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quinta-feira, 15 de março de 2018

"Lou", de Cordula Kablitz-Post (2016)


São vários os filmes sobre mulheres de atuação política importante para a história da sociedade moderna. Rosa Luxemburgo, Frida Kahlo, Maud Watts, Norma Rea, Violeta Parra, Alice Paul e as brasileiras Pagu e Zuzu Angel já foram retratadas nas telas. Entretanto, se comparado às cinebiografias sobre figuras masculinas, ainda há uma grande lacuna. Mary Wollstonecraft, Ada Byron, Alexandra Kollontai e Maria Firmina dos Reis, por exemplo, nunca receberam esse reconhecimento. Entre estas, faltava, igualmente, uma obra que abordasse a vida de outra dessas figuras libertárias para a questão feminina: a escritora, filósofa e psicanalista Lou Andreas-Salomé (1861-1937). Feito muito bem realizado pela cineasta alemã Cordula Kablitz-Post no longa “Lou”. Equilibrando os aspectos emocionais e biográficos da personagem com momentos históricos dos quais ela foi criadora e criatura, o filme traz à luz uma história fundamental de ser conhecida, principalmente em dias de empoderamento e nova consciência da mulher como os atuais.

No fim do século XIX, Salomé vive de forma livre e contestadora. Suas ideias e atitudes seduzem as mentes mais brilhantes da sua época, como os filósofos Paul Rée e Friedrich Nietzsche, o psicanalista Sigmund Freud e o poeta Rainer Maria Rilke, além do jovem filólogo Ernst Pfeiffer. Pfeiffer a ajuda a escrever as suas memórias aos 72 anos, quando Salomé passa a relembrar sua juventude em meio à comunidade alemã de São Petersburgo, os anos em Zurique, Roma e Berlim e, claro, as ricas e invariavelmente conturbadas convivências com os intelectuais da época.

Interpretada muito bem pelas atrizes Nicole Heesters, que a faz mais velha, e Katharina Lorenz, quando jovem (e também por Liv Lisa Fries, na fase adolescente, embora com menos aparição), Salomé é daquelas pessoas que, para se tornar o ícone que hoje é, precisaram sustentar uma sobrecarga sobre as costas. Sua renúncia ao casamento formal e a recusa à maternidade – levada ao extremo do aborto intencional –, traçam um preocupante paralelo com a realidade de muitas mulheres ainda hoje, quase 100 anos depois do seu nascimento.

Nicole Heesters muito bem como Salomé na fase final de vida
O que movia Salomé como mulher era uma busca por aquilo que ela acreditava, não pelo que a sociedade estabelecia. Internamente, no entanto, as motivações disso eram mais intrincadas. Como bem levantou o psiquiatra Luiz Carlos Mabilde em uma sessão comentada do filme ocorrida no GNC Cinemas do Praia de Belas Shopping, em Porto Alegre, dentro do projeto “Cinepsiquiatria” (promovido pelo Centro de Estudos Cyro Martins, Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação Psiquiátrica da América Latina), a base do conflito pessoal de Salomé estava na figura da mãe. Autoritária e repressiva e, por isso, masculinizada em termos de padrão de comportamento, a imagem da mãe contrastava com a do pai, a quem tivera somente até a puberdade, mas que lhe era afetuoso e protetor, algo “feminino” num contexto tradicional. Isso se refletiu em todos os relacionamentos amorosos dela: quanto mais a encurralavam com sentimentos de paixão viril, como fizeram Nietzsche, Rée e Hendrik Gillot, mais ela recuava. Mesmo Rilke, com quem, depois de anos de autocastração, se entregara em momentos de ardor, foi recusado no momento em que transferira para ela toda a responsabilidade pela existência dele mesmo. Na cena em que, em meio à simbólica vegetação, um descontrolado e atormentado Rilke roga pela mão de Salomé, que lhe responde: “Mas você já tem a mim". 

Realmente, o que chama atenção na personalidade de Salomé são suas convicções. Aquilo que sentia e buscava, mesmo de modo tão espontâneo e explosivo, é o fato de parecer não haver conflito interno entre pensar e agir. A despeito do excessivo racionalismo, seus embates pareciam ser de natureza íntima, mas, sim, exclusivamente com o que a oprimia externamente, o que não a deixava ser o que queria ser: a família tradicional, a Igreja, a autocracia, o sexismo, os preconceitos. A sociedade é que não estava preparada para ela, e não o contrário.

A histórica e polêmica foto de Salomé açoitando Nietzsche e Rée
reproduzida no filme e a original, de 1882
Em sua narrativa bem amarrada e delineada, a diretora, também co-roteirista, consegue estabelecer aquilo que se encontra nas boas cinebiografias: equilibrar uma evidência documental ao sabor da admiração à reluzente personagem que foi Salomé. E com toda a razão, visto que é impossível estabelecer apenas um distanciamento racional uma vez que na própria escolha do objeto biografado já está sinalizada essa admiração – sem que isso, contudo, exclua as impressões críticas sobre o mesmo. O filme tem cenas muito bem montadas, como o momento da célebre foto, que escandalizou a sociedade europeia à época, com Nietzsche e Rée amarrados como animais e ela com um chicote pronta para fustigá-los tal cavalos de tração. Igualmente, a incomum sessão de psicanálise com Freud, assim como as criativas fusões sobre fotos históricas somente com Salomé em movimento. Além disso, Cordula conduz as atuações dos atores com muita competência e sensibilidade, unindo substrato documental com a detecção de elementos emocionais peculiares do que cada personagem quer "dizer".

