Coutinho e seu "Cabra Marcado para Morrer", 1º lugar absoluto entre os docs brasileiros
Venho pensando há meses (quiçá, anos) em fazer alguma lista para o blog sobre documentários brasileiros. Além de gostar muito do que é produzido no gênero no Brasil, principalmente a partir da década de 60, chama-me a atenção não apenas a variedade de temas, estéticas, narrativas e estilos – coisa que um país como o Brasil é capaz de fornecer mais do que muitos outros – como também a riqueza de recortes possíveis de serem feitos. Eu fiquei naquelas de montar uma lista dos “meus melhores documentários dos anos 2000”, “melhores documentários brasileiros sobre música”, “melhores cinebiografias”, melhor isso, melhor aquilo e... nunca pus no papel de fato.
Tanto posterguei que, com toda a sumidade que lhe é conferida, a Abracine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, enfim, listou os 100 melhores documentários brasileiros de todos os tempos. A mesma comporá um livro que a entidade lançará ainda este ano a exemplo do já referencial “100 Melhores Filmes Brasileiros”, editado em 2016. Fim de papo.
Nem tão "fim" assim para um cinéfilo que adora criar as suas próprias listas como eu. Muito bem escolhida, a seleção da Abracine acerta praticamente em tudo. Vários eu, confesso, não assisti, e sei que são lacunas importantes. Mas posso assegurar, igualmente, de que com aqueles que vi consigo satisfatoriamente montar também uma lista representativa. Por que, agora, claro, o desafio ficou óbvio: expor os meus melhores de todos os tempos. Tomei vergonha na cara, trocando em miúdos. Entretanto, para não encompridar demasiadamente, faço aqui uma lista dos meus 20 preferidos e não da centena cheia embora o pudesse, destacando, a título de comparação e informação, os 20 primeiros da listagem da associação.
Hirszman aparece com 3 títulos
Interessante vislumbrar que há vários títulos de 2000 em diante (50% dos meus), mostrando o quanto o gênero documentário evoluiu no Brasil, tornando-se, aliás, uma das principais fontes do cinema brasileiro pós-Retomada. A temática social e política, não raro pela via da corajosa denúncia, é massiva, norte para 18 dos 34 títulos citados ao todo. Outro ponto legal de se constatar é a presença de grandes cineastas, como Eduardo Coutinho, documentarista por natureza e dono do 1º lugar em ambas, mas também de Glauber Rocha, Leon Hirzsman, Joaquim Pedro de Andrade e João Batista de Andrade, diretores que sempre se impuseram, além dos seus filmes de ficção, o ofício quase cívico do registro documental.
Ainda, vale a menção ao gaúcho Jorge Furtado, que aparece tanto em minha lista quanto na outra com o referencial “Ilha das Flores”, curta presente em diferentes rankings em todo o mundo, como no livro “1001 Filmes para se Assistir Antes de Morrer” ou entre os próprios 100 melhores filmes brasileiros pela Abracine. Dele, ainda seleciono “Esta não É a sua Vida”, que pela associação ficou em 87º lugar.
Os meus selecionados:
1 – “Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984)
2 – “Edifício Master”, Eduardo Coutinho (2002)
3 – “Estamira”, Marcos Prado (2006)
4 – “Santiago”, João Moreira Salles (2007)
5 – “Garrincha, Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
6 – “Di”, Glauber Rocha (1977)
7 – “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)
8 – “Aruanda”, Linduarte Moreira (1960)
9 - “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2005)
10 – “Janelas da Alma”, João Jardim e Walter Carvalho (2001)
11 – “Partido Alto”, Leon Hirszman (1982)
12 – “Vlado – 30 Anos Depois”, Joaquim Batista de Andrade (2005)
13 – “O Mistério do Samba”, Carolina Jabor e Lula Buarque (2008)
Filme sobre a Velha Guarda da Portela: preferência minha
14 - “Iracema – Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna
(1976)
15 - “Esta não é a Sua Vida”, Jorge Furtado (1991)
16 - “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, Paulo Sacramento (2002)
17 – “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor
D´Alincourt (2013)
18 - “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa e Raphael Alvarez (2010)
19 – “Greve!”, João Batista de Andrade (1979)
20 – “Cidadão Boilensen”,Chaim Litewski (2009) e “Ônibus 174”, José Padilha
(2002)
Os selecionados da Abracine:
1. “Cabra Marcado para Morrer”
2. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
3. “Santiago”
4. “Edifício Master”
5. “Serras da Desordem”, de Andrea Tonacci (2006)
6. “Ilha das Flores”
7. “Notícias de uma Guerra Particular”, João Moreira Salles (1999)
8. “Ônibus 174”, José Padilha (2002)
9. “Di”
10. “Aruanda”
11. “O Prisioneiro da Grade de Ferro”
12. “O País de São Saruê”, Vladmir Carvalho (1979)
13. “Viramundo”, Geraldo Sarno (1965)
14. “ABC da Greve”, Leon Hirzsman (1979-80)
15. “Jango”, Sílvio Tendler (1984)
16. “Garrincha, Alegria do Povo”
Clássico de Joaquim Pedro, presente nas duas listas
17. “Imagens do Inconsciente”, Leon Hirszman (1984)
Tem momentos que é realmente difícil entender mas, quer saber,
simplesmente aproveite.
