Meu receio de não conseguir ver no pouco tempo que tinha as sete
exposições da Bienal do Mercosul foi relativamente afastado. Afinal, dos seis
espaços expositivos, apenas dois deles não visitei. Certo: tratavam-se de dois
importantes: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS),
principal museu de artes de Porto Alegre, e o Instituto Ling, o qual ainda não
visitei desde que abrira, em 2014, mas que, tanto pelo tema-recorte, “Síntese”,
quanto por sua modernidade arquitetônica e sabida pujança, certamente abrigara
uma fatia qualitativamente interessante da Bienal. Esta, do Santander, a qual
visitei acompanhado de Leocádia, foi a mais bem montada e fiel à proposta, a
“Antropofagia Neobarroca”.
A engenhoca Wesley Duke Lee “O Helicóptero” (1968), composta por
diversas técnicas (pintura, colagem, fotografia, fundição) sobre um caracol
metálico e (embora estático na exposição) giratório abre o salão do Santander
com uma das mais belas e criativas (e instigantes!) peças da Bienal. Mas
haveria mais coisas interessantes ali, sim. Caso de outra instalação
“Anaconda”, do venezuelano Carlos Zerpa, montada com centenas de discos de
vinil presos a si por arames e cadeados formando uma impactante cobra negra,
limite entre a modernidade tecnológica e a ancestralidade de raiz, traduzidos
no tema central daquela exposição. Evocando a antropofagia de Oswald de Andrade e o neobarroco, ideia forjada por artistas latino-americanos a partir dos anos
70 como instrumento de resistência e de autodefinição pós-colonial, “Antropofagia
Neobarroca” buscou da luz à tentativa de emancipação cultural principalmente
nos elementos indígenas, capazes de confrontar simbolicamente os sistemas
europeus de colonização cultural.
Óleo sobre tela impressionante
em dimensões e impacto.
De forma bastante direta e denunciadora, o tema aparece em peças como
os quadros dos mexicanos Daniel Lezama (2004) e José Maria Jara (1889), dois
impactantes óleo sobre tela, o não menos assombroso “A Rébis Mestiça Coroa a
Escadaria dos Mártires Indigentes” (2013), do maranhense Thiago Martins de
Melo, visto que gigantesco (3,60 metros por quase 4 de altura), onde podem se
ver diversas referências à desumanidade e violência das colonizações. Sangue,
muito sangue. Ligia Clark, a quem tudo exposto na Bienal surpreende, haja vista
sua capacidade criativa imensa e sempre pungente, apresenta ali o tropicalista
“Cabeça Coletiva”, de 1975, de materiais mistos. A figura indígena e meio
andrógena do bronze polido “Inca”, do espanhol-brasileiro Fernando Corona, é
outra das belezas vistas. A carioca Beatriz Milhazes, de quem havíamos visto
uma extensa exposição individual no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 2014,
traz uma interessante acrílica sobre tela. Caso de outra carioca badalada das
artes visuais da atualidade, Adriana Varejão, com o duo “Espiral em Flor” e
“Voluta e Cercadura”.
Acrílica de Röhnelt.
Do admirável paulista Luiz Zerbini, sempre com uma visão diferenciada
entre o pop e o surreal, havia a “Medusa”, que dá a uma acrílica sobre tela um ar de
técnica mais moderna visto o brilho vivo das cores e a textura das formas
obtida. Valem, igualmente, outra das “obras postais” do pernambucano Paulo
Bruscky (da mesma série encontrada no Memorial do Rio Grande do Sul e
Gasômetro), “Xerophagia Atropophago Affectar – Cartas para Oswald de Andrade”,
de 1981; a instigante fotografia do porto-alegrenese Dirnei Prates da série “Júpiter,
Netuno e Plutão” (jato de tinta em papel algodão, 2014), o paulistano Dudi Maia
Rosa (“Sem título”, resina poliéster pigmentada e fibra de vidro, 2014); e as
“Arquiteturas XI e XV”, do pelotense Mário Röhnelt, artista referencial nas
artes gaúchas, de quem também havia duas já vistas por nós na exposição
individual dele, em 2014, no MARGS, ambas em acrílica sobre tela (e com muita cara
de negativo de foto) de 1995.
Havia imagens sacras tanto de artesões/artistas conhecidos quanto
anônimos que também chamaram atenção, mas para quem já visitou os museus de Ouro Preto e Salvador ou presenciou a exposição de arte sacra (“Crux, Crucis,
Crucifixus”, CCBB, 2013), melhor destacar outras coisas. Com esta exposição do
Santander, juntamente às que presenciei acompanhado ou não nos outros espaços
destinados à Bienal do Mercosul, com certeza deu para se ter uma ideia da
mostra em suas virtudes e falhas, tais como as que já me referi anteriormente.
Entretanto, de modo a ressaltar as qualidades e não tornar a apontar os erros,
esta aqui, a última que vi e no derradeiro dia de Bienal, foi provavelmente a
mais bem montada em termos de variedade de obras e síntese (quem sabe, a do
Ling tivesse isso ainda mais, ou essa lhe fosse de certa forma mais uma
repetição da curadoria?).
Até arte de colagem, tal qual eu e meu irmão fazíamos por prazer, nos deparamos. Veja só: nossas colagens que iam para nossas paredes e cadernos escolares nos salões de arte...
"O Helicóptero" de Wesley Duke Lee abrindo o salão.
A impressionante cobra de discos de vinil.
O inferno existe e colonizou a América Latina.
Lígia Clark, sempre criativa.
"Inca" de Fernando Corona.
A carioca Beatriz Milhazes.
Um dos quadros de Adriana Varejão.
A "Medusa" de Zerbini.
Arte postal de Brusky em homenagem a Oswald de Andrade.