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sexta-feira, 7 de outubro de 2022

"Medéia, A Feiticeira do Amor", de Pier Paolo Pasolini (1969) vs. "Medéia", de Lars Von Trier (1988)




Jogaço!!!
A tetracampeã mundial, a Itália, não estará na copa do Mundo de futebol, mas aqui no nosso embate cinefutebolístico encara a Dinamarca que, no Catar, com a bola nos pés vai tentar, mais uma vez, escrever seu nome entre as grandes.
Mas aqui no Clássico é Clássico temos dois grandes times, dois grandes treinadores. Ousados, agressivos, polêmicos. Um com um futebol mais plástico, outro com um jogo mais cru, mas ambos extremamente competentes e destacados entre os grandes em sua atividade. O italiano Pier Paolo Pasolini, vencedor, entre outras premiações, do Urso de Ouro em Berlim, por seu "Contos de Canterbury", em 1972; e Lars Von Trier, também multipremiado, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2000, por "Dançando no Escuro".
Os dois, às suas épocas, adaptaram a peça do grego Eurípides, "Medéia", na qual a protagonista, depois de levada de seu reino e desposada por Jasão, algum tempo depois, é preterida pelo marido em favor da filha do rei de Corinto. Abandonada, humilhada, Medeia dotada de faculdades místicas, antes de ser banida pelo Rei Creonte, usa de seus feitiços para se vingar do esposo, matando sua nova noiva e até os próprios filhos que tivera com Jasão.
Pasolini parte de um pouco antes e conta a história desde a tomada do Velocino de Ouro, artefato supostamente mágico, reivindicado pelo rei de Lolcos como condição para restituir a Jasão o trono que lhe seria de direito. Já Trier começa pelo momento do exílio de Medéia, quando seu amado cai de encantos por Creusa, a princesa de Corinto.


"Medéia" (1969) - trailer

O trailer original era demasiadamente recortado, alegórico e desconexo, 
deste modo, optei por um trailer alemão que,
mesmo em uma língua mais estranha para nós brasileiros, dá uma ideia melhor de
alguns elementos do filme, como os cenários, figurinos, fotografia, além de alguma noção das atuações.


"Medéia" (1988) - cenas

Não consegui um trailer completo de "Médeia", de Lars Von Trier, provavelmente por ter sido um projeto originalmente feito para TV.
No entanto essa compilação de cenas dá uma ideia das escolhas cinematográficas e da estética proposta pelo diretor.


A vingança no filme de Pasolini se dá pelos trajes enviados por Medéia à princesa, sob pretexto de presentes de casamento, mas que, vestidos pela jovem noiva, entram em combustão e obrigam Creusa, em desespero a se jogar do alto do castelo, seguida pelo pai Creonte. Já na do diretor dinamarquês, igualmente fingindo de conformada com a situação do ex-marido, Medéia envia para a rival uma espécie de tiara, uma guirlanda, à qual, usando de suas artes mágicas, envenenara as partes agudas às quais espetando o dedo da nova noiva de Jasão, a leva à morte, bem como ao pai, que em desespero pela morte da filha, crava uma ponta da tiara em si propositalmente.
O interessante é que na peça de Eurípedes constam os dois itens, as vestes e a coroa, mas, curiosamente, cada um decidiu usar de um dos artifícios. E ambos o fizeram de maneira brilhante. A cena da jovem em chamas pelo jardim do castelo é espetacular! Bem como a tensão quase silenciosa do preparo da substância, a aplicação no denteado da peça, o arranhão no cavalo, a entrega do presente à amada de Jasão, a corrida desenfreada do cavalo concomitante ao espetar no dedo... Tudo incrível!!!
A seguir, outra diferença (aqui tem spoiler, caso alguém não conheça a história): no filme italiano, depois de usar os filhos para levar os "presentes" à inimiga, assim que eles retornam para casa, Medéia, calmamente os atende, lhes dá banho carinhosamente e mata a ambos com um punhal, ateando fogo à casa logo em seguida. Lars Von Trier ousa mais: depois do retorno dos meninos do castelo real, onde entregaram o regalo envenenado, ela foge com os filhos para um lugar bem afastado do reino e, numa sequência ao mesmo tempo chocante e belíssima esteticamente, enforca os dois filhos em uma árvore. 
No primeiro filme Jasão, sem poder alcançá-la, por conta das chamas (e na lenda, pelo fato da feiticeira estar elevada e protegida por Helios, o deus sol), clama para que Medéia, ao menos lhe entregue os corpos dos filhos para que os sepulte; na refilmagem, depois de encontrar os filhos pendurados na árvore, Jasão, sob efeito de uma de suas feitiçarias, corre em círculos infinitamente procurando Medéia enquanto ela foge numa nau para Atenas.  
Duas obras de arte!
Pasolini tem cenários impressionantes, locações exóticas da Capadócia, enquanto Trier traz ambientes opressivos e sombrios; a fotografia de Pasolini é arenosa, acre, árida, ao passo que a de Trier é nebulosa, cinzenta; os figurinos do italiano são extravagantes, pesados, trajes típicos das regiões da antiga Pérsia; os do dinamarquês são discretos, minimalistas, sóbrios. Se a Medéia de Pasolini é, ninguém menos que Maria Callas, o Jasão de Trier é o lendário Udo Kier. Ninguém leva vantagem!
Um dos maiores jogos do nosso certame cinefutebolístico.




Aqui, algumas imagens comparativas:
(sempre o filme de 1969 à esquerda, e o de 1988 à direita)
Na primeira imagem, a fotografia árida e as belas locações da Turquia, do primeiro filme,
e a atmosfera soturna do remake.
Na segunda linha, o interior de um castelo e os figurinos exóticos,
comparados à fotografia diáfana e indefinida do outro.
No centro, Medéia, em ambos os casos em uma cena externa:
a profundidade e a perspectiva do segundo filme são impressionantes.
Depois, os intérpretes de Jasão: o primeiro Giuseppe Gentile, ex-atleta,
mais belo, como Pasolini gostava, é claro,
mas do outro lado Udo Kier dava um show de talento.
E por último, as duas protagonistas:
A competente Kirsten Olesen, discreta, correta, dá conta do recado
mas Maria Callas, além de lindíssima, encarna a personagem de forma muito intensa e convincente
Craque de bola!



"Medéia", de Pier Paolo Pasolini é um clássico, mas o mesmo vale para a "Medéia", de Lars Von Trier. 
Dessa vez, sim, pode-se dizer que clássico é clássico e vice-versa.




por Cly Reis