Se você já conhece Glauber Rocha, assista esse filme. Ah! Não conhece? Então assista o filme. Uma obra totalmente experimental, seu único filme verdadeiramente marginal (segundo o próprio diretor, mas não é, tá pessoal?) mas sem perder o "selo Glauber de qualidade".
São três personagens dentro de uma ação violenta. Acabei a sinopse, sim é isso. Não acredita? Veja o filme, já falei. "Câncer" não tem história embora tenha um começo e um fim, não temos um meio que as ligue. O grande objetivo do filme é experimentar, questionar o cinema e o espectador. Quase todo o filme você fica com a sensação de que viu duas pessoas conversando e pegou o assunto no meio e acaba ficando perdido, só que o longa faz questão que você fique perdido.
Se você leu os textos anteriores, desculpe mas vou repetir, mais uma vez temos uma obra com uma qualidade de imagem e áudio horríveis. Em alguns momentos até mesmo é desconfortante.
O que nos mantém no filme são as fortes atuações. Podemos ver claramente que é tudo improviso mas mesmo assim todo mundo se vira muito bem. Para mostrar como os atores estão bem, digo que temos inúmeros planos-sequência cheios de diálogos e todos são sustentados magistralmente pelos atores. Algumas sequências são fabulosas, com diálogos bem fortes, críticas políticas e principalmente ao preconceito social e racial.
Uma obra única. Pode parecer um pouco diferente do que você já viu do diretor em termos técnicos mas os questionamentos políticos, a maneira ousada de se fazer cinema está lá. Acredito que esta seja a síntese perfeita da expressão “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.
A sequência na praia é excelente. O diálogo, a maneira como é filmada. Amigos, isso é cinema também.
Enfim, chegamos à
terceira e última listagem de filmes brasileiros essenciais para se
entender o nosso cinema no final do século XX, terminando com a
safra dos 80. Mais do que para com os anos 60 e 70, a década de 80
foi a que mais tive dificuldade de escolher entre tantos títulos que
considero fundamentais. Talvez pelo fato de, dos anos 60,
embrionários e revolucionários, haver mais clareza quanto ao que
hoje é tido como essencial, bem como pela até injusta comparação
com os sofridos e minguados anos 70. O fato é que a produção dos
80 vem justificar, justamente, o decréscimo quali e quantitativo da
sua década anterior. Tanto é verdade que, com os reflexos visíveis
da Abertura Política e já se enxergando a tão sonhada democracia
não apenas como uma miragem, os cineastas brasileiros – mesmo com
a menos rígida mas ainda existente censura – passam a ter uma até
então inédita estrutura através de verba do próprio Governo via
Embrafilme.
Foi aí, então, que
os cineastas daqui mostraram o quanto são, de fato, brasileiros. Se
já haviam conseguido, nos 60 e 70, realizações memoráveis sem uma
Atlântida ou Vera Cruz por trás, quando tiveram um tantinho mais
fizeram “chover pra cima”. Desfalcados a maior parte da década
da tempestuosidade de ideias de Glauber Rocha, falecido em 81, além
de Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, também vitimados cedo,
outros cabeças do cinema nacional avançaram em temática, nível
técnico, concepção e apelo com o público. Ironicamente,
entretanto, se os 80 justificaram a baixa dos 70, também herdaram o
inevitável: justo na década que talvez melhor se tenha produzido
para as massas até então, recaiu-lhes a pecha de cinema malfeito e
sem qualidade, motivado, principalmente, pela herança das
famigeradas pornochanchadas, naturalmente desvalorizadas com o
declínio do discurso do Governo Militar – estigma do qual o cinema
nacional tenta se livrar até hoje.
