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quinta-feira, 15 de maio de 2025

Argemiro Patrocínio - "Argemiro Patrocínio" (2002)

 

“Eu só faço samba sobre coisas que me inspiram.”
Argemiro Patrocínio

Existem talentos especiais que passam pela Terra quase despercebidos. Embora esse descuido possa ocorrer em qualquer canto do planeta, não é difícil de se supor que os vícios de alguns lugares favoreçam a que preciosidades sejam obscurecidas – às vezes, por uma vida inteira. O Brasil, país jovem e com sérias dificuldades históricas de autoidentificação, é prodígio quando o assunto é apagar seus próprios iluminados, quanto mais, os da cultura popular. Com o samba, que sofreu por décadas perseguição, proibição e preconceito, a demora no reconhecimento de atores fundamentais para a construção do gênero musical mais original e identitário brasileiro promoveu um atraso quase irrecuperável. Dona Yvone Lara, Adoniran Barbosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus e Nelson Sargento, por exemplo, só lançaram seus discos de estreia na terceira idade. A vida humilde, a discriminação e a ralação do dia a dia sempre lhes foi uma realidade inescapável.

Se com esses grandes nomes quase não deu tempo de aproveitá-los, imagine-se com os sambistas de comunidade, menos midiáticos. É o caso de Argemiro Patrocínio, também conhecido por Argemiro do Pandeiro, Argemiro da Portela ou, simplesmente, Seu Argemiro, como era chamado em Madureira e Oswaldo Cruz, chão dos portelenses. De uma geração à frente de Monarco ou Candeia, dois referenciais bambas da Escola, Argemiro foi um compositor de mão cheia, mas que nunca teve espaço suficiente para desaguar suas autorias fora da quadra da escola. Os mais atentos podem lembrar dele na capa do disco de estreia de D. Yvone, “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz”, de 1978, atrás dela, à direita e junto com outros companheiros de samba, em que aparece meio de soslaio quase escondido pelo inseparável chapéu. Ou na cena dos partideiros no pátio da casa de Candeia no filme “Partido Alto”, de Leon Hirszman, de 1982. Como se vê, aparições sempre secundárias: integrado ao grupo, mas dissolvido nele.

Argemiro, contudo, começou cedo sua relação com o samba. Foi levado, nos anos 50, pelos históricos Paulo da Portela (então diretor) e Betinho (diretor de bateria) para a Portela, passando a integrar a Ala dos Pandeiros. Pai do Mestre Sala Jerônimo (da Portela e Imperatriz Leopoldinense), mais tarde entrou na Ala dos Compositores e também na velha-guarda da Escola, a qual, apadrinhada por Paulinho da Viola, se tornou uma referência entre as velhas-guardas cariocas a partir dos anos 70.

Homem de pouco estudo, mas de enorme sabedoria e inteligência, Argemiro trabalhou duro como técnico em refrigeração, profissão pela qual se aposentou de forma humilde. Isso explica em parte porque só começou a compor aos 56 anos, no final dos anos 70. Não demorou para que suas músicas, as mais de 100 que anotava com esmero num caderno, fossem reconhecidas. Em 1980, a madrinha do samba Beth Carvalho gravou a primeira composição sua, “A Chuva Cai”, parceria com Casquinha. Entre discos da Velha Guarda da Portela, participações em trabalhos de Zeca Pagodinho, Teresa Cristina e Grupo Semente, ganhou reconhecimento como o autor original que é, principalmente, na virada para o século 21. Ou seja: já na velhice. Não somente ele, como também os companheiros de Velha Guarda Casquinha e Jair do Cavaquinho, que tiveram, após o lançamento do álbum “Tudo Azul”, da Velha Guarda, em 2000, seus também primeiros discos gravados todos pelo selo Phonomotor, de Marisa Monte, um em 2001 e outro em 2002. Argemiro, que esperara oito décadas para isso, foi o terceiro da fila e não desperdiçou a oportunidade de marcar de vez seu nome na história da discografia do samba.

Poeta romântico e melodista precioso, Argemiro abre o disco com um soar de cavaquinho e a voz às vezes sôfrega e sibilante, mas naturalmente elegante e carregada de experiência vocal (e de vida). Ele canta os poéticos versos, que impressionam pela concisão das poucas palavras: “Não sei/ Porque/ Tudo de mal/ Acontece comigo/ Tentei/ Mudar/ Em vão/ Mas não consigo”. E arremata: “Ninguém pode fugir do seu destino/ Esse meu sofrimento é desde os tempos de menino”. Argemiro dá o tom da sua poética, calcada na tradição do samba de terreiro: o amor não correspondido, o sofrimento do coração partido, a mulher que abandona. Emendada, “Tudo Mudou Tão de Repente", uma das parcerias com outro célebre portelense, Chico Santana, segue na mesma linha: “Eu não sei se é meu destino/ Desde os tempos de menino/ Vivo sofrendo assim”. A sina do sambista, este eterno sofredor.

