muito sensual ao conflito de famílias tradicionais que é o fio condutor do conto de Poe. Atraída pelo primo da casa rival, mas orgulhosa e mimada, além de alimentada pelo ódio entre as famílias, a impulsiva e sórdida, Frederique toma uma atitude nada simpática com a propriedade dos desafetos vizinhos o que trará a ela uma consequência que nunca poderia imaginar.
Luis Malle aproxima-se mais do original de Allan Poe em seu "William Wilson", embora garanta por sua conta uma maior dramaticidade à situação mudando a confissão em carta, original do livro, por uma desesperada num confessionário. O conto estrelado por Alain Delon e que narra o drama de um homem atormentado desde a infância por um outro absolutamente igual a ele que lhe surge sempre como uma espécie de espelho moral de seu caráter desregrado, desonesto e devasso, traz também a sensualíssima Brigitte Bardot substituindo o original adversário de jogo do livro, um homem, na cena do carteado. A narrativa de Malle é ágil, dinâmica e precisa, fazendo crescer o interesse e o suspense da história até chegar ao final que, em suas mãos fica ainda mais dramático do que no livro.
A sinistra menina com a bola branca,
"visão" constante do atormentado Toby Dammit.
Mas o grande momento do filme fica para o final com a adaptação de "Nunca Aposte sua Cabeça com o Diabo", que nas mãos do mestre Federico Fellini ganhou apenas o nome de seu personagem principal, "Toby Dammit". Fellini, mais do que os outros dois diretores, dá um contexto todo diferente para o conto de Poe. Toby Dammit (Terence Stamp) é um astro de cinema decadente e perturbado que vai a Roma participar de uma premiação e lançar seu novo filme, pelo qual pedira nada menos que uma Ferrari para participar, mal sabendo ele que a máquina, um dos grandes símbolos italianos, viria a ser sua ruína e desgraça. Fellini desfila por aquele seu tradicional universo de figurinos extravagantes, personagens exagerados, acontecimentos simultâneos no mesmo ambiente, aproveitando para fazer mesmo em um curta de terror sua crítica ao materialismo, ao mundo do entretenimento, à futilidade e, ainda que apaixonadamente, como já fizera em seu "Roma", à própria Cidade Eterna. O final, considerando o título original do conto, é bastante previsível, embora Fellini garanta uma certa surpresa pela ambientação, cenário e originalidade do desfecho.
Se quem leu as histórias de Edgar Allan Poe já as considera geniais por si só, assistindo a "Histórias Extraordinárias" chega à conclusão que a genialidade pode ser ampliada quando o mesmo material cai nas mãos certas. Três mestres do cinema que não se limitaram a meramente adaptar a obra de um grande escritor, antes disso, o que conceberam foi nada menos que uma recriação.
Uma das missões de minha profissão, a de jornalista, é a de, a partir de
meu filtro capacitado e abalizado, informar as pessoas daquilo que não lhes está
evidente, ajudando-as a se elucidar e formar opinião. Quando se trata de
assuntos envolvendo cultura e arte, não é diferente. Levar-lhes o “não óbvio”,
aquilo que não conhecem, pois o que já conhecem não precisa, certo? Não exatamente.
Há tanta confusão de informação no ar (e nas redes) que o “óbvio”, por
desconhecimento ou falta de critério, mistura-se com o irrelevante ou passa até
a ser relegado. Os melhores filmes franceses de todos os tempos, por exemplo: numa
recente lista, vi apontados títulos queridinhos como “O Fabuloso Destino de
Amélie Poulin” e “Intocáveis” como sendo indispensáveis, enquanto que não
figuraram nada de Jean Vigo ou Michel Carné. Ora, convenhamos! E olha que
não estou nem falando de obras de cineastas menos conhecidos, mas igualmente merecedores,
como Sacha Guitry ou Julien Duvivier – mas aí, seria exigir demais.