Para além das
comparações, a diversidade do cinema nacional dos 80 é grande. As
abordagens vão desde cinebiografias (pouco vistas até então),
felizes adaptações do teatro para as telas (finalmente!), avanço
do documentário, início da descentralização da produção eixo
Rio-São Paulo e, principalmente, uma maior liberdade de expressão.
Sem o fantasma constante das torturas e perseguições, as histórias
tocavam agora direto nas feridas da ditadura. “Nos nervos, nos
fios”. Ainda deu tempo, inclusive, de tanto Glauber quanto Leon
produzirem as talvez obras-primas de ambos. Diretores surgiam; uns,
despontavam; outros, afirmavam-se. Nesse contexto, sobraram títulos
que, por restringirmos a 20, não puderam entrar na lista, mas que
merecem menção: “Barrela”, “Cidade Oculta”, “A Dama do
Cine Shangai”, “Quilombo”, “Um Trem Pras Estrelas”,
“Gabriela”, “Índia, a Filha do Sol”, “O Romance da
Empregada”, “Inocência”, sem falar nas produções televisivas
de Walter Avancini. Mas, com esses 20 não tem erro: só filmaços.
1 - “A Idade da
Terra”, Glauber Rocha (80) – Poesia total. O último e
criticado filme de Glauber, fábula sobre as possíveis vidas e
mortes de Cristo num Brasil moderno, pode ser visto até como uma
metáfora visionária da morte do cineasta, que, entristecido com o
Brasil e com a recepção a seu filme, sucumbiu um ano depois de
lançá-lo. Esqueça os detratores: “A Idade...” é grande,
potente, cáustico, catártico, altamente filosófico. Um dia será
devidamente reconhecido.
2 - “Os 7
Gatinhos”, Neville D’Almeida (80) – Neville é daqueles
cineastas da “elite intelectual carioca” que só fala besteira e
produz coisas intragáveis e ininteligíveis, mas esse é um acerto
inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no
roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma
tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da
sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor
Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos
“caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste
longa referencial.
3 -“O
Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (80) – Outra feliz adaptação
de peça, outra feliz adaptação de Nelson Rodrigues. Essa, no
entanto, deixando de lado a linguagem metafórica e fantástica de
“Os 7 Gatinhos”, investe numa história contada com rigor e
direção segura, apoiada pelas ótimas atuações de todos: Ney,
Tarcisão, Daniel, Torloni, Lídia. Daqueles filmes que, se está
passando na TV, não se fixe por 15 segundos, pois senão acabarás
terminando de assisti-lo inevitavelmente.
4
- “Pixote, A Lei do Mais Fraco”,
Hector Babenco (80) – Babenco chega à maturidade de seu cinema e
faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia.
Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico,
trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a
desassitência político-social às crianças e a violência urbana.
O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele
mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis
mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor
do New
York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é
considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.
5 - “Eles não
Usam Black Tie”, Leon Hirszman (81) – Como um “Batalha de
Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura
com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para
o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma
greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade
da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia,
retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio
Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme
lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de
58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.
6 - “Sargento
Getúlio”, Hermano Penna (81) – Pouco lembrado, mas talvez o
melhor filme nacional da década. Adaptação do romance de João
Ubaldo, dá ares de tragédia shakesperiana à história em plenos
sertão e Ditadura Militar. Crítico, poético e altamente literário,
sem deixar o aspecto fílmico de lado, haja vista a fotografia,
cenografia e a arte primorosos. E o que dizer de Lima Duarte, Melhor
Ator em Gramado, Havana e APCA? Ponha sua atuação entre as 20
maiores do cinema mundial sem pestanejar. Ainda levou Melhor Filme e
Crítica em Gramado.
7 - “O Homem
que Virou Suco”, João Batista de Andrade (81) – A forte
atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e
Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e
“Morte e Vida Severina”, leva o filme conta a história do poeta
popular, o nordestino Deraldo, quer tenta viver em São Paulo de sua
arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas
raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor
Filme em Moscou e Nevers.
