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domingo, 2 de outubro de 2022

"Ensaio Sobre a Lucidez", de José Saramago - ed. Companhia das Letras (2004)

 



“...falemos abertamente sobre o que foi a nossa vida, se era vida aquilo, durante o tempo em que estivemos cegos, que os jornais recordem, que os escritores escrevam, que a televisão mostre as imagens da cidade tomadas depois de termos recuperado a visão, convençam-se as pessoas a falar dos males de toda a espécie que tiveram de suportar, falem dos mortos, dos desaparecidos, das ruínas, dos incêndios, do lixo, da podridão, e depois, quando tivermos arrancado os farrapos de falsa normalidade com que temos andado a querer tapar a chaga, diremos que a cegueira desses dias regressou sob uma nova forma, chamaremos a atenção da gente para o paralelo entre a brancura da cegueira de há quatro anos e o voto branco de agora...”
trecho de “Ensaio sobre a lucidez”




No clima das eleições, uma obra que é emblemática sobre o tema, na literatura mundial, e o faz de forma crítica e questionadora, é "Ensaio Sobre a Lucidez", de Nobel de Literatura, José Saramago. Variação, sequência, derivação de seu outro livro, "Ensaio sobre a Cegueira", que propunha uma epidemia na qual todos os contagiados passavam a enxergar tudo branco à sua frente, este, o da lucidez imagina como seria se a onda fosse de uma manifestação branca através do voto. No dia das eleições, em um local fictício, depois de uma hesitação geral em sair de casa para exercer seu direito de escolha, a população vai às urnas, quase no limite do horário para a votação e, sua esmagadora maioria, simplesmente, vota em branco. Nem esquerda, nem centro, nem direita, nem nulo. Em branco!
O inusitado da situação faz com que o governo remeta aos acontecimentos da passada cegueira branca e aí Saramago, então, recupera alguns dos personagens de sua trama anterior, especialmente a que o autor chama de Mulher do Médico, sem nome próprio, como todos os demais personagens. Símbolo de equilíbrio e lucidez, desde os acontecimentos da epidemia, na qual fora a única não infectada, a Mulher do Médico é alvo das investigações do governo que a supõe parte de uma possível conspiração iniciada  a partir desse ato rebelde nas urnas.
"Ensaio Sobre a Lucidez" é bom, claro. Tem todos os méritos literários de Saramago, seu texto corrido, bonito, de parágrafos longos, diálogos corridos, o espírito inconformista e questionador do autor, mas, em comparação com o da cegueira, é inferior e bem menos verossímil no que diz respeito às possíveis consequências de uma situação dessa natureza na vida real. Se o resultado de uma impotência física coletiva dessa ordem, no outro é uma revelação perturbadora do pior da natureza humana, o que muito provavelmente aconteceria, na situação do voto em branco, temos perseguições, ações policiais, um cerco à cidade, agentes infiltrados e coisas do tipo. Vale como alegoria, como exercício de imaginação, demonstração das fragilidades do Estado, de sua veia autoritária, mas se afasta do realismo chocante, de um espelho colocado à nossa frente, do "Ensaio Sobre Cegueira".
Na verdade, o Estado teria lá, seus artifícios, providências, uma nova data seria marcada, políticos oportunistas, de lado a lado, se aproveitariam exatamente disso para suas propagandas eleitoreiras e, no fim das contas, teríamos, em algum momento um resultado montante suficiente para validar a eleição. Seria, sim, legal ver a cara das autoridades diante de uma demonstração tão aberta de insatisfação e de reprovação do povo em relação a eles e suas atitudes. Mas não seria nada mais que isso... Ainda mais no Brasil que, com certeza, passaria longe de ser o lugar onde Saramago faria se passar a ação.
Mas vamos torcer que, pelo menos no dia de hoje, tenhamos um pouquinho de lucidez.



Cly Reis

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

"Sonata de Outono", de Ingmar Bergman (1978)


 

Não sei quanto a vocês, mas de minha parte, tem algumas coisas nas artes pelas quais eu tenho um certo respeito. Por mais ordinário que seja o ato de se ouvir uma música, ver um filme, ler um livro, para algumas obras ou seus autores, guardo uma certa reverência que, supostamente, segundo essa minha proteção, os resguarda de uma possível vulgarização. Por exemplo, quando estou escolhendo um disco pra ouvir, passando os dedos pelos LP's ou pela estante de CD's, se paro num "Sargent Pepper's...", num "Velvet Underground & Nico", num "Kind of Blue", não raro penso comigo, "Não, cara. Agora não. Esse tem que ouvir ouvindo, prestando atenção. Não lavando louça!". Uma obra de arte como essas não pode ser "usada" assim como se a vida estivesse seguindo normalmente. Se vou escolher o próximo livro, passando os olhos pela estante, se estanco num Saramago, num Dostoiévski, num Machado, mutas vezes penso, "Não. Agora, não. Deixa pra ler numa viagem, pra quando estiver com a cabeça mais tranquila, pra poder saborear cada linha."

