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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

"Clube da Esquina: Milton Nascimento e Lô Borges", de Paulo Thiago de Mello - coleção "O Livro do Disco" - ed. Cobogó (2018)




"O disco não era tropicalismo ou bossa nova, 
tampouco era canção de protesto, rock, MPB, 
clássica ou pop, como o Secos & Molhados, 
mas englobava a seu modo tudo isso 
de uma forma que soava 
simultaneamente "natural" e moderna. 
A sofisticação da música era perceptível até mesmo 
para uma audiência não especializada."
Paulo Thiago de Mello




Sempre gosto de comentar aqui sobre as publicações da série O Livro do Disco, exatamente por unir dois dos itens mais adorados por nós do blog: música e literatura. A coleção faz o serviço de dar o devido valor e esmiuçar origens, inspirações, trabalho técnico, contextualizações de obras que deixaram sua marca não só na música como mais também na sociedade e no comportamento a partir de sua existência.
Dessa vez tive o prazer de me deliciar com o trabalho do jornalista e pesquisador Paulo Thiago de Mello sobre o clássico álbum "Clube da Esquina", oficialmente de Milton Nascimento e Lô Borges, mas que envolveu muito mais gente talentosa e significativa em sua concepção e acabamento, os verdadeiros integrantes do clube. O livro, além de recuperar essa origem mineira do ponto de encontro dos integrantes para papos intelectuais, no cruzamento das rua Divinópolis com a rua Paraisópolis, examina as influências e formações musicais do time de músicos, de música clássica a Beatles, de jazz a samba, de música latina a rock progressivo; situa a importância e o impacto do disco em meio à ditadura militar, estabelece relações dele com outros álbuns importantes naquele prolífico 1972, de "Transa", "Ben", "Acabou Chorare", e especialmente com a Tropicália que, meio que estabelecia, à época, uma pequena rivalidade com a turma de Minas.
Ainda que considere todas essas facetas, todos esses envolvimentos paralelos, o autor, apaixonado desde sempre pela obra, aborda, como não poderia deixar de ser, a parte musical, especificamente, e dedica um capítulo inteiro especialmente para se debruçar sobre cada uma das 18 canções do disco que, por sinal, era singular até mesmo em seu formato, sendo um dos raros álbuns duplos em sua época.
Uma curiosidade que Paulo Thiago conta é que, embora carregassem o nome da "esquina" de Belo Horizonte e por ela fossem conhecidos, efetivamente, apenas os irmãos Márcio e Lô Borges, e Beto Guedes eram realmente frequentadores assíduos dos barzinhos do local. Milton já vivia no Rio e depois de problemas com os vizinhos em noitadas musicais com os parceiros Fernando Brant e Ronaldo Bastos, num apartamento no bairro do Jardim Botânico, acharam por bem alugar uma casa na praia de Piratininga, em Niterói, que acabou sendo a verdadeira base do clube e o lugar onde houve o maior avanço e desenvolvimento das canções e da ideia geral do disco. Um clube da praia, um clube da cidade, um clube de Minas, um clube do Rio, um clube do boteco, um do apartamento, enfim, de certa forma essa itinerância definia melhor do que qualquer coisa a universalidade do que aquela turma estava fazendo. O clube não era de nenhum lugar e era de todos. Era como aquela música: não era música de Minas, o que aqueles caras faziam era música do mundo. O próprio verso de Brant e Márcio Borges, em "Para Lennon e McCartney", de seu disco anterior quase premonitoriamente já definia o espírito daquele projeto artístico-musical ímpar: "Sou de Minas, sou do mundo".



Cly Reis

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

"Meu Pai", de Florian Zeller (2020)

 

MELHOR ATOR
MELHOR ROTEIRO ADAPTADO


Fui assistir a "Meu Pai", filme do escritor e diretor francês Florian Zeller, com a expectativa de ver nada muito além de um drama familiar com boas atuações. Recebi muito mais do que isso! "Meu Pai" é envolvente, tem um roteiro brilhante, instigante, fascinante. Zeller coloca o espectador dentro da cabeça, do universo confuso, embaçado, embaralhado de Anthony, um idoso que sofre de um processo gradativo de deterioração de memória, possivelmente um Alzheimer, embora não mencionado diretamente no filme, e ocasiona uma série de dificuldades à filha, que mesmo extremamente carinhosa, atenciosa, pacienciosa, começa a ver-se impotente diante das limitações do pai. O filme, com um roteiro inteligente e uma montagem brilhante, cria uma espécie de labirinto que embaralha situações, impressões, objetos, numa proposital desordem de espaço e tempo, que faz com que o espectador tenha um pouco da sensação do que acontece dentro da mente de uma pessoa naquelas condições. Informações são dadas e são negadas, objetos parecem estar em determinado lugar mas logo não estão mais, pessoas aparecem mas não temos certezas que existem, lembranças são recuperadas mas não sabemos se os fatos aconteceram... Como era de se esperar, dadas as indicações ao Oscar da dupla de protagonistas, as atuações são memoráveis! Olivia Colman, já oscarizada por "A Favorita", tem uma atuação perfeita mesmo sem arroubos ou exageros. Ela ganha o filme num olhar, emociona numa expressão facial, na maneira como coloca uma frase. Anthony Hopkins, por sua vez, vivendo o personagem de seu mesmo nome, Anthony, está absolutamente brilhante (mais uma vez na carreira). Suas mudanças de expressão, muitas vezes na mesma cena, oscilando entre o afeto, a fragilidade, a irritação e a confusão, são simplesmente incríveis! A cena final em que ele parece, por um momento, finalmente, dentro de toda sua demência, perceber sua vulnerabilidade e de certa forma, volta a ser um menininho chamando pela mãe, é de encher os olhos de lágrimas e aplaudir de pé. "Meu Pai" é muito mais que um filme de atuações mas só as atuações já o justificariam. Mas ainda bem que, além delas, temos mais do que isso. 

Dupla espetacular em cena.



Cly Reis

sábado, 18 de dezembro de 2021

cotidianas #738 - A Alegria


O sofrimento não tem

nenhum valor
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos

espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.

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"A Alegria"
Ferreira Gullar