8 - “Bar
Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (82) – Poético
e divertido, “Bar...” é o típico filme do novo Brasil que se
construía com a Abertura, o que significava transformações
irrefreáveis, como o avanço da modernidade e a morte da antiga
boemia poética. Junto com a companhia Asdrúbal Trouxe o Trambone,
lançou toda a geração de atores que viriam a desembocar na TV
Pirata e afins e no cinema que se constituiu no Brasil na
pós-retomada. Cenas memoráveis, atuações impecáveis, diálogos
idem. Música-tema de Caetano com Gal Costa. Vários prêmios em
Gramado. Uma joia.
9 - “Pra
Frente, Brasil”, Roberto Faria (82) – Tijolaço na cara da
ditadura, que, embora mais branda, ainda se mantinha no governo
Figueiredo. Corajoso e sem dó, evidencia a desumanidade do regime
militar ao contar a história de um homem confundido com um
“subversivo” e que é dura e aleatoriamente torturado, fazendo um
paralelo com o clima festivo da Copa de 70. Primeiramente proibido
pela censura, depois de liberado arrebatou Gramado (Filme e Edição)
e levou prêmio em Berlim, entre outras premiações e indicações.
10 -“Nunca
Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (84) – O letreiro inicial
diz tudo, quando o título do filme se constrói de forma a se
entender “Tão Felizes Nunca Fomos”. Estocada forte na Ditadura,
rodado no último ano do Governo Militar, conta a história de um
filho de um misterioso militante político que é retirado de um
colégio interno para viver temporariamente num moderno e entediante
apartamento. Alto nível técnico. Arrebatou Brasília e prêmio da
Crítica em Gramado.
11 - “Verdes
Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (84) – O cinema
gaúcho, encabeçado pela galera da Casa de Cinema, começava nos 80
a mostrar suas qualidades: roteiros tratados literariamente, ares de
cult movie europeu, técnicos competentes e sotaque diferente do
“carioquês” ou “paulistês” que todos eram acostumados a
ouvir no cinema nacional. Um sopro de criatividade que revolucionaria
o audiovisual brasileiro a partir dos anos 90. Tema musical clássico
de Nei Lisboa.
12 - ”Cabra
Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (84) – Mestre do
documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando
parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero,
é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo
governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro
Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo
na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França,
Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.
13 - “Memórias
do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (84) – Prova de que
Nelson Pereira não tinha “perdido a mão” depois de erros e
acertos nos anos 70, se debruça novamente sobre Graciliano Ramos,
mas desta vez não como fizera com seu grande romance, “Vidas
Secas”, mas sobre o próprio escritor quando de sua prisão pelo
Governo Vargas. Um épico que ganhou prêmio da crítica em Cannes.
14 - “A Hora da
Estrela”, Suzana Amaral (85) – Exemplo de como se fazer um
filme pequeno, com baixo orçamento, mas de muito, muito esmero de
roteiro (baseado no forte texto de Clarice Lispector) e cenografia.
Cartaxo interpreta a inocente Macabéa, noutra atuação espetacular
dos anos 80 no cinema mundial, que a fez ganhar Urso de Prata em
Berlim, onde a diretora também ganhou prêmio da crítica. O filme
ainda levou tudo no Festival de Brasília.
15 -“O
Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (85) – Uma história
improvável em uma produção brasileiro-americana ainda mais
improvável de dar certo. Mas Babenco, talentoso e sensível, amarra
tudo com maestria. De roteiro primoroso, é mais uma pungente crítica
ao Governo Militar e que tem nas atuações dos estrangeiros John
Hurt e Raul Julia e na dos brasileiros, Lewgoy, Sônia Braga e Milton
Gonçalves sua base. Cannes e Oscar de Ator para Hurt, mas concorreu
também a Filme, Direção e Roteiro na Academia e a Palma de Ouro.
16 - “O Homem
da Capa Preta”, Sérgio Rezende (86) – Na sua longa
filmografia, Rezende se especializou em rodar temas ligados à
história do Brasil. Porém o seu maior acerto é justamente o
primeiro com esta temática. Sobre o controverso político de Duque
de Caxias, Tenório Cavalcanti (Wilker, incrível), é um exemplo a
se seguir de cinebiografias, as quais hoje tanto se fazem mas que
resvalam na superficialidade. Grande vencedor de Gramado.
