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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Moacir Santos - "Coisas" (1965)


"Moacir Santos é um jedi."
Ed Motta

"Eu sou o 'Ouro Negro' do Brasil."
Moacir Santos

A música popular brasileira, mesmo com sua trajetória centenária, demorou a se reconhecer negra. O samba, ritmo mais característico do Brasil, embora a gênese africana, com elementos oriundos das nações Banto, Iorubá, Jeje, Mina, Bornu, Gurunsi e outras, sofreu, ao longo do tempo, com diversas intervenções que, às vezes propositalmente, o distanciaram da origem. Caso do "boleramento" do samba da Rádio Nacional, nos anos 40 e 50, e da própria bossa-nova, demasiado jazz para ouvidos mais ortodoxos. O morro, mesmo, não aparecia no cenário. Ambas as ondas propunham características tão estrangeiras, que só faziam reduzir o espaço simbólico da verdadeira raiz da música brasileira, fosse por modismo, entreguismo ou, pior, vergonha.

Jorge Ben, com o emblemático “Samba Esquema Novo”, de 1963, foi o primeiro sopro de resgate deste africanismo na MPB. Instintivo, pop e moderno, levava a raiz afro-brasileira a outro nível ancorado na tradição violeira. Mas ainda era pouco. Se se olhar para uma das pinturas de Heitor dos Prazeres (aliás, também um grande sambista), que tematizam a gente do samba dos morros e das ruas, fica claro que havia uma série de outros instrumentos – e, portanto, outras texturas e tonalidades – nas rodas e cordões cariocas do início do século 20, que iam além do pandeiro e tarol. Como descreve José Ramos Tinhorão em seu “Os Sons Negros no Brasil”, cabia no samba toda a influência ibérica trazida da Europa pelos portugueses, como o fado e a fofa, mais as diversas culturas diaspóricas vindas da África, tal o batuque, o calundu, o folguedo e a umbigada.

Alguma coisa haveria de salvar a africanidade na música brasileira, e isso veio das mãos de Moacir Santos. Compositor, arranjador, saxofonista e vocalista, este pernambucano lança seu primeiro e absolutamente marcante álbum de estreia com base nas lições que ensinava a seus alunos, as despretensiosamente chamadas “coisas”. Acontece que essas "coisas" eram preciosidades, assim como os seus seguidores. Seus discípulos – entre eles, nada menos que Baden Powell, João Donato, Paulo Moura, Sérgio Mendes, Nara Leão, Eumir Deodato, Carlos Lyra e Roberto Menescal – aprenderam estes valiosos ensinamentos de harmonia e composição com um já maduro e experiente músico capaz de sinterizar mundos. Ex-integrante de orquestras de circo e bandas militares de diversas cidades do Nordeste, nos anos 40, Moacir, após trabalhar como instrumentista e arranjador da orquestra da Rádio Nacional, em 1951, já no Rio de Janeiro, aperfeiçoou seus estudos eruditos com os maestros alemães Ernest Krenek (que o introduz na técnica dodecafônica) e o célebre Hans-Joachim Koellreuter, de quem se tornou assistente, além de estudar também com Claudio Santoro e Cesar Guerra-Peixe.

Lançado há 60 anos pelo cultuado selo Forma – responsável por obras icônicas da música brasileira dos anos 60 como “Os Afro-Sambas”, de Vinicius de Moraes e Baden, e a trilha sonora de Sérgio Ricardo para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o filme de Glauber Rocha“Coisas” é justamente o nome dado ao disco que resume as avançadas ideias musicais de Moacir Santos. O trabalho revitaliza a bossa-nova sob a aura das matrizes africanas, ao passo de que também engendra harmonias jazzísticas e ritmos da cultura nordestina, como o frevo, o samba-de-roda, o maracatu e as bandas marciais. A valorização da cultura negra é perceptível tanto na atenção dispensada pelo compositor à percussão, com a incorporação de instrumentos pouco usuais (como berimbau, kalimba, atabaque, agogô e afoxé), como na invenção de uma base rítmica original, ligada a esse matiz. Coisa de gênio. 

São apenas 10 coisas, ou melhor: 10 lições instrumentais, que inventam esse Brasil profundo e sofisticado de Moa. "Coisa n° 4" não à toa passa à frente de suas três companheiras ordinárias para abrir o disco, visto que escolhida para provocar o impacto necessário ao florescer da obra. E o cumpre com louvor: um ritmo de ponto de candomblé se funde a uma base de metais em tom baixo, como o de uma banda marcial em dia de quermesse. É quando entra o trombone solo de Edmundo Maciel desenhando o riff, que serpenteia com elegância o ritmado carregado do culto de orixá. Depois, juntam-se trombone, metais e madeira, num desenvolvimento melódico airoso.

Moacir, revolucionário e mestre dos mestres
da música brasileira 
Dá tempo de recuperar o fôlego – talvez nem tanto assim – com a “nº 10”, uma bossa-nova com traços caribenhos com uma das melodias mais bonitas já escritas por Moacir. Samba-jazz puro, seja no toque sincopado do piano, seja na insinuante linha do trompete. Tudo muito apurado e com clara referência aos mestres Tom Jobim, Johnny Alf, João Donato e Antônio Maria.

Recuperando o tema escrito dois anos antes para a trilha sonora de “Ganga Zumba”, o primeiro filme de Cacá Diegues, “Tema de Nanã” vira agora a “Coisa nº 5”. Novamente, como na abertura do disco, o toque percussivo prevalece, mas logo se transforma numa marcha, que dignifica o gênio militar do herói quilombola. O arranjo de Moacir é espantosamente bem arquitetado, conjugando todos os metais e madeiras (sax alto, sax barítono, sax tenor, trompete, trombone, trombone baixo e flauta). Um ano antes, Nara, com arranjos do próprio autor, a incluiria em seu celebrado álbum de estreia cantando-a apenas em melismas. Somente em 1972 a música ganharia letra – e em inglês – no LP “Maestro”, que Moacir gravaria já nos Estados Unidos, para onde se mudou em 1967 para lecionar e exercer trabalhos free-lancer para cinema.

Enquanto o tema “3” é quase o estudo de um samba minimalista escrito sobre a combinação de três acordes, a “segunda coisa”, que vêm na sequência, esmera num jazz sensual e enigmático conduzido pela bateria de Wilson das Neves e o vibrafone do seu irmão, o também percussionista Cláudio das Neves. Desfilam solos da flauta de Copinha e o trombone baixo de Armando Pallas sobre uma base arranjada no tom médio dos metais. Nesta fica clara a habilidade melódico-harmônica de Moacir, que emprega escalas modais e ambíguas no uso das terças (ora maiores, ora menores), gesto que que torna o número ainda mais negro.

Outra estonteante é a de “nº 9”, subtitulada "Senzala", um lamento nagô com ares jazzísticos cujo toque do sax alto sustenta uma das melodias mais bonitas da música brasileira pós bossa-nova. Há algo arábico nessa melodia em permanente mistério, como uma saudade da mãe-África, como um banzo. Não se nota exaltação: apenas o sofrimento calado das correntes prendendo a pele escrava na escaldante noite no engenho. Já a “Coisa nº 6” acelera o compasso para um samba gafieira em que a volumosa instrumentalização dignifica Severino Araújo e a Orquestra Tabajara. Ritmada, suingada e lindamente melodiosa.

Não menos brilhante, a “sétima lição” é um samba-jazz exemplar, das melhores desse primeiro e referencial repertório de Moacir. Já a “Coisa nº 1”, não menos elegante, forja-se sobre uma sutil percussão de bongôs, um violão sincopado e a dança dos metais, que esculpem este samba cadenciado, que capta as lições da bossa nova e as ressignifica ao deslocar rítmicos e métricos, característica do compositor pernambucano.

