“...falemos abertamente sobre o que foi a nossa vida, se era vida aquilo, durante o tempo em que estivemos cegos, que os jornais recordem, que os escritores escrevam, que a televisão mostre as imagens da cidade tomadas depois de termos recuperado a visão, convençam-se as pessoas a falar dos males de toda a espécie que tiveram de suportar, falem dos mortos, dos desaparecidos, das ruínas, dos incêndios, do lixo, da podridão, e depois, quando tivermos arrancado os farrapos de falsa normalidade com que temos andado a querer tapar a chaga, diremos que a cegueira desses dias regressou sob uma nova forma, chamaremos a atenção da gente para o paralelo entre a brancura da cegueira de há quatro anos e o voto branco de agora...”
trecho de “Ensaio sobre a lucidez”
O inusitado da situação faz com que o governo remeta aos acontecimentos da passada cegueira branca e aí Saramago, então, recupera alguns dos personagens de sua trama anterior, especialmente a que o autor chama de Mulher do Médico, sem nome próprio, como todos os demais personagens. Símbolo de equilíbrio e lucidez, desde os acontecimentos da epidemia, na qual fora a única não infectada, a Mulher do Médico é alvo das investigações do governo que a supõe parte de uma possível conspiração iniciada a partir desse ato rebelde nas urnas.
"Ensaio Sobre a Lucidez" é bom, claro. Tem todos os méritos literários de Saramago, seu texto corrido, bonito, de parágrafos longos, diálogos corridos, o espírito inconformista e questionador do autor, mas, em comparação com o da cegueira, é inferior e bem menos verossímil no que diz respeito às possíveis consequências de uma situação dessa natureza na vida real. Se o resultado de uma impotência física coletiva dessa ordem, no outro é uma revelação perturbadora do pior da natureza humana, o que muito provavelmente aconteceria, na situação do voto em branco, temos perseguições, ações policiais, um cerco à cidade, agentes infiltrados e coisas do tipo. Vale como alegoria, como exercício de imaginação, demonstração das fragilidades do Estado, de sua veia autoritária, mas se afasta do realismo chocante, de um espelho colocado à nossa frente, do "Ensaio Sobre Cegueira".
Na verdade, o Estado teria lá, seus artifícios, providências, uma nova data seria marcada, políticos oportunistas, de lado a lado, se aproveitariam exatamente disso para suas propagandas eleitoreiras e, no fim das contas, teríamos, em algum momento um resultado montante suficiente para validar a eleição. Seria, sim, legal ver a cara das autoridades diante de uma demonstração tão aberta de insatisfação e de reprovação do povo em relação a eles e suas atitudes. Mas não seria nada mais que isso... Ainda mais no Brasil que, com certeza, passaria longe de ser o lugar onde Saramago faria se passar a ação.
Mas vamos torcer que, pelo menos no dia de hoje, tenhamos um pouquinho de lucidez.
Cly Reis