17 - “O Grande
Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (86) – Das melhores comédias
do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”,
direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que
sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães,
Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo
deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme
mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante.
Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e
EUA.
18 - “Ópera do
Malandro”, Ruy Guerra (86) – Ruy é o cara que sempre
produziu com alto padrão de qualidade desde que surgiu, nos anos 60.
Em “Ópera...”, coprodução da Embrafilme com a França, ele
eleva ainda mais o nível. Numa adaptação da peça de Chico Buarque
(por sua vez, baseada em Brecht e Gay), ele se vale do apoio do amigo
e parceiro não só para os maravilhosos temas musicais como até
para os diálogos. Tiro certeiro. Musical que não te cansa, pois
integra tanto a cenografia às canções que todos os atores se saem
bem cantando.
19 - “Ele, O
Boto”, Walter Lima Jr, (87) – Lenda popular e realidade se
misturam nessa fábula contada com muita poesia sobre a beleza do
imaginário e da sexualidade feminino, tema que Lima Jr. recuperaria
10 anos depois em “A Ostra e o Vento”. Dos primeiros filmes
brasileiros que me arrebataram. Nunca me esqueci da lindeza da
fotografia das cenas noturnas, com a claridade (muito bem
fotografada) da lua na praia. Outra ótima trilha de Tiso.
20 - “Faca de
Dois Gumes”, Murilo Salles (89) – Terminando a década,
Murilo acerta a mão em cheio de novo, desta vez adaptando
Best-seller de Sabino. O resultado é um drama policial potente e não
menos crítico no que se refere ao sistema. Atuações memoráveis de
José Lewgoy, Pedro Vasconcelos e Paulo José, principalmente.
Direção, Fotografia e prêmios técnicos em Gramado, além de Filme
em Natal e Rio.
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Embora goste menos
desses títulos ou até não goste de alguns, acho justo, por uma
questão jornalística e histórica, ao menos citá-los, pois cada um
tem seu grau de importância dentro do período dos anos 60, 70 e 80
que abordamos:
60: “Macunaíma”
(Joaquim Pedro, 69); “Cara a Cara” (Bressane, 67); “A Falecida”
(Leon, 65); “Porto das Caixas” (Saraceni, 62); “Bahia de Todos
os Santos” (Triguerinho, 60); “A Grande Feira” (Pires, 61); “A
Grande Cidade” (Cacá, 66)
Outro
dia, logo após postar no Facebook que havia revisto um dos meus
filmes favoritos da cinematografia nacional, “Bye Bye Brasil”
(sobre o qual comentarei melhor em um próximo post), surtiram, como
geralmente ocorre, alguns comentários. Na ocasião, entretanto, um
dos que comentou foi meu primo e colaborador do ClyBlog (especialmente para da seção Claquete) Vagner Rodrigues. Amante de cinema, ele revelou não apenas querer conhecer o filme em questão
quanto se aprofundar mais no cinema brasileiro das décadas de 60, 70
e 80.
Dispus-me,
então, a elencar para ele títulos que dessem um panorama da
produção de cada década no combalido e combativo cinema no Brasil.
Até aí, nada incomum, considerando que gosto de compartilhar
conhecimento sempre que posso e o considero suficiente para tal. O
que eu mesmo não esperava era que, ao comentar brevemente cada filme
somente de forma a justificar ao Vágner o porquê de sua presença
numa classificação tão seleta, fui me empolgando não apenas com
cada anotação, como, principalmente, com a seleção em si. Tanto
que, somando-se os três períodos, cheguei a 55 títulos!
Afora
a trabalheira prazerosa que sei que dei ao meu primo, acabaram
surgindo três listas bem interessantes que dão a dimensão da
qualidade, importância, versatilidade e profundidade artística,
estilística, sociológica e política do cinema brasileiro em cada
uma destas décadas, sem dúvida as melhores em nível qualitativo em
toda a história dessa arte no Brasil (e olha que tem como
concorrentes os fortes anos 50 e a primeira década do séc. XXI). Ao
mesmo tempo, juntos, dão uma mostra bem real do quanto já foi muito
mais difícil fazer cinema no Brasil, tanto pela questão técnica
(produções quase sem recurso, tecnologia defasada e falta de mão
de obra) quanto, principalmente nos 60 e 70, pelo cenário político,
tendo em vista que muitos desses filmes – mesmo os corajosamente
denunciadores – sofreram com a censura do governo militar antes,
durante ou depois de lançados.