Intitulada de “Navegação” em 2001, quando ganhou letra de Nei Lopes e vocal de Milton Nascimento para o álbum-tributo “Ouro Negro”, produzido por Zé Nogueira e Mário Adnet, e um dos mais cultuados temas do cancioneiro de Moa, a “Coisa nº 8” é a escolhida para fechar essa pequena ópera preta. E no mais alto nível de musicalidade e sofisticação. Mesmo sem o vocal, é possível embarcar neste navio moaciriano e intuir os versos: “Da proa desta embarcação/ Consigo interpretar, enfim/ A carta de navegação/ Que o mar traçou dentro de mim”.

Não é exagero dizer que, se não existisse “Coisas”, não existiriam “Os Afro-Sambas” de Vinicius e Baden, nem a África universal do Milton de “Minas"/"Geraes”, nem a “Maria Fumaça” soul-funk da Black Rio, nem o samba enraizado do Martinho da Vila de “Origens”, nem a “Refavela” de Gilberto Gil, nem a musicalidade colorida da Europa moura de Djavan. Não haveria lastro para tudo isso não fosse Moacir Santos e o salvamento que ele promoveu à música brasileira negra. Tal uma nova abolição. Como disse Ed Motta, Moacir é “essa mão de proteção sobre as nossas criações e de tudo que a gente tem pra fazer daqui pra frente”. O que quer dizer muita, mas muita coisa.

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FAIXAS:
1. "Coisa Nº 4" - 4:01
2. "Coisa Nº 10" (Moacir Santos, Mário Telles) - 3:06
3. "Coisa Nº 5 (Nanã)" (Santos, Telles) - 2:45
4. "Coisa Nº 3" - 3:00
5. "Coisa Nº 2" - 4:55
6. "Coisa Nº 9 (Senzala)" (Santos, Regina Werneck) - 3:08
7. "!Coisa Nº 6" - 3:22
8. "Coisa Nº 7 (Quem É Que Não Chora?)" (Santos, Telles) - 2:25
9. "Coisa Nº 1" (Santos, Clovis Mello) - 2:41
10. "Coisa Nº 8 (Navegação)" (Santos, Werneck) - 2:19
Todas as composições de autoria de Moacir Santos, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

João Donato - “Lugar Comum” (1975)

 

Acima, arte da capa original de
autoria de Rogério Duarte; abaixo,
capa da reedição em CD de 2004 

“Naquele momento fazíamos tudo informalmente: saíamos pelas noites, ele cantarolava as músicas e eu imaginava palavras pra elas. Assim fizemos ‘Bananeira’, ‘A Bruxa de Mentira’, ‘Emoriô’, ‘Que Besteira’”. 
Gilberto Gil

"A mais alta conquista de extrema complexidade em extrema simplicidade."
Caetano Veloso sobre João Donato


No final dos anos 60, João Donato e Gilberto Gil estavam distanciados de casa. Eles voltariam para o Brasil, porém, praticamente ao mesmo tempo, em 1972. Só que em condições totalmente distintas. Donato, depois de uma temporada frutífera de 10 anos nos Estados Unidos, em que tocou com músicos de alto calibre como Chet Baker, Buddy Shark e Wes Montgomery e lançou discos referenciais para o nascente jazz fusion, tal “A Bed Donato” e “Donato/Deodato” - este último, ao lado de outro brasileiro destacado no meio musical americano, Eumir Deodato. Um dos pioneiros da bossa nova, o acreano já era uma lenda entre os músicos brasileiros e já havia formatado seu estilo misto de samba com ritmos caribenhos e harmonias jazzísticas sofisticadas, o que só foi aperfeiçoado com a longa experiência nos EUA. 

Gil, por sua vez, deixaria o País em 1969 por um motivo bem mais espinhoso. Artífice do Tropicalismo, o baiano teve de se exilar em Londres por causa da Ditadura Militar junto com o parceiro e conterrâneo Caetano Veloso. Se o tempo de permanência foi bem menor do que o de Donato no estrangeiro, a sensação foi de que muitas vidas foram vividas naqueles pouco mais de 3 anos em solo europeu. Antenado e holístico, Gil aproveitou para se apropriar da atmosfera da Swingin’ London, mas, claro, não sem sentir falta do Brasil.

O retorno para casa representava, assim, tanto para Donato quanto Gil, um reencontro com suas próprias origens. O primeiro, de tão feliz, passou a escrever letras para suas composições instrumentais e, inclusive, a cantar, algo inédito até o célebre “Quem é Quem”, de 1973, quando se escuta pela primeira vez o registro de sua voz. Além disso, Donato arranjou e tocou com diversos artistas como Gal Costa, Marku Ribas, Emílio Santiago e Caetano, sempre adicionando sua musicalidade colorida e luminosa como sol dos trópicos. Estava pleno e realizado, semelhante a Gil, que retornara da expatriação com discos marcantes (“Expresso 2222”, “Gil & Jorge ou Xangô/Ogum”) e produzindo os amigos, como Jorge Mautner, Jards Macalé e Walter Smetak. Queria, agora, era aproveitar.

Não surpreende que estes dois brasileiros cheios de amor por sua terra se conectassem. O resultado disso está no não coincidentemente intitulado “Lugar Comum”, disco de Donato, que completa 50 anos de lançamento e que, embora creditado apenas a este, tem a essencial participação de Gil. Das 12 faixas, 8 são em parceria dos dois. Além disso, o próprio Gil é quem canta e/ou põe voz em quase metade dos números, inclusive creditado na ficha como responsável pelas “harmonias vocais” da obra como um todo. O protagonismo de Gil, somado ao de Donato, é tanto, que certamente credenciaria “Lugar...” a ser assinado por ambos. Mas quis-se – seja por camaradagem, modéstia ou questões contratuais – que somente o nome de Donato estivesse na capa.

Gil e Donato em 2006: reencontro para
cantarem juntos outra vez
Na contracapa e no miolo, no entanto, a união com Gil é evidente. A sonoridade jazzística de Donato cede espaço à africanidade baiana de Gil, seja em temas clássicos dos dois, como “Emoriô” e “Patumbalacundê”, seja contagiando outras, tal “Xangô É de Baê” (de Donato com Rubem Confete e Sidney da Conceição) ou “Ê Menina” (Donato e Gutemberg Guarabyra). Essa atitude afro-brasileira, que principalmente Gil começava a prescrutar – e que se manifestaria fortemente em dois de seus trabalhos subsequentes, ”Refavela” e ”Realce”, de 1977 e 79, respectivamente –, está evidente na instrumentalização do disco, que explora os microtons da percussão. Mas sem deixar de aproveitar também os ricos e característicos arranjos de Donato, que equilibram metais, madeiras, vozes e teclados em tons médios, tão bem escritos que suplantam as cordas. Caso da solar e lúdica “A Bruxa de Mentira” (“Não vejo a hora de ir/ Na barraquinha comprar/ Rapadoçura bombom/ Bruxinha gostosura (gostosura)”), que bem podia compor a trilha sonora de algum programa ou especial infantil como os que a TV brasileira tinha à época.

A faixa-título e de abertura, uma bossa nova refinada guiada pelo piano elétrico de Donato e completada por frases dos metais/madeiras, é um verdadeiro primor da MPB dos anos 70. A letra, igualmente, uma preciosidade: “Beira do mar, lugar comum/ Começo do caminhar/ Pra beira de outro lugar/ Beira do mar, todo mar é um/ Começo do caminhar/ Pra dentro do fundo azul”. Gravada por Gil um ano antes, no show "Ao Vivo no Tuca", “Lugar...”, antes chamada “Índio Perdido”, é um dos exemplos de temas instrumentais de Donato já existentes, que passam a ganhar letra e título diferente nesta época. Outra da dupla Gil/Donato, a rumba “Tudo Bem”, cantada pelos dois em coro, é de uma simplicidade formal e, ao mesmo tempo, beleza melódica, assombrosas. Poucos instrumentos (piano, violão, percussão e baixo) e um clima da mais pura Cuba musical.