O violão de Paulão 7 Cordas, o cavaquinho de Mauro Diniz (filho de Monarco) e a “cozinha” de Felipe D’Angola e Marcelo Moreira dão a Argemiro o espaço necessário para ele entrar com seu pandeiro e sua voz. A magnífica “Solidão”, de tão classuda, ganha o toque do violoncelo de Jacques Morelenbaum. E olha que poética! “Um fantasma que mata/ E que maltrata o coração/ É dor, angústia e sofrimento O tédio é um eterno tormento/ Assim é a solidão”. Sua clássica "A Chuva Cai”, já ouvida na voz de Beth Carvalho, Renata Arruda, Grupo Explosão do Samba, Régis Clemente e outros, tem agora, enfim, a do seu próprio autor. A história da música no Brasil devia isso ao samba.

Marisa Monte, produtora do disco, sabia dessa importância histórica e dá ao conteúdo musical e até antropológico o devido capricho. Marisa, por sinal, vinha de alguns anos encabeçando o projeto de valorização da Velha Guarda da Portela. Primeiro, com o disco “Tudo Azul”, também produzido por ela. Mais tarde, os de Casquinha, Jair do Cavaquinho e este, além do belo documentário “O Mistério do Samba”, de Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor, de 2008, que a tem como cicerone. É neste filme, aliás, que Argemiro ganha seu primeiro protagonismo em vida, tratado como um dos personagens centrais da Portela. Constantes no filme, "Deslize Da Vida" (“A vida/ Não é somente doçura/ Tem que haver amargura/ Para se dar o valor”) e a maravilhosa "A Saudade me Traz", com direito a "clipe", tem a ilustre participação de Zeca Pagodinho e das vozes femininas da Velha Guarda, as Pastoras – leia-se Tia Doca, Tia Eunice, Tia Surica e Áurea Maria. Uma das melodias mais bonitas da história do samba carioca e com uma letra, que é um show de domínio de prosódia e sintaxe: “A saudade me traz/ Quero rever alguém/ Que do meu coração não sai/ Eu vivo nessa agonia sem fim/ Eu canto, eu bebo para esquecer/ Mas nem assim”. Luxo só.

trecho do filme "O Mistério do Samba" com o "clipe" "A Saudade me Traz"

Capricho também se vê no arranjo especial dado a cada faixa. "Cadê Rosalina", um samba-de-roda com ares rurais, recebe, além das vozes tão afinadas quanto agudas das Pastoras, o acordeom de Waldonys. Trato semelhante em conceito tem “Vem Amor”, samba cadenciado em que o violino de Nicolas Krassik escreve frases líricas sobre a base de tamborim e o limpo cavaquinho de Mauro Diniz; bem como o samba romântico "Dizem Que o Amor", toda na voz delicada de Marisa e cujo arranjo valoriza as cordas do cavaquinho, do violão e do cello de Jacquinho. Por falar em voz feminina, é a da fã e parceira Teresa Cristina que aparece em “Amém” para dividir os microfones com o ídolo. Um samba recente, mas com cara de clássico das antigas.

Galanteador, malandro da velha estirpe e cheio de histórias, Argemiro transpõe para seus sambas embates amorosos como o de ‘Nuvem que Passou”. "Essa saiu de repente, inteira por causa de uma mulher que não deu certo. Nós nos encontramos, ela veio com saudade, mas eu não quis dar o braço a torcer", resume. Outra nesta linha é a divertida (mas não menos melodiosa) “Saia da Casa dos Outros”, na qual Argemiro lembra outra companheira que era frequentadora assídua da vizinha, em frente a uma vila em que ele morava em Oswaldo Cruz.

O próprio Argemiro comanda o pandeiro – e apenas mais o cavaquinho – em "Lamento de um Portelense", quase uma vinheta, que antecede outra das joias do álbum: "Em uma Noite de Verão". Samba-canção valseado, com harmonia complexa e engenhosa e de letra de alta expressividade e lirismo. “Até o brilho das estrelas/ Se fez presente aos olhos meus/ Como foi maravilhoso vê-las/ Que bom seria se não fosse o adeus”. É ou não é de dar inveja em muito compositor/letrista com bastantes mais condições na vida?