Comecemos,
então, com a melhor de todas: a década de 60, marcada pelo boom do
Cinema Novo – que revelou os gênios Glauber Rocha e Julio
Bressane, mestres como Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá
Diegues e técnicos de primeira linha como Dib Lufti e Eduardo
Escorel – mas que presenciou, tanto quanto, obras memoráveis não
necessariamente ligadas ao movimento. Enfim, uma seleção de 20
títulos com seus respectivos diretores e em ordem cronológica de
ano que me deram muito trabalho para escolher, mas que dão uma ideia
legal da produção da época pelo filtro daquilo que gosto e
acredito como arte – a sétima, neste caso.
1 - "O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (60) – Com
absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito
do início a fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição,
cenografia. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo
Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que
venceu Antonioni, Pasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.
2 –
“Barravento”, Glauber Rocha (62) – Primeiro filme do
Glauber, coloca-se num ponto entre o Neo-Realismo e o Cinema Novo.
Extremamente poético, é o filme que melhor retrata o universo
místico do candomblé e da vida dos pescadores do interior, aqueles
que raramente temos acesso no mundo urbano. Venceu prêmio na
República Checa e tem montagem do Nelson Pereira, quer mais?
3 -
“Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (62) – Outro
daqueles filmes essenciais. O Roberto Faria sempre fez filmes com
arte e apelo popular. Esse é bem assim: com uma cara ainda de
Atlântida dos anos 40/50, mas com um pé no Neo-Realismo. Atuações
fantásticas do irmão Reginaldo Faria, do Grande Otelo e do ator
principal, Eliezer Gomes, como o inesquecível Tião Medonho.
4 -
“Os Cafajestes”, Ruy Guerra (62) – Clássico do Cinema
Novo, tem toda a questão da câmera na mão, do enquadramento
intuitivo, do aspecto documental, da inspiração estética e
temática na nouvelle vague. Fala sobre a decadência da
burguesia, pondo em evidência seu vazio e a falta de sentido. Daniel
Filho e Jece Valadão ótimos. E ainda tem o primeiro nu frontal da
história do cinema, e quando a Norma Bengell era tri gata!
5 -
“Cinco Vezes Favela”, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de
Andrade, Miguel Borges, Leon Hirzsman e Marcos Farias (62) – Filme
de episódios (5, obviamente), todos retratando algum aspecto das
então pouquíssimo retratadas favelas, papel de denúncia que o
Cinema Novo foi hiperimportante. O do Cacá, embora ainda cru em
termos de estilo, é bem interessante, pois fala sobre uma escola de
samba e os problemas da comunidade num dia de carnaval. “Couro de
Gato”, do Joaquim Pedro, chegou a ganhar Cannes. O de Leon também
é incrível, “Pedreira de São Diogo”, sobre trabalhadores da
pedreira que são obrigados a fazer implosões perto de uma
comunidade que iria para os ares. O do Miguel Borges, sobre um lixão,
é claramente uma das inspirações do “Lixo Extraordinário” e
com o recente britânico-brasileiro “Trash”.
6 –
“Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (63) - Genial.
Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia,
atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o
livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes que já vi, a o
sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e
Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.
8 -
“Os Fuzis”, Ruy Guerra (64) – Um soco no estômago. Sobre
um cerco militar que se forma numa cidade do sertão nordestino,
pondo à mostra toda a miséria social e moral gerada pelo Estado,
quase um presságio do derramamento de sangue que ocorreria com os
que combateriam a ditadura militar, então recém-iniciada. Dos
filmes preferidos de gente como Gustavo Spolidoro e Eduardo Valente,
foi Urso de Prata em Berlim em Direção.
9
– “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (64) – O Khouri
sempre teve o seu jeito de fazer cinema, abordando temas como a
depressão das altas classes, o vazio existencial, a anestesia da
vida moderna, e bastante inspirado em Antonioni. “Noite Vazia”,
no entanto, não é uma cópia brasileira de “A Noite”: é um
filme com personalidade e referencial. Trilha do Duprat, tá louco! E
concorreu a Palma de Ouro. Depois, o Khouri só se repetiu, mas esse
é demais.