Donato, mestre em criar arranjos engenhosos sobre melodias de estrutura simples, emprega esse método noutra clássica dele e de Gil: “Bananeira” – a qual ganharia, naquele mesmo ano, uma versão bem mais funk de Emílio Santiago em sua disco de estreia e cujo arranjo conta com a versatilidade do próprio Donato. Eles assinam juntos ainda “Deixei Recado”, um afoxé impregnado de jazz encarregado de encerrar de forma muito afro-baiana o álbum, e “Que Besteira”, típica composição forjada pelo improviso de dois artistas felizes com aquele recente e frutífero encontro e conscientes da beleza do que estavam criando. 

“Lugar...” ainda conta com mais duas pequenas joias com outros parceiros de Donato: “Pretty Dolly”, com Norman Gimbel, letrista norte-americano cantado por nomes como Sarah Vaughan, Dean Martin e Tony Benett e responsável pela tradução de “Garota de Ipanema” (“The Girl from Ipanema”), que popularizou o hino da bossa nova para o mundo; e “Naturalmente”, a primeira de uma série que assinaria com Caetano e que impressiona pela modernidade de letra e música, que lembra o pós-tropicalismo de Walter Franco e antecipa em quase 10 anos o rock concretista de Arnaldo Antunes/Titãs.

Gil conta, em seu livro “Gilberto Bem Perto” (coescrito com Regina Zappa), que várias músicas dele e de Donato surgiram de maneira informal, quando os dois caminhavam de noite do Rio de Janeiro costeando as praias compondo e se divertindo. Esta cena de espontaneidade e comunhão é a imagem perfeita da magia do encontro destes dois gênios, que tanto sentiram falta do calor dos trópicos. Agora, juntos, na beira do mar, recomeçavam o caminhar para a beira de outro lugar. Um lugar comum a eles: a música do Brasil.

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FAIXAS:
1. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 3:32
2. “Tudo Tem” (Gil, Donato) - 3:20
3. “A Bruxa De Mentira” (Gil, Donato) - 3:21
4. “Ê Menina” (Gutemberg Guarabyra, Donato) - 3:02
5. “Bananeira” (Gil, Donato) - 3:31
6. “Patumbalacundê” (Durval Ferreira, Gil, Donato, Orlandivo) - 3:05
7. “Xangô É de Baê” (Donato, Rubem Confete, Sidney da Conceição) - 3:13
8. “Pretty Dolly” (Donato, Norman Gimbel) - 2:19
9. “Emoriô” (Gil, Donato) - 3:25
10. “Naturalmente” (Caetano Veloso, Donato) - 3:22
11. “Que Besteira” (Gil, Donato) - 3:37
12. “Deixei Recado” (Gil, Donato) - 2:14


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Ivan Lins - "Chama Acesa" (1975)


 

“Por baixo essa terra marcada/ Do lado direito essa tristeza/ Do outro, me dói, não há nada/ Mas em cima essa chama acesa”. 
Da letra de "Chama Acesa"


Um perigoso autoengano pairava no ar no Brasil de 1974. Após os anos de linha-dura de Médici, o governo militar passava para as mãos do General Ernesto Geisel aventando começar uma abertura política. Uma esperança. Desde o AI-5, em 1968, intensificavam-se a violência de Estado, a repressão, a censura prévia, os desaparecimentos, as prisões e o silenciamento das vozes oponentes. Havia de se ter um alento com a troca do comando. Afinal, lutar cansa. Infelizmente, não foi o que se sucedeu. Tanto que, depois se viu, precisaram-se de mais 11 anos para que a democracia voltasse efetivamente e a mão pesada da ditadura se manteve ainda muito ativa e sangrenta naquela metade dos anos 70. Estava claro: eles não iriam entregar o país de bandeja após o terem tomado pela força 10 anos antes com todos os custos que isso carrega. E se se nutria alguma ilusão de arrefecimento, o assassinato brutal do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, não deixou dúvidas de que os milicos estavam, sim, longe de baixar as armas.

Um dos que não se iludiu com a promessa de melhora no contexto político brasileiro de então foi Ivan Lins, um dos deuses da MPB, que chega hoje a 80 anos de vida. Já consagrado na voz de Elis Regina em 1970, com "Madalena", e um dos reconhecidos novos talentos do Movimento Artístico Universitário (MAU), Ivan levou, no entanto, alguns anos para se desfazer da imagem conformista - a qual talvez até hoje persista para alguns em certa medida. Muito por conta da música “Esse É o meu País”, que fez um inconveniente sucesso naquele mesmo ano, o que soava para a esquerda como uma piada sem graça do pior período de ditadura que o país vivia. Resultado? “Cancelamento”. Mas o filho musical de Tom Jobim e Milton Nascimento, melodista e harmonista sofisticado e de raro talento, àquela altura já havia entendido o lugar que devia ocupar. Sem medo da vigília seja do poder ou da oposição, em 1974 ele aciona o "Modo Livre", ao mesmo tempo nome de sua banda e de seu LP daquele ano, o que se torna, igualmente, o começo de uma nova fase na carreira: crítica, denunciativa, combativa – mas não menos poética e musical.

Esse espírito liberto deu a Ivan a certeza de que era momento de seguir com as armas em punho diante daquele cenário opressivo. Era necessário manter, como dizem, a “Chama Acesa”, justamente o nome do efervescente álbum que lançava em dezembro de 1975 pela gravadora RCA e o qual, assim como Ivan, faz também aniversário de data fechada em 2025, completando 50 anos. Valendo-se de sua maravilhosa musicalidade e de sensíveis letras, ele retoma o caminho aberto em “Modo Livre”, porém com importantes acréscimos, que vêm para intensificar a potência de seu corajoso discurso, agora ainda mais ardente. O principal deles é o estabelecimento definitivo da maior parceria de sua carreira, a com Vitor Martins. O letrista, que havia assinado com ele no trabalho anterior a simbolicamente intitulada “Abre Alas”, iniciando a parceria, agora responde por quase a metade das faixas do disco, dando não apenas unidade poética à obra como, principalmente, revelando o nascimento de uma das mais afinadas duplas da música popular brasileira contemporânea criadora de clássicos como “Um Novo Tempo”, “Cartomante”, “Começar de Novo”, “Vitoriosa”, "Iluminados" e “Lembra de Mim”, estas três últimas, temas de novelas da Rede Globo.

Em “Chama...” já era possível ver cristalizada a afinidade musical Ivan/Martins numa sequência vertiginosa: "Lenda do Carmo", totalmente referenciada na sonoridade de Milton Nascimento/Clube da Esquina; "Joana dos Barcos", bossa nova onírica e contística; e "Ventos de Junho'", que fecha essa sequência “mineira” com versos preocupados: “E hoje, horizontes farpados, soleiras/ Trancas, tramelas, porteiras/ Que nos caminhos de Minas/ Não abrem mais”. Nem uma vírgula era desaproveitada para se dar o recado.

A contundência maior, porém, vem no espetacular afoxé “Demônio de Guarda” ("Você vigia meus sonhos/ Me dá cachaça e as noites de orgia/ Você me dá a preguiça/ Me dá a conversa vadia de esquina/ Pra depois me jogar a polícia em cima") e, principalmente, em "Corpos", que encerra o disco dando o tom de gravidade que aqueles tempos exigiam. Dois títulos que, afora suas letras e a forma expressiva da interpretação, já dizem por si. Quanta audácia titular “Corpos” uma música para finalizar uma obra lançada menos de 2 meses depois da escandalosa morte por tortura de Herzog cuja foto do corpo falsamente enforcado tornou-se um símbolo da luta pela democracia! A letra, aparentemente amorosa, na verdade, não deixa por menos em denunciar o barbarismo e o calamento: "Existem mais corpos/ Ou vivos, ou mortos/ Entre eu e você/ Procure saber, procure em mim/ Procure em você/ Procure em todos/ Na lama, no lodo/ Na febre, no fogo".