O cinema francês é um dos mais ricos e referenciais da cinematografia
mundial, desde os irmãos Lumière até as escolas e movimentos que este promoveu
ao longo do tempo, como o Realismo Poético, o Cinema Vérité e a revolucionária Nouvelle
Vague. Nada contra os bons “Intocáveis” ou “Amélie Poulin” – este último, aliás,
se tivesse que escolher um de Jeunet, preferiria “Delicatessen” ou “Ladrão de
Sonhos”. Porém, basta conhecer um pouco da história do cinema do país de Victor
Hugo para enxergar o rico e numeroso universo de produções relevantes para além
desses sucessos recentes. O pioneirismo, as inovações estilísticas, as contribuições
técnicas e teóricas se deram em vários momentos da história da sétima arte.
Definitivamente, o cinema francês não deve ser reduzido a uma amostra que nem
de longe reproduza seu tamanho e importância.
Por conta disso, elaborei uma lista de 20 títulos realmente essenciais
para se compreender e admirar o cinema francês. Óbvios para mim, mas a quem não
conhece ou se enreda em avaliações mal ajuizadas, talvez não. Afora a
criteriosa tarefa de selecionar os mais relevantes entre tantos títulos ótimos,
elencá-los foi delicioso. Estão aqui mencionados, sem ordem de preferência,
clássicos que determinaram épocas, obras-primas consagradas do cinema mundial e
filmes que cumpriram papéis além do próprio cinema: tornaram-se ícones da arte
e da cultura do século XX, como “Acossado”, “A Regra do Jogo” ou “A Nós a
Liberdade. A ideia foi a de constar um de cada grande realizador, embora alguns
(Truffaut e Resnais, por exemplo) inevitavelmente haja mais tendo em vista a indispensabilidade
das realizações citadas. Também, dentro da lógica de informar a partir de meu
filtro pessoal, se perceberão toques de meu entendimento próprio. De Carné,
optei por incluir “Os Visitantes da Noite” e não o consagrado “O Boulevard do
Crime”; De Buñuel, “O Discreto Charme da Burguesia” a “Bela da Tarde”; De Godard,
“Je Vous Salue, Marie” a algum dos cult-movies
dos anos 60, como “Pierre Le Fou” ou “Alphaville”. Crítica pessoal pura, mas
que em nada prejudica a representatividade da seleção como um todo.
Claro, ficou de fora uma enormidade de coisas, como “Lacombe Lucien”,
de Malle, “Orfeu Negro”, de Camus, “Eu, um Negro”, de Rouch, “A Bele e a Fera”,
de Cocteau, ou “Napoleon”, de Gance. Privilegiou-se os essencialmente
franceses, por isso não aparecem co-produções como “O Último Tango em Paris” ou
“A Comilança”. Também não entraram nada de Maurice Pialat, Eric Rohmer,
Costa-Gavras, Jacques Demy, Jacques Rivette... Paciência. Além da impossível
unanimidade de listas, uma como esta, que represente algo tão relevante e robusto,
incorreria em incompletude. Uma coisa é certa: não perdemos tempo com
irrelevâncias. Ah, isso não. Voilà!
- “Viagem à Lua”, de Georges Méliès (“Le Voyage dans la lune”, 1902)
- “A Nós a Liberdade”, de René Clair (“À Nous la Liberté”, 1931)
- “Zero de Conduta”, de Jean Vigo (“Zéro de conduite”, 1933)
Poster original de
"Zero de Conduta"
- “A Regra do Jogo”, de Jean Renoir (“La Regle Du Jeu”, 1939)
- “Os Visitantes da Noite”, de Michael Carné (“Les Visiteurs du Soir“,
1942)
- “Orfeu”, de Jean Cocteau (“Orphée”, 1950)
A visão de Cocteau para a
saga de Orfeu
- “As Diabólicas” (“Les Diaboliques”), de Henri-Georges Cluzot (1955)
- “Meu Tio”, Jacques Tati (“Mon Oncle”, 1958)
- “Os Incompreendidos”, de François Truffaut (“Les 400 Coups”, 1959)
Cena do revolucionário
"Os Incompreendidos"
- “Os Primos”, de Claude Chabrol (“Les Cousins”, 1959)
- “Hiroshima, Moun Amour”, de Alain Resnais (1959)
- “Acossado”, de Jean-Luc Godard (“À bout de souffle”, 1960)
- “O Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais (“L'Année dernière à
Marienbad”, 1961)
- ‘Jules et Jim”, de François Truffaut (1962)
- “Cleo das 5 às 7”, de Agnès Varda (“Cléo de 5 à 7”, 1962)
- “La Jetée”, de Chris
Marker (1962)
As impressionantes foos de Marker
que compõe a narrativa de "La Jetée"
- “Trinta Anos Esta Noite”, de Louis Malle (“Le feu follet”, 1963)