Não é por coincidência que a maioria dos filmes destas personagens históricas tão essenciais para a emancipação da mulher na sociedade sejam dirigidos, justamente, por mulheres. A própria Salomé já tinha sido tema do filme "Para além de bem e mal", de 1977, também dirigido por uma mulher, a italiana Liliana Cavani, que centrava-se na relação com Nietzsche e Rée. Se elas ainda não são a maioria por trás das telas ou não lhes seja dado o mesmo valor que os homens – basta ver qualquer premiação cinematográfica no mundo, que os mais premiados ainda continuam sendo homens –, ao menos têm cabido às cineastas o fundamental papel de valer-se da arte cinematográfica para desaguar essas histórias. Com as armas que dispõem, a ideologia, essas mulheres do presente são as que hoje dão continuidade à trilha aberta por pioneiras do passado como foi Lou Andreas-Salomé.

Assista ao trailer de "Lou"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 29 de março de 2017

"T2: Trainspotting", de Danny Boyle (2017)



T2: Trainspotting e o Eterno Retorno
por Eduardo Dorneles

"Você está aqui por nostalgia", diz Sick Boy (Jonny Lee Miller) a Renton (Ewan McGregor) em certa altura de “T2: Trainspotting”. A fala condiz com os temas que o filme aborda e a metalinguagem que se estabelece. Afinal, todos no cinema - inclusive eu - aguardavam ansiosamente essa continuação que levou vinte anos para ser lançada.

“Trainspotting” chegou aos cinemas em 1996 trazendo um retrato da juventude viciada em Edimburgo, capital da Escócia. A história dos já citados Renton e Sick Boy, aliada a de Spud (Ewen Bremner) e Begbie (Robert Carlyle), transcendeu esse escopo e se tornou um dos manifestos cinematográficos dos anos 1990 - ao lado de "Clube da Luta".

As problematizações a respeito da forma como jovens adultos precisam lidar com os processos de amadurecimento era o cerne de sustentação de toda a trama do primeiro filme. Por isso a subversão do lema "Choose life" - ou "escolha a vida" -, uma campanha contra as drogas muito popular nos fim dos anos 1980 e início dos anos 90, em uma sequência marcada pela escolha em não escolher. Méritos do diretor Danny Boyle e do roteirista John Hodge, que conseguiram adaptar magistralmente o texto de Irvine Welsh.

“T2”, que recém chegou aos cinemas brasileiros, deixa de lado o conceito do "escolha não escolher", um típico dilema juvenil, para abraçar uma questão mais madura. Talvez não no sentido intelectual, mas sim no aspecto cronológico, mesmo. Afinal, atormenta gente mais experiente: o que eu fiz da minha vida?, é só isso?
Sick Boy, Renton e Spud mais de 20 anos depois

A história dos quatros personagens inicia a partir deste ponto: quarentões frustrados precisam encarar o fato que a vida não se tornou aquilo que eles esperavam. O encontro do grupo é uma tentativa de buscar sentido em uma existência vazia. Tudo se repetiu. As experiências se esvaíram - inclusive as lisérgicas. Restou a memória de quando tudo era novo, as possibilidades eram muitas e as oportunidades inesgotáveis.

A busca desenfreada por algo que possa trazer esperança é o que faz a história andar. É um contínuo Eterno Retorno, a la Nietzsche, onde tudo parece se repetir em círculos constantes e intermináveis. Boyle sabe disso e brinca com os elementos narrativos que estão a sua disposição, é claro. O humor cínico e ácido está lá. Porém, tudo é a nostalgia que move. Tanto dos personagens quanto do espectador que também está afetivamente ligado àquela história desde o filme original.

Talvez este seja o grande trunfo de “T2”. Apesar da excelência cinematográfica que a obra apresenta, apenas o tempo poderá demonstrar se ela se tornará tão grande quanto seu antecessor. Entretanto, é inegável apontar o exercício de metalinguagem existente.

Os personagens envelheceram. O expectador também. Os personagens buscam no passado e nas certezas da memória algum sentido na fluidez do presente e nas incertezas do futuro. O expectador também.
McGregor como Renton enfrentando as consequências
do eterno retorno

Afinal, você também não ri e se emociona das aventuras vividas no passado enquanto bebe e come ao lado de amigos ao invés de estar desfrutando e criando novas lembranças com eles?  Você também não sente suas certezas se abalarem com o tempo que passa e a consciência de sua pequenez diante da realidade que se impõe? Seus olhos não se enchem de lágrimas quando você percebe que não é a pessoa que aquele adolescente sonhou se tornar? Você não fica triste quando todas suas experiências parecem apenas simulacros vazios de grandes momentos que ficaram no passado?

O passado é um porto seguro, uma boia de salvação, um farol de emergência diante do drama de suportar o misterioso destino que nos aguarda. Olhar para os "anos dourados" da existência é mais fácil e mais prazeroso do que encarar o Eterno Retorno que nos atormentará até o fim.

Renton, Sick Boy, Spud e Begbie, à sua maneira, sabem disso. De uma forma ou de outra, enquanto abraçam este fato, convidam o expectador a fazer o mesmo: aceitar a nostalgia como alívio ao niilismo perturbador.

Escolha.

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trailer de “T2: Trainspotting”