Contudo, Ivan sabiamente mantém também outros valiosos parceiros de antes, como com o craque Paulo César Pinheiro e o primeiro deles, Ronaldo Monteiro. Ambos, igualmente indignados com o terror da ditadura e o cerceamento das liberdades, usam suas fervorosas poéticas para o mesmo fim: denunciar. Mas, claro, fazem com erudição e inteligência. Com Pinheiro, que assinara com Ivan um ano antes "Rei do Carnaval", tema de abertura de “Modo Livre”, agora retoma com nada menos que a devastada (e devastadora) faixa-título: "Você está parado na estrada/ Contemplando toda a redondeza/ Atrás a cidade assustada/ Na frente a cruel fortaleza". É deles também a etílica "Poeira, Cinza e Fumaça", balada desesperançada com “versos comuns de desgraça”. Quanto exercício literário para fazer poesia de resistência sem que a censura percebesse!

Com Ronaldo, igual sintonia. Parceiros desde o início da carreira de Ivan, agora eles vêm com “Palhaços e Reis”, que traz a metáfora circense e/ou carnavalesca para criticar o circo político da ditadura a qual Ivan aproveitaria novamente em trabalhos seguintes, como na faixa-título de “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, do disco deste mesmo nome, de 1977, e subtitulada “É O Circo de Novo”, ou “Cantoria”, de “Nos Dias de Hoje”, de 1978. Os versos não deixam entender outro sentido, que não este mesmo: "Olha, morena/ Me dói, me dá pena/ Saber o que a vida nos faz/ Destrói, desacata/ Maldiz e maltrata/ O ano inteiro".

Tão cáustica quanto é a bossa nova "Não Há Porque", igualmente com Ronaldo, cujo abrasivo solo de flauta acompanha o sufocante encadeamento, que amontoa progressivamente rimas num crescendo a cada verso: “Do estado desse mundo Deus está ciente/ Na espreita sobrevivo até comicamente/ Os efeitos vêm a público amargamente/ Um estranho ao me ver, percebe claramente.” Se um estranho percebia tamanha inconformidade, imagine-se os milicos! Que afronta! E o jeito fervoroso, quase furioso de Ivan cantar, faz a música ficar ainda mais ardente.

Ivan, ao fundo com Vitor Martins e Gilson Paranzetta,
essenciais para manter acesa a chama do inconformismo
Mas Ivan, músico completo que é, não precisa valer-se sempre de parceiros. Afinal, são duas só dele que abrem o disco. E põe para ferver: “Não me afague o rosto/ com essa mão farpada/ Não me afogue em poço/ que eu não beba água”. Esses versos, claramente referindo-se às torturas praticadas pelos militares, é da fantástica “Sorriso da Mágoa”. A abertura da música traz a atmosfera tensa de um tema de série policial para, depois, cair num samba-jazz conduzido pelo piano elétrico de Gilson Peranzzetta, este o outro novo ator determinante para o resultado de “Chama...”. É o pianista e arranjador, o qual se tornaria, assim como Martins, também um constante contribuidor de Ivan, que dá o tom jazzístico de todo o álbum, avançando em concepção sonora em relação aos discos anteriores. Os solos de sax e/ou flauta de Ricardo Ribeiro, bem como as do próprio Peranzzetta nos teclados, bem como a liberdade nas execuções de uma banda intitulada exatamente de Modo Livre, fazem deste disco o mais potente em termos de arranjo entre todos da discografia de Ivan.

Impressiona o quanto Ivan estava imbuído de aproveitar cada verso, cada palavra, cada pronúncia, para manifestar inconformismo, seja em forma de afronta, indignação, medo, ameaça, revolta ou melancolia. "Nesse Botequim", samba-canção na linha de outros que comporia mais adiante (“Esses Garotos”, “Saindo de Mim”, “Qualquer Dia”), é de uma tristeza corrosiva. Aliás, como muitos compositores manifestavam através de suas músicas à época, a se ver pelas penosas “Chegadas e Partidas”, de Milton/Fernando Brant, “Samba de Orly”, de Chico Buarque, ou "Café", de Egberto Gismonti. Doloridas. "Nesse Botequim" se vale da imagem do espaço popular onde as pessoas deveriam ser felizes, mas que, naquele estado de coisas, não ocorria bem assim. “Nas portas desse botequim/ Passaram tempos antigos/ Passaram sonhos, amigos/ Passaram crimes, castigos”. Ou seja: o “botequim” era, metaforicamente, o Brasil onde passavam “barbas, batinas” e, pior, “mãos assassinas”. E no final Ivan ainda evoca Tom Jobim, porém ressignificando a brejeira “Águas de Março” ao destacar-lhe apenas os versos iniciais: "É pau, é pedra, é o fim do caminho/ É um resto de toco, é um pouco sozinho". É: era pau, era pedra, era solidão. 

Se “Modo Livre”, que abriu caminho para o Ivan engajado e inconformado, “Chama...” deu-lhe prosseguimento – até porque o cenário, infelizmente, não aliviara. As capas de ambos os discos dão essa ideia de inevitabilidade: em “Modo...”, Ivan aparece em uma foto azulada em que parece assustado, pois prestes a "se afogar" na "água", em “Chama...”, ao contrário, seu rosto quase em êxtase está sob cores quentes de fogo. Tanto um estado físico quanto outro simbolizando a tortura física, psicológica e emocional dos porões da ditadura. Seja num extremo ou noutro, água ou fogo, o mesmo grito. Assim, “Deixa eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”, da clássica "Deixa eu Dizer", do trabalho anterior, conecta-se diretamente com os então novos versos de “Não Há Porque”: “A espécie dessa vida é morte que se sente/ A espera se renova em todo poente/ Qual espuma vivo fraco, mas eu vou em frente”.

Neste duplo aniversário, de 80 de Ivan e de 50 de “Chama...”, muito se tem por comemorar, mas também por alertar. Um dos mais celebrados autores da música brasileira, admirado por gente como Quincy Jones, Sarah Vaughn, George Duke, Ella Fitzgerald e George Benson, merece todos os aplausos. O disco, o segundo de uma série de cinco trabalhos essenciais de Ivan dos anos 70, embora reflexo doloroso de uma época, guarda em si justamente esta qualidade: a de expressar-se corajosamente e num alto nível musical e poético. Porém, não há como olhar para trás e deixar de lembrar que, há cinco décadas, atrocidades estavam sendo cometidas pelo próprio Estado contra seus cidadãos. Isso jamais deve ser esquecido, e para que nunca mais se permita repetir é necessário manter a chama, ainda hoje, acesa. E “quem quiser discordar eu vou desconfiar”. Pra valer.


