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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

João Donato - “Lugar Comum” (1975)

 

Acima, arte da capa original de
autoria de Rogério Duarte; abaixo,
capa da reedição em CD de 2004 

“Naquele momento fazíamos tudo informalmente: saíamos pelas noites, ele cantarolava as músicas e eu imaginava palavras pra elas. Assim fizemos ‘Bananeira’, ‘A Bruxa de Mentira’, ‘Emoriô’, ‘Que Besteira’”. 
Gilberto Gil

"A mais alta conquista de extrema complexidade em extrema simplicidade."
Caetano Veloso sobre João Donato


No final dos anos 60, João Donato e Gilberto Gil estavam distanciados de casa. Eles voltariam para o Brasil, porém, praticamente ao mesmo tempo, em 1972. Só que em condições totalmente distintas. Donato, depois de uma temporada frutífera de 10 anos nos Estados Unidos, em que tocou com músicos de alto calibre como Chet Baker, Buddy Shark e Wes Montgomery e lançou discos referenciais para o nascente jazz fusion, tal “A Bed Donato” e “Donato/Deodato” - este último, ao lado de outro brasileiro destacado no meio musical americano, Eumir Deodato. Um dos pioneiros da bossa nova, o acreano já era uma lenda entre os músicos brasileiros e já havia formatado seu estilo misto de samba com ritmos caribenhos e harmonias jazzísticas sofisticadas, o que só foi aperfeiçoado com a longa experiência nos EUA. 

Gil, por sua vez, deixaria o País em 1969 por um motivo bem mais espinhoso. Artífice do Tropicalismo, o baiano teve de se exilar em Londres por causa da Ditadura Militar junto com o parceiro e conterrâneo Caetano Veloso. Se o tempo de permanência foi bem menor do que o de Donato no estrangeiro, a sensação foi de que muitas vidas foram vividas naqueles pouco mais de 3 anos em solo europeu. Antenado e holístico, Gil aproveitou para se apropriar da atmosfera da Swingin’ London, mas, claro, não sem sentir falta do Brasil.

O retorno para casa representava, assim, tanto para Donato quanto Gil, um reencontro com suas próprias origens. O primeiro, de tão feliz, passou a escrever letras para suas composições instrumentais e, inclusive, a cantar, algo inédito até o célebre “Quem é Quem”, de 1973, quando se escuta pela primeira vez o registro de sua voz. Além disso, Donato arranjou e tocou com diversos artistas como Gal Costa, Marku Ribas, Emílio Santiago e Caetano, sempre adicionando sua musicalidade colorida e luminosa como sol dos trópicos. Estava pleno e realizado, semelhante a Gil, que retornara da expatriação com discos marcantes (“Expresso 2222”, “Gil & Jorge ou Xangô/Ogum”) e produzindo os amigos, como Jorge Mautner, Jards Macalé e Walter Smetak. Queria, agora, era aproveitar.

Não surpreende que estes dois brasileiros cheios de amor por sua terra se conectassem. O resultado disso está no não coincidentemente intitulado “Lugar Comum”, disco de Donato, que completa 50 anos de lançamento e que, embora creditado apenas a este, tem a essencial participação de Gil. Das 12 faixas, 8 são em parceria dos dois. Além disso, o próprio Gil é quem canta e/ou põe voz em quase metade dos números, inclusive creditado na ficha como responsável pelas “harmonias vocais” da obra como um todo. O protagonismo de Gil, somado ao de Donato, é tanto, que certamente credenciaria “Lugar...” a ser assinado por ambos. Mas quis-se – seja por camaradagem, modéstia ou questões contratuais – que somente o nome de Donato estivesse na capa.

Gil e Donato em 2006: reencontro para
cantarem juntos outra vez
Na contracapa e no miolo, no entanto, a união com Gil é evidente. A sonoridade jazzística de Donato cede espaço à africanidade baiana de Gil, seja em temas clássicos dos dois, como “Emoriô” e “Patumbalacundê”, seja contagiando outras, tal “Xangô É de Baê” (de Donato com Rubem Confete e Sidney da Conceição) ou “Ê Menina” (Donato e Gutemberg Guarabyra). Essa atitude afro-brasileira, que principalmente Gil começava a prescrutar – e que se manifestaria fortemente em dois de seus trabalhos subsequentes, ”Refavela” e ”Realce”, de 1977 e 79, respectivamente –, está evidente na instrumentalização do disco, que explora os microtons da percussão. Mas sem deixar de aproveitar também os ricos e característicos arranjos de Donato, que equilibram metais, madeiras, vozes e teclados em tons médios, tão bem escritos que suplantam as cordas. Caso da solar e lúdica “A Bruxa de Mentira” (“Não vejo a hora de ir/ Na barraquinha comprar/ Rapadoçura bombom/ Bruxinha gostosura (gostosura)”), que bem podia compor a trilha sonora de algum programa ou especial infantil como os que a TV brasileira tinha à época.