Para filmes também acontece muito, tanto que muitas vezes opto por ver uma "porcaria", uma aventura de tiro-porrada-e-bomba ou um terror bem sanguinolento, para não assistir a algum longa de um grande diretor ou de uma temática mais complexa, exatamente para poder dedicar aquelas duas horas com integral atenção e carinho. Um dos diretores com quem isso mais acontece é Ingmar Bergman. Eu sempre penso duas vezes antes de ver ou rever um filme do Bergman. Parece que um filme dele é sempre mais que um filme e, por isso mesmo, sempre acabo me questionando se estou suficientemente preparado para aquilo. Essa minha reserva fez com que eu atrasasse a apreciação de diversos filmes de sua obra, que só vim a descobrir muito tarde, como é o caso de "Sonata de Outono" (1978), filme do qual eu ouvia muito falar mas que sempre deixava para depois e depois... Só o assisti há pouco tempo e, de fato, ele corresponde a tudo o que se falava sobre ele e justifica, segund meus critérios, toda minha precaução. É mais que um filme. Uma obra à qual o espectador tem que estar atento a cada nuance, a cada expressão, a cada traço de comportamento. Bergman conduz de uma maneira magistral o drama familiar em que uma filha, Eva, recebe, depois de sete anos de afastamento, a visita de sua mãe, Charlotte, em sua casa interiorana, onde vive com o marido e com a irmã Helena, uma jovem com necessidades especiais e que fora anteriormente internada pela mãe. O que poderia-se imaginar num primeiro momento e o que seria natural, como uma visita amistosa, carinhosa, repleta de saudades e gostosas lembranças, não é o que acontece em momento algum. Em momento algum o clima é agradável por mais que as duas, cada uma à sua maneira, tentem fazer com que a atmosfera fique mais 'leve'. Digo "cada uma à sua maneira", porque Eva, a filha, interpretada magnificamente por Liv Ulmann, embora tenha lá suas mágoas de infância, até gostaria de ter realmente um momento bom com a mãe e, de certa forma, acreditava que aquele reencontro pudesse proporcionar essa reaproximação. 

Acima, um momento que poderia ser agradável,
mãe e filha tocando piano, mas se transforma numa dura troca de acusações.
Abaixo, Charlotte, a mãe, forçando alguma leveza e simpatia
diante da filha Eva.

 
Mas o problema é que a mãe, Charlotte, uma pianista que sempre priorizou a carreira às família, vivida por Ingrid Bergman, numa atuação ainda mais espetacular que a de Liv Ulmann, e que lhe rendeu a indicação para o Oscar de melhor atriz, ainda que se esforce, disfarce, simule, não consegue demonstrar carinho e empatia. É uma pessoa fria, insensível, egoísta que já machucou muito a filha na infância e que agora, mesmo sem querer, continua ferindo, simplesmente porque é de sua natureza. Mais do que não saber ser mãe, de não aceitar abdicar de sua vida em nome de outras, Charlotte parece ser aquele tipo de pessoa que não sabe amar. E não somente aos outros, mas talvez até a si mesma.

O diretor conduz como bem entende as situações numa verdadeira montanha-russa de emoções, em cenas que vão de cordialidades a grosserias, de amabilidades a acusações ferrenhas, de sorrisos a lagrimas, atravessando a linha entre uma sensação e outra com rara sutileza e habilidade. A cena da conversa à noite, na insônia de Charlotte, é de tal modo tão envolvente que o espectador não consegue se desligar dela ou ficar indiferente. Cada posição de câmera, cada cor, cada movimento, é tudo pertinente e perfeito. Os closes de Bergman são um descortinamento das almas, eles vão no fundo do personagem, o que neste caso, em especial, pelas duas atuações impecáveis das protagonistas, ganha em intensidade e emoção. 

Um filme sobre pais e filhos que faz com que reavaliemos muito sobre nossas relações dessa ordem ou mesmo de outras naturezas e, até por isso mesmo, um daqueles filmes que é bom se assistir de novo e de novo. Certamente o farei, mas agora que já assisti, assim como outros de sua filmografia, "Sonata de Outono" entra naquela lista dos que, de tão bons, de tão relevantes, não dá pra assistir a qualquer hora.

Não é toda hora que se está preparado para um filme de Ingmar Bergman.

Rostos duros, expressões severas.
Bergman captava, como poucos, o interior em imagens.




Cly Reis


sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Ensaio Sobre os Mortos




Como comentei, anteriormente aqui, Ensaio Sobre a Cegueira, o filme de Fernando Meirelles baseado na obra de José Saramago levanta uma série de questões humanas significativas e com certeza faz pensar e fica martelando na cabeça, ainda, por um tempo depois de vê-lo. Pensando sobre o filme me ocorreu uma similaridade de temática, ainda que os gêneros e os apelos sejam completamente distintos.
Essa coisa toda de um mal com causa desconhecida, essa anomalia, a propagação, a epidemia, o isolamento de um grupo e suas diferenças pessoais, a exceção dos saudáveis, tudo isso me lembra também ótimo Madrugada dos Mortos, do diretor Zack Snyder.