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FAIXAS:
1. "Sorriso da Mágoa" (Ivan Lins) - 4:41
2. "Nesse Botequim" (Lins) - 2:43
3. "Chama Acesa" (Lins, Paulo César Pinheiro) - 1:59
4. "Lenda do Carmo" (Lins, Vítor Martins) - 5:40
5. "Joana dos Barcos (Beira-Mar)" (Lins, Martins) - 2:37
6. "Ventos de Junho" (Lins, Martins) - 2:54
7. "Não Há Porque" (Lins, Ronaldo Monteiro) - 4:11
8. "Demônio de Guarda" (Lins, Martins) - 3:49
9. "Poeira, Cinza e Fumaça" (Lins, Pinheiro) - 3:20
10. "Palhaços e Reis" (Lins, Monteiro) - 4:33
11. "Corpos" (Lins, Martins) - 3:57

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Daniel Rodrigues

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Música da Cabeça - Programa #405

 

É sério essa febre de colorir desenho de ursinho? É cada coisa que me aparece... Sem muito saco pra pintar, mas convicto em dar seu recado, o MDC traz uma galera com passatempos muito mais proveitosos, como Luiz Melodia, Tom Jobim, Nick Drake, Ira!, Gabriel Yared e outros. Ainda, um Cabeça dos Outros igualmente, digamos, edificante. Colorindo a vida com notas musicais, o programa pinta por aqui às 21h na paleta da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e coisa melhor para fazer: Daniel Rodrigues.


www.radioeletrica.com

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

João Gilberto - “Live at The 19th Montreux Jazz Festival” ou "Live In Montreux" (1985)

 

No topo, capa do LP original
lançado no Brasil e, abaixo,
a da edição americana

“É a grande soma da obra de João Gilberto. É o disco que dá a visão mais ampla da ideia que ele tem de repertório, de estilo”.
Caetano Veloso

Os baianos, mais do que qualquer outra gente, são donos de uma genialidade que às vezes beira a ingenuidade. Caetano Veloso conta que, certa vez, ao visitar Dorival Caymmi em sua casa numa quente tarde de Salvador, o anfitrião mal o deixou entrar pelo portão e já se pôs a mostrar-lhe uma novidade que havia descoberto para aliviar aquele intenso calor. Levou, então, Caetano até a sala e solenemente lhe apresentou sua mais nova obra de engenharia doméstica: havia disposto a cadeira na qual estava sentado só de bermuda e chinelos feito um Buda nagô de frente para um... ventilador! 

Por mais óbvio que pareça o raciocínio de Caymmi, ele guarda, no fundo, uma percepção que, muitas vezes, foge aos mortais preocupados em complexar a vida: a simplicidade. Foi valendo-se do mesmo senso natural que outro baiano favorecido pelos Céus, João Gilberto, chegou a uma conclusão semelhante. Além daquilo que produzia nos invariavelmente indispensáveis discos de estúdio desde o final dos anos 50, João costumava reinventar seu repertório a cada nova apresentação ao vivo. Geralmente, só ele é o inseparável violão. Uma magia inimitável a qualquer outro momento da história da música moderna. Então, do fundo de sua cabeça privilegiada mas distraída, pensou: "porque não gravo um disco ao vivo que transmita essa atmosfera?" 

Sim, passados mais de 30 anos de carreira, João nunca havia feito um álbum neste formato. Tinha até então dois ao vivo, todos com parcerias e/ou bandas/orquestra acompanhando: "Getz/Gilberto #2", em companhia do saxofonista de jazz norte-americano Stan Getz, de 1965, e o especial da TV Globo "João Gilberto Prado Pereira de Oliveira", de 1980, no qual recebe vários convidados. Assim, só ele no palco, nunca.

O que parecia óbvio, por se tratar da essência do som do homem que inventou a moderna música brasileira com a concepção da bossa nova, ganhava, enfim, um registro fiel. Já havia se tornado comum a artistas brasileiros a partir dos anos 70 gravarem seus shows no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, desde que a curadoria do evento se abrira para a sonoridade da MPB como sendo cabível no gênero do "jazz moderno". De A Cor do Som a Elis Regina, passando por Gilberto Gil, Pepeu Gomes e Hermeto Pascoal. Faltava João.

E o Bruxo de Juazeiro não deixa por menos. Com seu repertório impecável selecionado cirurgicamente, une velhos sambas, como os de Ary Barroso, Haroldo Barbosa, Geraldo Pereira e Wilson Batista, a então novos clássicos. Melhor exemplo é "Menino do Rio", de Caetano, lançada em 1979 pelo autor e já versada pelo próprio João um anos depois. Mas ocorreu que a música fizera novamente muito sucesso em 1982 na voz de Baby Consuelo para a trilha do filme homônimo, e João, ao resgatá-la, transformava-a imediatamente de um hit para um clássico. 

João destila musicalidade. É tocante ouvir o trato de cada detalhe, de cada pronúncia, de cada acorde ou silêncio. A permanente confluência harmonia-melodia, as variações de ritmo, o casamento de cordas vocais e cordas de nylon num constante entendimento, entrelaçando-se, dançando. "Tim Tim Por Tim Tim", conhecida do repertório de João, abre com um verdadeiro show de gingado. Quem escuta ele tocando e cantando com tamanha naturalidade pode até pensar que se trata de um improvido. Mas o mais impressionante de João é que tudo aquilo faz parte de um exercício de controle absurdo, e ao vivo isso fica mais evidente. As soluções harmônicas, as escolhas de tempos, a voz afinadíssima mas sem vibrato, o controle da cadência, o que arpejar e o que silenciar: tudo se resolve ali, na hora, no palco, diante do microfone e da plateia. 

O público, neste show, aliás, merece uma atenção à parte. Até mais: merece também aplausos. Visivelmente formada por muitos brasileiros, mas certamente também por suíços e outros estrangeiros, na maioria da Europa, a plateia se emociona e transmite essa emoção para o artista, que retribui, numa corrente de energia poucas vezes vista ou perceptível em discos ao vivo. João brincando de "quém quém" ao cantar "O Pato" ou sambando com a voz em "Sem Compromisso" não deixam mentir. Mas, principalmente, "Adeus América". O samba de Haroldo Barbosa, escrito para outro símbolo mundial do Brasil (o maior deles), Carmem Miranda, como uma declaração de amor ao Brasil após ela ser tachada pelos compatriotas invejosos de "voltar americanizada" dos Estados Unidos, aqui soa (e ainda mais aos brasileiros da plateia) como um canto de exílio, um canto de saudade da terra mater. “Não posso mais, que saudade do Brasil/ Ai que vontade que eu tenho de voltar/ Adeus América, essa terra é muito boa/ Mas não posso ficar porque/ O samba mandou me chamar”. É certamente o momento mais emocionante do show, como talvez nenhuma outra gravação ao vivo de João neste ou noutros discos.

Há também a apropriação "mpbística" do jazz standart italiano "Estate", presente no memorável LP "Amoroso", de 1977, e, claro, a reverência à bossa nova. Mais precisamente, a Tom Jobim. Do maestro, João toca quatro das 15 do set-list: "Retrato em Branco e Preto", dois ícones da primeira fase bossanovista, "Garota de Ipanema" e "Desafinado"; e uma imbatível "A Felicidade", menos recorrente no repertório de João e até por isso ainda mais impactante.

Outro maestro, no entanto, é exaltado por João na histórica apresentação no 19º Festival de Montreux. Cabe ao legado de Ary Barroso fechar o show com três faixas: "Morena Boca de Ouro" e outras dois símbolos de brasilidade em música: as ufanistas "Isto Aqui o que É?" e aquele que é considerado o segundo hino da nação, "Aquarela do Brasil", numa execução de quase 10 minutos. João, que a havia protagonizado no disco "Brasil", de quatro anos antes e quando teve a companhia de Caetano e Gil para interpretá-la, encara aqui a empreitada sozinho. Coisa só de quem tem a mesma envergadura da própria música que entoa.

Prestes a completar 40 anos de seu lançamento, “Live at The 19th Montreux Jazz Festival” guarda a primazia de ser a primeira gravação fiel de um show de João Gilberto, abrindo caminho para vários outros que viriam nos anos seguinte e dos quais destacam-se pelo menos dois: “João Gilberto In Tokyo”, de 2004, e “Live At Umbria Jazz”, de 2002. No entanto, este registro evidentemente possui uma aura e uma importância especial. Mesmo que na maioria dos discos, inclusive os de estúdio, João fosse captado “just in time” pelas mesas de som, no palco não há o que editar ou refazer. É aquele pulsar orgânico e indelével. E no caso de João, isso vale mais do que o silêncio, como diz Caetano. 

E dizer que João levou mais de duas décadas para deixar essa óbvia joia da cultura brasileira para a posteridade... Às vezes, a obviedade é mesmo genial.