E o que dizer da maestria de "Vou-me Embora pra Bem Longe"? Esta é tão melodiosa e especial, que rendeu não uma faixa, mas duas no disco. A primeira, na voz de Moreno Veloso, com breve participação do seu autor. A segunda, num eletro-samba remixado por Marcelo D2 que, esta sim, traz o vocal inconfundível de Seu Argemiro. A letra? Essa maravilha aqui: “Vou embora para bem longe/ Não posso mais ficar/ Você não me corresponde/ E os meus anseios não podem esperar”. Note-se o domínio do fraseado e do bom uso dos recursos linguísticos (mesmo que isso se dê de forma totalmente inata): “Amar, como eu amei/ Até pensei que fosse minha um dia/ Cantar, também cantei/ Extravasei a minha alegria/ Mas tudo não passou de fantasia”. Uma estrutura literária própria dos grandes poetas.

A notoriedade que Argemiro recebeu, enfim, ainda em vida, infelizmente durou pouco. Em 2003, ao lado de Teresa Cristina, Jair do Cavaquinho e Grupo Semente, apresentou-se no Centro Cultural Carioca, na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Pouco depois, vítima de uma parada cardíaca, viria a falecer, aos 81 anos, meses depois de lançar seu único disco solo. Quase não deu tempo de registrar essa preciosidade da música brasileira.

Ah, mas Seu Argemiro sempre tinha mais uma história! E esta aqui envolveu Vinícius de Moraes. Depois do sucesso de “A Chuva Cai”, Paulinho da Viola levou Argemiro num bar onde estavam Vinicius e Chico Buarque para apresentar-lhes o "novo compositor". Provocador, Vinícius, informado da capacidade de Argemiro fazer samba de partido-alto, aquele inventado na hora, olhou para ele e falou. “Faz música, mesmo? Então faz uma sobre essa garrafa aí na mesa”. Argemiro fechou o semblante e respondeu que não ia escrever sobre a garrafa, pois não estava sentido nada por ela. Ficou um climão, mas Argemiro foi para casa com aquilo na cabeça. Na semana seguinte, pediu para Paulinho levá-lo novamente àquele bar. Ao chegar, retirou a caixa de fósforo do bolso e batucou para a seleta plateia em que estavam novamente Vinicius e Chico o samba que havia composto naquela semana. Era “Minha Inspiração”, que fecha este disco em um canto a capella de Argemiro:

“Eu direi vocês estão enganados
Não faço sambas fabricados
Compreendendo vão me dar me razão
 
Somente escrevo que sinto
Falo a verdade não minto
Culpada é a minha inspiração
 
Já procurei escrever de outro jeito
Nada saía perfeito, porque não estava em mim
Não adianta eu forçar a minha natureza
Se o melhor do samba é a sua pureza
E eu forçando seria meu fim”.
 
Chico, impressionado, o olhou e disse. “Precisava isso tudo?”


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FAIXAS:
1. Pot-pourri: "Meu Sofrimento” (Argemiro Patrocínio) / “Tudo Mudou Tão de Repente" (Argemiro/Chico Santana) - 3:03
2. "Solidão" - Participação: Jaques Morelenbaum (Argemiro) - 3:26
3. "A Chuva Cai" (Argemiro, Casquinha) - 2:20
4. "Vem Amor" (Argemiro, Armando Santos) - 2:42
5. "Dizem Que o Amor" – Participação: Jaques Morelenbaum e Marisa Monte (Argemiro/Chico Santana) - 2:18
6. "Cadê Rosalina" - Participação: Pastoras da Velha Guarda da Portela e Waldonys (Argemiro, Paulo Vizinho) - 3:54
7. "Saia da Casa dos Outros" - Participação: Pastoras da Velha Guarda da Portela 
(Argemiro, Darcy Maravilha) - 3:01
8. "Deslize da Vida" (Argemiro/Chico Santana) - 3:17
9. "Lamento De um Portelense" (Argemiro/Chico Santana) - 0:55
10. "Em Uma Noite de Verão" (Argemiro) - 2:53
11. "Amém" - Participação: Teresa Cristina (Argemiro, Teresa Cristina) - 3:34
12. "Nuvem que Passou" (Argemiro) - 3:43
13. "Vou-me Embora pra Bem Longe" - Participação: Moreno Veloso e Rildo Hora (Argemiro, Guaracy, Renato Fialho) - 3:13
14. "A Saudade me Traz" - Participação: Pastoras Da Velha Guarda Da Portela e Zeca Pagodinho (Alberto Lonato, Argemiro) - 2:10
15. "Minha Inspiração" (Argemiro) - 0:22
16. "Vou-me Embora pra Bem Longe (remix)" - Participação: Cleber França e Marcelo D2 - 2:59


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

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