10
- “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (65) –
Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel
principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do
Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas
que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima
pouco lembrada.
11
– “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (65) – Outro
clássico. Walmor Chagas tá ótimo. Na linha d’”Os Cafajestes”,
mas sob outra ótica, mostra a asfixia da classe média (paulistana,
no caso), imersa na impessoaliadade da vida industrial e maquinal da
grande cidade. Recebeu prêmios na Itália, México e São Paulo.
Muito atual.
12
– “O Desafio”, Paulo César Saraceni (65) – Parece
loucura, mas o diretor fez um filme sobre a ditadura em plena
ditadura. Haja peito! E mostra em detalhes a vida daqueles que não
se enquadram naquilo, a tristeza de ver seu país tomado sem lado
para correr. É um filme revoltado, corajoso e triste com todos os
elementos de Cinema Novo: câmera na mão, fotografia natural,
improvisação, tom documental, trilha sonora da MPB combativa da
época.
13
- “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (66) - Lindo.
Primeira ficção do Joaquim Pedro, que foi um contista de mão
cheia. Sobre um padre (o maravilhoso Paulo José) que se apaixona por
uma moça de família no interior. Claro que dá merda, né?
Fotografia PB rigorosa e pouco diálogo, que dá um clima sufocante à
história. Indicado ao Urso de Ouro em Berlim.
14
– “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (67) –
Filme de tribunal sobre uma história real de um julgamento injusto
ocorrido no interior de Minas na Era Vargas envolvendo os tais irmãos
da família Naves. Super bem narrado e fotografado. Alto nível.
Interpretações, idem. Interessante que, por se passar em uma época
antiga, o filme passou pela censura, é os militares burros não
perceberam ser uma baita crítica ao governo. Até torturas mostra...
Venceu Brasília (Roteiro e Atriz Coadjuvante) e foi indicado em
Moscou.
15
- "Terra em Transe", Glauber Rocha (67) - Pra muitos, o
melhor do Glauber. Também altamente referencial do que foi o Cinema
Novo e a visão dos artistas daquela época no Brasil. Algumas das
cenas – captadas pela câmera-personagem de Dib Lufti – e ícones
do movimento estão diretamente ligadas a essa filme. Premiado em
Cannes, Locarno e Havana. Não menos que genial.
16
- “O Dragão da Maldade Conta o Santo Guerreiro”, Glauber
Rocha (68) - Espécie de continuação do “Deus e o Diabo...”,
porém num outro conceito e contexto. Altamente Teatro de Arena e
Teatro Oficina, considero-o uma “ópera do Sertão” em cores, uma
tragédia shakesperiana nordestina. Texto incomparável. Filme amado
por Scorsese. Metafórico e forte. Melhor Direção em Cannes.
17
- “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins
(68) – O genial Mojica traz indiretamente seu célebre personagem,
que não aparece mas “representa” os 3 episódios que compõem o
longa. Sua melhor produção, que mostra o quanto ele, um dos maiores
mestres do terror trash mundial, ao lado de Argento, Carpenter e Bava, é capaz de fazer miséria com um pouquinho mais de recurso.
18
- “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (68) – Se
existe cinema marginal, é “O Bandido...”. Transgressor, louco,
efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos
são pouco pra definir. Grande vencedor do Festival de Brasília
daquele ano. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de
criatividade.
19
– “O Anjo Nasceu”, Julio Bressane (69) – Gênio do cinema
autoral da atualidade (haja vista que é vivo e segue produzindo),
junto com Sganzerla originou o chamado cinema “udigrudi”,
o underground brasileiro, que subvertia ainda mais a estética
e narrativa do que o Cinema Novo. Segundo filme dele, que, embora
tenha um pouco mais de história (o que o diretor praticamente
abandonou a partir do final dos 70), é tomado de simbologias e
metáforas, que, por sinal, embaralharam a cabeça dos militares, que
o proibiram sem saber porquê.
20
– “Brasil Ano 2000”, Walter Lima Jr. (69) – Fala-se muito
do “Macunaíma” (referencial certamente, mas um filme confuso),
mas esse do Walter Lima é exemplar no que seria um cinema
“tropicalista” e “antropofágico”. É um musical com trilha
original do Gilberto Gil cujos temas são muito bem integrados à
história, pois se trata de uma ficção surrealista inteligente e
engraçada. Muita criatividade com pouco.