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Originalmente lançado no Brasil e no Japão em 1985 como LP duplo de 15 faixas, "Live At The 19th Montreux Jazz Festival", na versão norte-americana, de um ano após, chamou-se apenas de "Live In Montreux" e contendo 13 músicas: sem "Tim Tim Por Tim Tim", "Desafinado" e "O Pato" e tendo acrescida "Rosa Morena" (Dorival Caymmi).

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FAIXAS:
1. “Tim Tim Por Tim Tim” (Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa) - 3:38
2. “Preconceito” (Marino Pinto, Wilson Batista) - 2:25
3. “Sem Compromisso” (Geraldo Pereira, Nelson Trigueira) - 4:05
4. “Menino Do Rio” (Caetano Veloso) - 3:45
5. “Retrato Em Branco e Preto (Antonio Carlos Jobim, Chico Buarque) - 6:36
6. “Pra Que Discutir Com Madame?” (Haroldo Barbosa, Janet de Almeida) - 6:25
7. “Garota De Ipanema” (Antonio Carlos Jobim, Vinicius De Moraes) - 3:42
8. “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim, Newton Mendonça) - 4:53
9. “O Pato” (Jaime SIlva, Neuza Teixeira) - 6:08
10. “Adeus América” (Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa) - 6:50
11. “Estate” (Bruno Brighetti, Bruno Martino) - 5:18
12. “Morena Boca de Ouro” ((Ary Barroso) - 5:37
13. “A Felicidade” (Antonio Carlos Jobim, Vinicius De Moraes) - 5:10
14. “Isto Aqui, O Que É? (Sandália de Prata”) (Ary Barroso) - 6:43
15. “Aquarela Do Brasil” (Ary Barroso) – 9:05



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Gilberto Gil - "Gilberto Gil ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca" (1974)

 

“A experiência do exílio universaliza o caráter da música de Gil, mas também serve para reabrasileirá-la”
Marcelo Fróes, pesquisador musical

O forçado período de exílio, no final dos anos 60/início dos 70, em razão da perseguição do Governo Militar brasileiro, fez bem a Gilberto Gil. A afirmação soa cruel humanisticamente falando, mas, em contrapartida, é impossível dissociar a música do compositor e cantor baiano daquilo que ele produziu em sua fase pós-tropicalista, justamente a que coincide com aquele momento. Sondar, hoje, a música de Gil sem esta intervenção temporal, num continuum que ligue “Batmakumba” diretamente a “Realce”, é impensável. Londres, com seu frio e neblina, mas também com seus “lindos verdes campos” que o oportunizaram a Swinging London e a lisergia, marcou-se de vez na alma de Gil. E isso por um simples motivo: a cosmopolita Londres em muito combinava com a visão holística deste artista.

Os sinais do Velho Mundo ficam evidentes já em “Expresso 2222”, de 1972, seja na influência beatle, seja, por outro lado, no re-enraizamento, espécie de contramovimento em direção às origens de quem tanto tempo ficou distante de sua terra. Mas outras sensibilidades também puderam ser extraídas daquela inevitável influência europeia, que é o próprio cosmopolitismo. E Gil, hábil, traduziu isso em sonoridade. Jards Macalé já havia dado os primeiros passos desde seu compacto "Só Morto", de 1970, e, posteriormente, ao instaurá-la em “Transa”, que Caetano Veloso, companheiro de Tropicália e de exílio de Gil, gravaria na mesma Londres antes de voltar ao Brasil. Era uma sonoridade elétrica (ainda sem teclados), mas sem peso e distorções, que mesclava o rock aos sons brasileiros numa medida que, hegemonizada, soava como um novo jazz fusion. Um fusion essencialmente brasileiro. Não o que Airto Moreira, Hermeto Pascoal ou Eumir Deodato vinham praticando nos Estados Unidos. Era um jazz brasileiro, mas tão brasileiro, que é fácil se esquivar de chamar de jazz, ao passo que é difícil classificar somente de MPB.

O sumo desta sonoridade universalista está no disco ao vivo que Gil gravava há 50 anos com uma afiada banda num único e histórico final de semana de outubro de 1974 no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o conhecido Tuca – palco de diversas combativas apresentações no período da Ditadura. Gil estava num momento transitório entre o disco “Expresso 2222”, que marcou sua volta ao Brasil, e um grande projeto, a trilogia “Re” (“Refazenda”/"Refavela”/”Realce”) a qual tomaria seus próximos três anos a partir de 1975. Além disso, Gil engavetara um disco de estúdio previsto para aquela época e para o qual havia composto várias canções, renomeado “Cidade do Salvador” quando lançado posteriormente na caixa “Ensaio Geral”, de 1998, produzida pelo pesquisador musical Marcelo Froés. Nem por isso, o artista se desconectara de suas próprias buscas sonoras. Pelo contrário. Absorvido pelos estímulos da música pop e com o que captara no período internacional, Gil realiza este show onde exercita o que havia de mais arrojado em termos de arranjo, melodia, harmonia e performance de sua época. Era o Gil tropicalista, novamente, dando as cartas da “novidade que veio dar na praia” na música brasileira. 

“João Sabino”, faixa inicial, é exemplar. Inédita, assim como todas as outras cinco que compõem o disco. Ou seja: embora se trate da gravação de uma apresentação, sua estrutura é de um álbum totalmente novo, com faixas inéditas ou nunca tocadas por Gil, e não de versões ao vivo de temas conhecidos e/ou consagrados - tal como o próprio realizaria em diversos outros momentos da carreira, como os ao vivo "Refestança" (com Rita Lee, de 1980), e "Quanta Gente Veio Ver" (1998). Soma-se a isso a exímia execução, que dá a impressão de uma gravação tecnicamente perfeita como que engendrada num estúdio, da fantástica banda formada por: Gil, na voz, violão e arranjos; Aloísio Milanês, nos teclados; o "Som Imaginário” Frederiko, guitarra; Rubão Sabino, baixo elétrico; e Tutty Moreno, bateria. 

Afora isso, “João Sabino” – homenagem ao pai do baixista da banda, que está excelente na faixa – é um samba de mais de 11 min, repleto da variações e uma melodia com lances experimentais, que exige domínio dos músicos. Na letra, metalinguística, Gil equipara as “localidades” da cidade natal dos Sabino, a capixaba Cachoeiro do Itapemirim (“Pai do filho do Espirito Santo”) com religiosidade e das notas musicais (“Nessa localidade de lá/ Uma abertura de si/ Uma embocadura pra dó/ Sustenindo uma passagem pra ré/ Mi bemol/ (...) De mi pra fá/ Sustenindo, suspendendo/ Sustentando, ajudando o sol/ Nascer"”). E Gil o faz com muita improvisação no canto, incidentando passagens e brincando com as palavras e os vocalises, o que antecipa, até pela extensão do número, a grande jam que gravaria com Jorge Ben no ano seguinte no clássico “Gil & Jorge/Xangô Ogum”. Som eletrificado com alto poder de improvisação dos músicos, que sintetiza a sina bossa-novista, a tradição do samba e a influência nordestina às novas sonoridades pós-“Bitches Brew” e “A Bad Donato”. Um show.

É a vez da psicodélica “Abre o Olho”, espécie de diálogo consigo mesmo no espelho, em que Gil reflete algumas maluquices saborosas enquanto põe colírio nos olhos sob efeito da maconha. “Ele disse: ‘Abra o olho’/ Eu disse ‘aberto’, aí vi tudo longe/ Ele disse: ‘Perto’/ Eu disse: ‘Está certo’/ Ele disse: ‘Está tudinho errado’/ Eu falei: ‘Tá direito’”. Essa divagação toda para chegar na catártica (e sábia) frase do refrão: “Viva Pelé do pé preto/ Viva Zagalo da cabeça branca”. Seu violão e canto são tão intensos, sua performance é tão completa, que nem dá pra perceber que o resto da banda não está tocando.