Não, não!!! Não quebrem o monitor! Não estou comparando os filmes. É evidente que a qualidade do Ensaio... é superior enquanto história, - até pela fonte que o inspirou, o livro homônimo de José Saramago - enquanto tema e até mesmo enquanto obra final, mas a analogia faz-se principalmente pelo ponto em comum do mal que se alastra e causa este isolamento de algumas pessoas.
No caso do Madrugada... o mal é um vírus desconhecido que aparece de repente e transforma as pessoas em zumbis. Estes passam a ser ferozes e famintos e atacam todas as pessoas vivas que estiverem pela frente transformando-as também em zumbis por qualquer ferimento que causarem nos outros.
Neste caso também há a exceção dos não contaminados, que aqui são algumas pessoas, ao contrário do Blindness onde somente a esposa do médico pode ver, mas com o ponto em comum que a líder do grupo também é uma mulher.
Também, assim como no ...Cegueira, o grupo fica isolado, só que neste caso dentro de um Shopping Center, enquanto o mundo lá fora está transformado num caos por conta dos ataques dos mortos-vivos e da propagação do vírus. Lá dentro os sobreviventes brigam, se desentendem e também aparecem questões humanas (porém bem mais rasteiras),que no outro filme, mas o que prevalece mesmo são as piadinhas típicas de filmes de terror, mesmo que intrínsecamente também haja um conceito, como o consumismo desenfreado do ser humano
Há também em comum com o Ensaio..., a imagem do mundo devastado que as pessoas do shopping encontram quanto tem que sair de lá, que com características de filmagem, de fotografia e de enfoque diferentes, parecem com a visão um do outro.
Para o gênero terror de zumbis, eu acho ótimo, mas não é comparável a uma proposta séria, estudada e muito bem adaptada como o Ensaio sobre a Cegueira, sem contudo tirar os grandiosos méritos do diretor Zack Snyder que mostra com muita qualidade de direção em grande parte das cenas, com destaque principalmente para a cena da fuga de automóvel pela estrada, filmada do alto (incrível), a da explosão dos zumbis (demais) e o final (que eu não vou comentar pra não perder a graça pra quem não viu).
São filmes diferentes, eu sei, eu sei. Mas minha cabeça funciona assim: uma coisa chama outra.



quinta-feira, 25 de setembro de 2008

'Ensaio sobre a Cegueira" - Fernando Meirelles (2008)




Perturbador, tenso, angustiante. Estes são alguns muitos dos adjetivos com os quais se pode definir o filme Ensaio Sobre a Cegueira (Blindnes), do diretor Fernando Meirelles. Mas o filme não se limita a criar "climas" e "atmosferas". Existem muitos outros méritos neste que é, com certeza, um dos melhores filmes que assisti nos últimos tempos.

A direção é impecável, com uma contraste de imagem quase sempre esbranquiçado, fazendo com que o espectador participe, em parte, da cegueira dos personagens. Até como uma provocação, o diretor trabalha muito, em boa parte do filme, com imagens obtidas de maneira indireta (sombras, reflexos e às vezes imagem direta interagindo com reflexo no mesmo enquadramento,) como quem pergunta se realmente estamos vendo o que estamos olhando.

O filme tem uma série de outras questões intrínsecas, mas se sobressai principalmente, me parece, a da convivência humana em um estado limite. Como as pessoas começam a reagir em uma situação crítica comum dentro de um grupo em um espaço restrito. Aí, se não prevalece o espírito de solidariedade, ordem, princípios, a coisa desanda e fatores como ganância, vaidade, anarquia, passam a imperar. É o como se um Caos se aproveitasse de uma inquietude coletiva, de uma insatisfação, um cansaço geral, somado ao isolamento, divergências, desesperança e à fome, para fazer seu ninho.

É o que acontece em determinado momento quando pessoas acometidas por uma cegueira epidêmica desconhecida que repentinamante começa a se alastrar, são levadas para um isolamento e lá ao longo de alguns dias, com a população de doentes crescendo e os problemas de higiene, comida, comunicação, aumentando alguns internos de uma das alas resolvem tomar o poder pela força e aí então é que estas mazelas humanas explodem. O caso é que apenas uma pessoa pode enxergar e esta resolve permanecer naquele sanatório por amor e solidariedade ao marido, só que para ela, nesta condição, tudo é mais torturante apesar de sua grande força interior.

Filmaço!

Vale a pena dar uma olhada.

Um barato também as cenas externas com locações em uma São Paulo abandonada e suja, como se fosse o fim do mundo.
(deve ter sido difícil em uma cidade como SP isolar trechos grandes, como os que vemos, e filmar sem nenhuma viva-alma na rua ou mesmo aparecendo nas janelas dos prédios)

Belos trabalhos de cenografia e fotografia.



Cly Reis
Cly Reis