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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

cotidianas #790 - "Carnavalescos"

 


São uma gente à parte - quase uma raça distinta das outras. Os que amam o Carnaval, como amam todas as outras festas, não são dignos do nome de carnavalescos. O carnavalesco é um homem que nasceu para o Carnaval, que vive para o Carnaval, que conta os anos de vida pelos Carnavais que tem atravessado, e que, na hora da morte, só tem uma tristeza: a de sair da vida sem gozar os Carnavais incontáveis que ainda se hão de suceder no Rio de Janeiro pelos séculos sem fim.
Que se hão de suceder - escrevi eu. Porque o verdadeiro, o legítimo, o autêntico, o único tipo de carnavalesco real é o carnavalesco do Rio de Janeiro. A espécie é nossa, unicamente nossa, essencialmente e exclusivamente carioca: só o Rio de Janeiro, com seus Carnavais maravilhosos, delirantes e inconfundíveis, possui o verdadeiro carnavalesco.
E não suponham que haja por aí muitos verdadeiros carnavalescos... Quase todos os foliões do Carnaval folgam por acidente, ou por imitação, ou por desfastio, ou por entusiasmo passageiro: folgam dois anos, ou cinco anos, ou dez anos - e cansam, e recolhem-se à vida séria. Mas o carnavalesco não tem cansaço nem aposentadoria: envelhece carnavalesco, e morre carnavalesco: morre no seu posto, extenuado pelo Carnaval, entisicado pelo Carnaval, devorado pelo Carnaval. O Carnaval é para ele ao mesmo tempo uma paixão absorvente e arruinadora, um vício indomável, uma religião fanática. Para ele, o Carnaval é o único oásis fresco e perfumado, que se antolha no adulto deserto da vida!
Esse é o verdadeiro carnavalesco. Trabalha todo o ano, pena e sua 12 meses a fio, privando-se de tudo, alimentando-se mal, vestindo-se mal, acumulando, somiticamente, ansiosamente, alucinadamente, vintém a vintém, os contos de réis que há de gastar no Carnaval. são 12 meses de sacrifício, de renúncia, de desprendimento: o carnavalesco pensa no Carnaval. Não era maior que a sua a constância de Jacó, pastor apaixonado, servindo o velho Labão, pai da formosa Raquel... O carnavalesco para conquistar o Carnaval, pena toda a vida.

"Dizendo: mais penara, senão fora
Para tão grande amor tão curta a vida!..."

Acontece, às vezes, que o carnavalesco já não é um rapazola, sem família a sem deveres sociais: - é um homem maduro, negociante matriculado, tendo próprio casal e nele assistindo, tendo mulher e filhos, tendo apólices e comenda. Pouco importa! É um carnavalesco... Na vida desse homem, de vida regrada e equilibrada, o Carnaval é um hiato, é uma síncope, é a anulação completa de sua consciência de homem e chefe de família, é a suspensão absoluta de toda a sua gravidade de negociante e de comendador.
A família conhece e perdoa a sua paixão: e, no sábado de Carnaval, ei-lo que se despede dos seus e parte para o delírio, com os olhos acesos em febre e o coração rufando um zé-pereira precipitado (...) Parte, e a família não o vê durante os três dias fatais: e, na Quarta-feira de Cinzas, o carnavalesco volta ao seu lar e seus negócios, moído, pisado, contundido - e muitas vezes com a cara quebrada -, mas sem remorso, sem arrependimento, com o orgulho que dá a consciência da missão bem cumprida...

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trecho da crônica "Carnavalescos"
de Olavo Bilac (1901)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

"Aquarelas do Brasil ", vários autores, organização de Flávio Moreira da Costa - ed. Nova Fronteira (2018)




"São uma gente à parte - 
quase uma raça distinta das outras. 
Os que amam o Carnaval, como amam todas as outras festas, não são  dignos do nome de carnavalescos. 
O carnavalesco é um homem que nasceu para o Carnaval, que vive para o Carnaval, que conta os anos de vida pelos Carnavais que tem atravessado, e que, na hora da morte, só tem uma tristeza: 
a de sair da vida sem gozar os Carnavais incontáveis que ainda se hão de suceder no Rio de Janeiro pelos séculos sem fim.
(...) Porque o verdadeiro, o legítimo, o autêntico, 
o único tipo de carnavalesco real
 é o carnavalesco do Rio de Janeiro."
Olavo Bilac,
na crônica "Carnavalescos"



"Aquarelas do Brasil" não é exatamente um livro sobre Carnaval, mas os contos sobre a festa mais popular do Brasil, se destacam, em alguns casos até mesmo nos demais capítulos não dedicados aos festejos de Momo. A antologia, organizada pelo pesquisador e também escritor Flávio Moreira da Costa, se propõe a reunir contos de autores brasileiros que, de alguma forma, colocam música na literatura. Assim, o organizador, numa escolha muito criteriosa e feliz, compila episódios musicais narrados por grandes nomes das letras, abordando temas, estilos e festas diferentes, transitando entre o dramático, o trágico e o cômico, em doses certas e oportunas. Há histórias de compositores frustrados, de cantores conquistadores, coristas de baile, músicos sonhadores, passeando entre polcas, jazz, música clássica, bossa nova e, é claro, o samba. O capítulo de Carnaval é, não só o mais numeroso em contos, como também o que apresenta as histórias mais excitantes, como a do funcionário público que passara mal e viria a falecer preocupado com as filhas que não voltaram dos blocos já na quarta-feira de cinzas ("O Bloco das Mimosas Borboletas"); a de um expert na já extinta "guerra" de bexigas com águas-de-cheiros, no conto "O Último Entrudo", de Raul Pompeia; a do crime passional de um compositor ciumento em "A Morte da Porta-Estandarte, de Aníbal Machado; e a sinistra história de uma foliã que se revelaria não tão atraente quanto parecia com a fantasia, em "O Bebê da Tarlatana Rosa", de João do Rio.
Dos capítulos não dedicados especificamente ao Carnaval, alguns contos inevitavelmente se aproximam do tema, seja pelo destaque para determinado instrumento musical, pela menção ao samba, ou mesmo por conta do próprio apelo quase incontrolável que a festa exerce sobre os indivíduos. É o caso de "Quem Cai Na Dança Não Se "Alembra" de Mais Nada", causo popular em que um batalhão do exército cai na folia e os superiores se veem incapazes de punir os soldados pois também se entregam ao folguedo; sobre instrumentos, "O Machete", de Machado de Assis trata sobre um tocador de cavaquinho que rouba a esposa de um violoncelista clássico; e o comovente "O Samba", de Magalhães de Azeredo, de 1900, é uma das primeiras vezes que o termo que dá nome ao conto é referido na literatura brasileira.
Mas, como eu disse, "Aquarelas do Brasil", não é um livro de Carnaval. Tampouco é um livro de samba, ou de polcas, de bolsas ou qualquer outro ritmo ou festa. "Aquarelas..." é  uma celebração à música, à musicalidade do brasileiro, à sua riqueza criativa e à  ligação que tudo isso tem com o nosso cotidiano e com o jeito de viver desse povo. Mas, é claro, tudo isso, a musicalidade, a arte, a tradução do cotidiano, a manifestação popular, acaba, naturalmente, se traduzindo na maior manifestação popular brasileira e, no fim das contas, a brilhante antologia de Flávio Moreira da Costa, acaba sendo, sim, se não um livro sobre Carnaval, uma das boas publicações que temos sobre o tema.


por Cly Reis