Gravada originalmente pelo seu coautor, o amigo João Donato, no disco homônimo, “Lugar Comum” ganha aqui a única versão cantada pelo próprio Gil. Delicada e num arranjo redondo, tem a segurança dos músicos na retaguarda, entre eles Tutty, baterista dos revolucionários “Transa”, “Expresso 2222” e dos discos iniciais de Jards, entre outros. Destaque do repertório, talvez a mais sintética de todas da atmosfera empregada nesta apresentação, é “Menina Goiaba”, que bem poderia receber o subtítulo de “Pequena Sinfonia de São João”. São mais de 6 min em que Gil e banda conduzem o ouvinte em uma viagem ao Nordeste festivo e brejeiro, iniciando numa moda de viola, avançando para uma marchinha e finalizando com uma quadrilha num misto de rock e sertanejo com a formosa guitarra de Fredera. Linha melódica intrincada, mas deliciosa como uma guloseima junina, cheia de idas e vindas, transições, variações rítmicas e adornos. E que execução da banda! Jazz fusion brasileiríssimo. E para quem desistiu de lançar um álbum novo àquela época, Gil resolveu muito bem consigo mesmo a dicotomia quando diz na letra da música: “Andei também muito goiaba/ E o disco que eu prometi/ Não foi gravado, não”.

Como já havia feito (e voltaria a fazer inúmeras vezes na carreira), Gil versa Caetano com a magia que somente um irmão espiritual conseguiria. Assim como “Beira-Mar”, do seu trabalho de estreia, em 1967, agora é outra balada caetaneana trazida por Gil: “Sim, Foi Você”. Igualmente, cantada e tocada somente a voz e violão e numa sensibilidade elevada. Para fechar, outro número extenso e uma explosão de talento da banda em “Herói Das Estrelas”. Originalmente gravado pelo seu autor, Jorge Mautner – que o assina junto com o parceiro Nelson Jacobina – naquele mesmo ano num disco produzido por Gil, agora o tema recebe uma roupagem jazzística de dar inveja a qualquer compositor (ainda bem que Gil e Mautner são tão amigos). Rubão está simplesmente sensacional no baixo, assim como Tutty, com sua bateria permanentemente inventiva. Aloísio Milanês, igualmente, improvisa brilhantemente de cabo a rabo (de cometa). E o que falar do violão de Gil? Uma batuta tomada de suingue, de brasilidade, de africanidade. Perfeita para finalizar um show/disco impecável.

Quem escuta algumas das obras posteriores de Gil, talvez nem perceba o quanto este disco ao vivo teve influência. Nas duas versões de “Essa é pra Tocar no Rádio” (“Gil e Jorge” e “Refazenda”), é evidente o trato jazz que recebem, assim como “Ela”, “Lamento Sertanejo” (“Refazenda”, 1875), “Babá Alapalá”, “Samba do Avião” (“Refavela”, 1977) e “Minha Nega Na Janela” (“Antologia do Samba-Choro”, 1978), além da clara semelhança do conceito sonoro de todo “Gil e Jorge”. Gil só viraria a chave desta habilidosa condensação sonora quando fecha a trilogia "Re" no pop “Realce”, de 1978. Porém, não sem, meses antes, encerrar aquele ciclo com outro disco ao vivo, gravado no 12º Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. A mídia internacional entendia, enfim, que aquilo era, sim, jazz. Gil, assim, voltava à Europa de onde, no início daquela década, mesmo que forçadamente, precisou se refugiar e aprendeu a ser mais universal do que já era. Igual diz a sua “Back in Bahia”: “Como se ter ido fosse necessário para voltar”.

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A caixa “Ensaio Geral”, lançada em 1998, trouxe em “Ao Vivo no Tuca”, além das faixas do vinil oficial, outras cinco inéditas garimpadas em gravações das másters originais do mesmo show e outras de estúdio da época, somente voz e violão. “Dos Pés à Cabeça”, escrita para a voz de Maria Bethânia, foi registrada por ela no espetáculo “A Cena Muda”, de 1974. Já “O Compositor me Disse” foi para a voz de Elis Regina e gravada pela Pimentinha em “Elis”, também de 1974. Proibido pela Censura de apresentar músicas novas de sua própria autoria, Chico Buarque gravaria músicas de outros compositores, entre elas, “Copo Vazio”, de Gil, em “Sinal Fechado”, do mesmo ano. No espírito do álbum original, todas as extras são cantadas pela primeira vez na voz de Gil.

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FAIXAS:
1. “João Sabino” - 11:33
2. “Abra o Olho” - 4:50
3. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 4:50
4. “Menina Goiaba” - 6:50
5. “Sim, Foi Você” (Caetano Veloso) - 5:47
6. “Herói das Estrelas” (Jorge Mautner, Nelson Jacobina) - 6:01
Faixas bônus da versão em CD:
7. “Cibernética” - 7:45
8. “Dos Pés à Cabeça” - 4:27
9. “O Compositor me Disse” - 4:01
10. “Copo Vazio” - 6:39
11. “Dia de Festa” (Rubão Sabino) - 5:05
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde" (1977)

 

“Você gravava, vendia, corria atrás, ia pra rua. Fizemos três mil cópias e conseguimos vender todas. Mas agora, nesta era digital, esse disco ficou parado. Ele foi se valorizando com o tempo, o que é muito gratificante”. 
Danilo Caymmi

Danilo é o menos badalado entre os Caymmi. No que diz respeito a seu pai, Dorival, poucos se equiparam ao gênio deste Buda Nagô, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos. Seu irmão mais velho, Dori, gabaritado maestro de reconhecimento internacional, trabalhou com alguns dos mais prestigiados músicos do seu tempo, como os conterrâneos Tom Jobim, João Gilberto e Elis Regina e os estrangeiros Dionne Warwick, Quincy Jones e Toots Thielemans. Nana, a irmã, é nome inconteste entre as maiores vozes da MPB. Até mesmo a filha Alice, cultuada pelo público mais jovem, ganha mais holofotes do que ele. A figura modesta talvez explique. A mãe Stella Maris, mineira, sentenciou certa vez que, entre os filhos, Nana cantava, Dori arranjava e Danilo tocava flauta. Porém, Danilo é, certamente, muito mais do que uma retaguarda, visto que é o mais catalisador da família em termos musicais. Caçula, talvez justamente por ter vindo por último ele consiga recolher características de cada um: de Dorival, traz nas veias a sofisticação das canções praieiras; do irmão mais velho, a versatilidade e a musicalidade profunda; de Nana, o timbre inconfundível dos Caymmi e o apuro vocal; da filha, a modernidade musical intercambiada desde que ela estava no berço.

“Cheiro Verde”, seu álbum de estreia, de 1977, é um exemplo claro desta multiplicidade simbiótica de Danilo. Cantor, flautista, compositor e violonista, traz em sua música uma impressionante diversidade de estilos, que vão da bossa nova ao baião, passando pelo samba jazz e a soul. Com um time de grandes músicos, tal Cristóvão Bastos, Maurício Maestro e Fernando Laporace, o disco traz a mais alta qualidade melodia e harmonia quanto letrística e instrumental, ao nível do "alto escalão" da MPB, como Tom, Arthur Verocai, Ivan Lins, Waltel Branco, Antonio Adolfo, Tânia Maria, Edu Lobo. Ao nível dos Caymmi.