A faixa-título e de abertura, uma bossa nova refinada guiada pelo piano elétrico de Donato e completada por frases dos metais/madeiras, é um verdadeiro primor da MPB dos anos 70. A letra, igualmente, uma preciosidade: “Beira do mar, lugar comum/ Começo do caminhar/ Pra beira de outro lugar/ Beira do mar, todo mar é um/ Começo do caminhar/ Pra dentro do fundo azul”. Gravada por Gil um ano antes, no show "Ao Vivo no Tuca", “Lugar...”, antes chamada “Índio Perdido”, é um dos exemplos de temas instrumentais de Donato já existentes, que passam a ganhar letra e título diferente nesta época. Outra da dupla Gil/Donato, a rumba “Tudo Bem”, cantada pelos dois em coro, é de uma simplicidade formal e, ao mesmo tempo, beleza melódica, assombrosas. Poucos instrumentos (piano, violão, percussão e baixo) e um clima da mais pura Cuba musical.

Donato, mestre em criar arranjos engenhosos sobre melodias de estrutura simples, emprega esse método noutra clássica dele e de Gil: “Bananeira” – a qual ganharia, naquele mesmo ano, uma versão bem mais funk de Emílio Santiago em sua disco de estreia e cujo arranjo conta com a versatilidade do próprio Donato. Eles assinam juntos ainda “Deixei Recado”, um afoxé impregnado de jazz encarregado de encerrar de forma muito afro-baiana o álbum, e “Que Besteira”, típica composição forjada pelo improviso de dois artistas felizes com aquele recente e frutífero encontro e conscientes da beleza do que estavam criando. 

“Lugar...” ainda conta com mais duas pequenas joias com outros parceiros de Donato: “Pretty Dolly”, com Norman Gimbel, letrista norte-americano cantado por nomes como Sarah Vaughan, Dean Martin e Tony Benett e responsável pela tradução de “Garota de Ipanema” (“The Girl from Ipanema”), que popularizou o hino da bossa nova para o mundo; e “Naturalmente”, a primeira de uma série que assinaria com Caetano e que impressiona pela modernidade de letra e música, que lembra o pós-tropicalismo de Walter Franco e antecipa em quase 10 anos o rock concretista de Arnaldo Antunes/Titãs.

Gil conta, em seu livro “Gilberto Bem Perto” (coescrito com Regina Zappa), que várias músicas dele e de Donato surgiram de maneira informal, quando os dois caminhavam de noite do Rio de Janeiro costeando as praias compondo e se divertindo. Esta cena de espontaneidade e comunhão é a imagem perfeita da magia do encontro destes dois gênios, que tanto sentiram falta do calor dos trópicos. Agora, juntos, na beira do mar, recomeçavam o caminhar para a beira de outro lugar. Um lugar comum a eles: a música do Brasil.

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FAIXAS:
1. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 3:32
2. “Tudo Tem” (Gil, Donato) - 3:20
3. “A Bruxa De Mentira” (Gil, Donato) - 3:21
4. “Ê Menina” (Gutemberg Guarabyra, Donato) - 3:02
5. “Bananeira” (Gil, Donato) - 3:31
6. “Patumbalacundê” (Durval Ferreira, Gil, Donato, Orlandivo) - 3:05
7. “Xangô É de Baê” (Donato, Rubem Confete, Sidney da Conceição) - 3:13
8. “Pretty Dolly” (Donato, Norman Gimbel) - 2:19
9. “Emoriô” (Gil, Donato) - 3:25
10. “Naturalmente” (Caetano Veloso, Donato) - 3:22
11. “Que Besteira” (Gil, Donato) - 3:37
12. “Deixei Recado” (Gil, Donato) - 2:14


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

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