- “O Discreto Charme da Burguesia”, de Luis Buñuel (“Le charme discret
de la bourgeoisie”, 1972)
- “Je Vous Salue, Marie”, de Jean Luc Godard (1985)
"Je Vous Salue, Marie", a produção
mais recente da lista
junto com Betty Blue
- “Betty Blue”, de
Jean-Jacques Beineix (“37° le Matin”, 1986)
Uma de minhas catequeses em cinema foi a finada sessão
CineClube Banco do Brasil, que, nos anos 90, passava aos sábados à noite na TV
Band (com apresentação luxuosa de Fernanda Torres, inclusive). Dentro os vários
cult-movies e clássicos que tive o
privilégio de assistir ali, de produções asiáticas a mexicanas, os filmes
europeus dos anos 80 protagonizados por crianças durante ou pós-Segunda Guerra
me marcaram fortemente, sendo fundamentais para o meu entendimento da
profundidade da arte cinematográfica hoje. A maturidade histórico-social da
Europa naqueles idos parece ter motivado alguns cineastas a produzissem obras
com características em comum: casamento de realismo e poesia, um sabor lúdico,
narrativas sensíveis, desfechos não necessariamente finitos e, principalmente,
uma abordagem crítica, por vezes sutil, mas contundente, na visão das crianças,
fugindo dos estereótipos fantasiosos de filmes sobre a infância. Registro aqui
alguns desses títulos tão especiais a mim.
Adeus, Meninos (França,
1987)
Do mestre Louis Malle, “Adeus, Meninos” é um conto sobre
amizade, intolerância, valores e descobrimento. Durante a Segunda Guerra, na
França ocupada pelos nazistas, uma escola católica esconde alunos judeus. O
garoto Julien vê com desconfiança a chegada do novo colega Jean, mas logo se
torna seu amigo. O absurdo da guerra lhes põem em conflito entre o ser e o
estar, abrindo um paradigma de reflexão e autoconhecimento.
Multipremiado, “Adeus, Meninos” recebeu Leão de Ouro em
Veneza e sete César, incluindo Melhor Filme, Roteiro e Direção, além de
indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Roteiro Original.
A história, baseada em lembranças de infância de Malle, traz um tom
narrativo simples mas sensível e minucioso, deixando de lado a visão romantizada
da infância típica de obras autobiográficas ao criar uma parábola sobre o fim
da inocência. Com referências claras a "Os Incompreendidos" (Truffaut, 1959) e
“Zero de Conduta” (Vigo, 1933), o filme, também escrito e produzido por Malle,
marca uma “volta às origens” na cinematografia deste cineasta que foi um dos
precursores do cinema moderno francês, uma vez que ele vinha de realizações
norte-americanas tanto ousadas quanto questionáveis. Disponível em DVD pela
Silver Screen.
Minha Vida de
Cachorro (Suécia, 1987)
De um lirismo encantador, estilo próprio do diretor Lasse
Hallström, é considerado um dos filmes mais marcantes da década de 80 e o meu
preferido dentre os títulos que destaco. De sucesso comercial à época e
vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, além de indicações ao
Oscar, este cult foi responsável por
impulsionar a carreira internacional de Hallström, que posteriormente seguiu
carreira nos Estados Unidos, dirigindo o aclamado “Chocolate” (2000).
O filme mostra a pré-adolescência do garoto Ingemar, que
mora num vilarejo sueco no final dos anos 50 com o irmão mais velho e a mãe
tuberculosa, uma mulher perturbada que vive em constante conflito com os
filhos. Um pouco Charlie Brown, ele reflete sobre o porquê das coisas, sem compreender
muito bem para onde sua vida o está conduzindo. Mas vai levando! Sua melhor
amiga, a cadela Sickan, sofre, como ele, de um forçado exílio: é enviada para o
canil ao mesmo tempo em que seu dono vai passar a temporada de verão com os
tios, Lá, o garoto conhece novas pessoas e faz amizades. A solidão existencial
do “cachorrinho” Ingemar, resultante da incerteza de ter um lar e da distância
física e emocional para com sua família (incluindo a cadela), não é motivo, no
entanto, para tristeza. À parte de tudo isso, Ingemar é querido pelos tios e
pelos amigos, e a percepção feliz de criança prevalece, o que dá cores
especiais ao filme.