Afinal, Danilo, mesmo debutando como artista solo, não era nenhum novato. Flautista profissional desde os 16, o futuro arquiteto que abandonou a faculdade para seguir a vida musical já em 1968 participava do II Festival Internacional da Canção Popular. Levou o terceiro lugar com a clássica “Andança”, parceria com Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, defendida por Beth Carvalho. No ano seguinte, venceu o Festival de Juiz de Fora com a canção “Casaco Marrom”, parceria com Renato Corrêa e Gutemberg Guarabyra, interpretada por Evinha. Bastante próximo dos colegas mineiros, de quem tem forte influência musical, já havia integrado a banda de Tom, Joyce, Milton Nascimento, Som Imaginário, Martinho da Vila, Quarteto em Cy, entre outros, além de assinar, juntamente com Beto Guedes, Novelli e Toninho Horta, um dos melhores discos de toda a década de 70.

Em “Cheiro…”, portanto, Danilo chegava pronto como que perfumado para uma festa. A primeira nota do frasco, “Mineiro”, é exemplar nisso: bossa nova com dissonâncias e harmonia típicas dos autores de grande domínio composicional. A letra de Ronaldo Bastos é uma homenagem de dois cariocas aos amigos do Clube da Esquina: “Vou por aí levando um coração mineiro, pois é”. Ainda, as participações especiais de Airto Moreira na bateria, Helvius Vilela no piano e Gegê na percussão. Com Bastos, também assina “Codajás”, que Nana gravara um ano antes. De tom ao mesmo tempo blueseiro e sambístico, traz o belo canto de Danilo soltando agudos difíceis a qualquer cantor, ainda mais a alguém de uma família cujo timbre tende sempre ao barítono. Fora isso, Danilo a aperfeiçoa ainda mais com um jazzístico solo de flauta, que encerra o número.

Com a então esposa Ana Terra, excelente musicista carioca e responsável também pela produção, compõe maior parte do repertório, como o samba “Pé sem Cabeça”, típica música do período da ditadura no Brasil - gravada posteriormente, claro, pela combativa Elis. Com cara de tema romântico, na verdade, denuncia o regime e os horrores cometidos contra os opositores: “Você me fez sofrer/ Ninguém me faz sofrer assim/ O que era tanta beleza num pé sem cabeça você transformou”. É dos dois também a brejeira e lúdica “Juliana”, de acordes jobinianos, e a subsequente “Aperta Outro”, samba cheio de suingue com toque do trombone de Edson Maciel e o baixo do parceiro Novelli. 

Ainda mais gingada é “Racha Cartola”, ode à boemia mas, igualmente, à preocupação do boêmio quando volta para casa. “Como explicar?”, pergunta-se lembrando que terá de encarar a esposa esperando-o irritada. A sincopada “Botina”, dele e de outro mineiro, Nelson Ângelo, traz novamente a atmosfera de Minas (“Velha porteira, cidade interior/ Uma voz de lavanderia, um batuque e um sabor”), referenciando, mais uma vez - além do próprio coautor -, à turma liderada por Milton Nascimento. Aliás, o gênio de Três Pontas empresta sua voz inconfundível em “Lua Do Meio-Dia”, outra com Ana e das mais belas e engenhosas melodias do disco, com sua estrutura dissonante e complexas divisões.

Em época de Abertura Política, mas de manutenção da repressão, Danilo ousa e encaminha o final do álbum com mais um tema bastante provocativo: “Vivo ou Morto”. Dele e de João Carlos Pádua, não tem como não relacionar os versos deste baião tristonho às mortes de presos políticos promovidas nos Anos de Chumbo: “Debaixo das 9 pedras/ Ele vive muito bem/… Ele respira e fala pelas bocas do inferno/…Debaixo das 9 bocas/ Ele nem mesmo se cala/ Debaixo das 9 botas/ Ele dá voltas na sala”. Para encerrar mesmo, então, a sinestésica faixa-título, quinta dele com Ana entre as 10 faixas de todo o trabalho. E que bela canção! Com a atmosfera da música “ecológica” que Tom inauguraria no início dos anos 70, quando começou a se voltar às questões do Planeta, Danilo parecia antever sua entrada anos depois, em 1984, na Banda Nova, conjunto que passaria a acompanhar o Maestro Soberano até o final de sua vida.

Desde então, Danilo seguiria intercalando uma afirmada carreira solo com participações como instrumentista em trabalhos de outros, reuniões com a família no palco e gravações e shows na Banda Nova. Lançou 10 álbuns como front man, alcançando, em 1990, grande sucesso com “O Bem e o Mal”, tema da minissérie “Riacho Doce”, da Globo. No entanto, “Cheiro Verde” permanece um marco na sua obra não apenas por ser o primeiro ato de um músico que soube aproveitar seu gene privilegiado, mas pela qualidade indiscutível que guarda até hoje. Tanto é que, lançado independentemente em 1977, teve, em 2002, sua tiragem licenciada na Inglaterra, tornando-se cult entre os jovens na Europa. Somente no ano passado, teve relançamento no Brasil para a alegria dos fãs e apreciadores. Pelo visto, esse aroma inconfundível e encantador não se dissipou mesmo tantos anos depois.

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FAIXAS:
1. “Mineiro” (Danilo Caymmi/ Ronaldo Bastos) - 3:25
2. “Pé Sem Cabeça” (Caymmi/ Ana Terra) - 2:45
3. “Codajás” (Caymmi/ Bastos) - 3:05
4. “Juliana” (Caymmi/ Terra) - 2:44
5. “Aperta Outro” (Caymmi/ Terra) - 2:54
6. “Racha Cartola” (Caymmi/ João Carlos Pádua) - 2:55
7. “Botina” (Caymmi/ Nelson Angelo) - 2:37
8. “Lua Do Meio-Dia” (Caymmi/ Terra) - 2:16
9. “Vivo Ou Morto” (Caymmi/ Pádua) - 3:07
10. “Cheiro Verde” (Caymmi/ Terra) - 4:15

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OUÇA O DISCO:

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde"


Daniel Rodrigues


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Música da Cabeça - Programa #364

 

1º de abril é dia da mentira? Pra quem diz que "não foi golpe", sim. Sem fake news, o MDC de hoje traz Isaac Hayes, João Gilberto, Lulu Santos, Rush e Tracy Chapman estão aí para comprovar. Ainda, um Cabeça dos Outros no quadro especial e, claro, os 60 anos do golpe militar. Pela verdade, o programa vai ao ar às 21h na verídica Rádio Elétrica. Produção, apresentação e "ditadura nunca mais": Daniel Rodrigues



segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Ivan Lins - "Modo Livre" (1974)

 

"Mas elas [as músicas] começaram a ficar mais políticas a partir de 1973, por aí, quando a gente sentiu mesmo a barra pesar com o Médici, e aí elas realmente assumiram o aspecto político. Até por uma questão pessoal mesmo, eu tive problemas, tive que fazer terapia, me revoltei contra a família, contra o governo, contra TV Globo e editoras, gravadoras." 
Ivan Lins

Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois. 

Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.

Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali. 

O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu. 

Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos. 

Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.

Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!

Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes. 

“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.

“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.

O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.

Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.

Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito. 

Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins. 

O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado. 

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FAIXAS:
1. "Rei do Carnaval" (Ivan Lins, Paulo César Pinheiro) - 2:31
2. "Deixa Eu Dizer" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:12
3. "Avarandado" (Caetano Veloso) - 3:15
4. "Tens (Calmaria)" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:03
5. "Não Tem Perdão" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:45
6. "Abre Alas" (Ivan Lins, Vitor Martins) - 3:12
7. "Chega" (Ivan Lins) - 3:27
8. "Espero" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:23
9. "Essa Maré" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:14
10. "Desejo" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:19
11. Potpourri - 2:32
11a. "General Da Banda" (José Alcides, Sátiro de Melo, Tancredo Silva)
11b. "A Fonte Secou” (Marcléo, Monsueto Menezes, Tufic Lauar)
11c. "Recordar" (Adolfo Macedo, Aldacir Louro, Aluisio Marins)

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OUÇA O DISCO:
Ivan Lins - "Modo Livre"


Daniel Rodrigues