Sob o enfoque do garoto, que narra a história através de sua
visão pura e imaginativa, o filme transporta o espectador para a realidade
do protagonista, por vezes engraçada, por vezes dura, mas nunca triste.
Sensível, aborda aspectos cotidianos com naturalidade e beleza, como a amizade
com a menina que gosta de se vestir como menino para poder jogar futebol, a
conquista dele para com o tio, resistente de início àquela nova pessoa em sua
casa, ou sua descoberta da sexualidade, ainda cheia de interrogações mas
intuitivamente saborosa. Esta aparente simplicidade do filme, porém, acaba
suscitando aspectos profundos e ricos de significado. Um filme adorável.
Disponível em DVD pela Versátil.
Quando Papai Saiu em
Viagem de Negócios (Iugoslávia, 1985)
Segundo longa-metragem de Emir Kusturica, recebeu a Palma de
Ouro no Festival de Cannes – feito que o diretor repetiria 10 anos depois com
“Underground”, entrando para uma seleta lista de cineastas que levaram duas
vezes a distinção. O filme se passa nos tempestuosos anos pós-Segunda Guerra na
Iugoslávia stalinista, revelando a visão de Miki, um garoto de 6 anos cujo pai,
funcionário do Ministério do Trabalho, é preso pelo sistema político repressor
da época. A família, por verem-no preocupado com o sumiço do pai,
conta-lhe que este viajou a negócios. Acreditando na história, a criança passa
a viver sempre à espera do retorno, mas o tempo vai lhe ensinando outros
desafios.
Como fuga daquela realidade tão terrena, o sonho do menino é
uma viagem ao espaço. Neste sentido, “Quando Papai…”, assim como “Minha Vida de
Cachorro“, aborda de maneira inteligente e bem-humorada o descobrimento de
valores e o questionamento das razões da existência. A dicotomia proximidade/distância
e sentir/estar se repete, inclusive no aspecto da “viagem espacial”, uma vez
que no longa sueco a mente imaginativa do protagonista constantemente
relacionava a cadela Sickan à outra cachorrinha, a Laika, conhecida
mundialmente por ter viajado ao espaço e lá morrido. Nos dois filmes, a
significação simbólica do elemento “espaço” está fortemente relacionada à
construção da identidade dos dois personagens, que buscam conceber sentidos,
como o de usar como defesa para seus medos a irrealidade, e o de tentarem,
dentro de suas limitações e pureza, compreender o mundo que lhes rodeia.
Profundo e belo. Disponível em DVD pela Lume Filmes.
Filhos da Guerra
(Alemanha/França/Polônia, 1990)
Obra-prima da talentosa Agnieszka Holland sobre aspectos
muito profundos da condição humana e da barbárie promovida pela guerra, é
certamente o mais intenso dos filmes aqui destacados. Assim como os filmes de Hallström
e Kusturica, “Filhos da Guerra” também foi o alavancador ao cinema
norte-americano para a diretora polonesa por conta de seu sucesso (recebeu o
Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro), que, em 1993, rodou nos Estados
Unidos o belo “O Jardim Secreto”.
Baseado em fatos verídicos, conta a incrível história de
Solomon Perel, um jovem que sobrevive ao Holocausto escondendo sua identidade
judaica e, paradoxalmente, encontra refúgio junto à Juventude Hitlerista. Sua
trajetória começa quando sua família alemã de origem judaica é perseguida pelos
nazistas e se refugia na Polônia. Com a invasão, o que parecia ser o começo de
uma vida tranquila, rapidamente se transforma em um grande pesadelo. Perel
consegue fugir levando seu irmão, mas acaba se perdendo dele e busca refúgio
entre os bolcheviques. Depois de viver em um orfanato, acaba sendo capturado
pelos nazistas. Sua única alternativa é se alinhar ao exército de Hitler e,
para isso, tem que esconder sua verdadeira identidade. Disponível em DVD pela
Spectra Nova.