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segunda-feira, 28 de abril de 2025

Tracy Chapman - "New Beggining" (1995)



"Eu nunca presto muita atenção ao gênero, pessoalmente. Não acho relevante ou interessante."

"Há uma parte de mim que está em tudo que escrevo."
Tracy Chapman

Tracy Chapman já provou que não precisa provar mais nada para ninguém. Uma das maiores vendedoras de discos do folk-rock norte-americano das últimas décadas, autora original, cantora de personalidade, ativista, dona de si. Seu primeiro e celebrado disco, de 1988, venceu de 3 Grammy Awards e discos de Ouro e Platina. Com 8 álbuns gravados, Tracy entrou mais de uma vez na Billboard e ganhou BRIT Awards, American Music Awards e mais prêmios Grammy. Cantou ao lado de Peter Gabriel, Youssou N'Dour, Eric Clapton, Luciano Pavarotti, Carlos Santana, Ziggy Marley, Bonnie Raitt. Atuou em prol da Anistia Internacional, do Farm Aid, do We the Planet, da libertação de Nelson Mandela, da memória de Matin Luther King. E mesmo assim a crítica a subestima.

Além de ser perseguida pelo julgamento reducionista (inclusive, musicalmente falando) de que se trate apenas de uma “emuladora” de Joan Armatrading – musicista são-cristovense-britânica de uma geração anterior a de Tracy e a quem guarda algumas semelhanças, mas, principalmente, diferenças – recai sobre ela uma exigência para que sua obra seja mais densa do que já é, o que resulta numa demonstração bastante machista e racista. A argumentação “especializada” é de que, por exemplo, letras de canções como “Talkin’ 'bout Revolution” (escrita aos 16 anos e que se tornou um de seus maiores clássicos), que fala sobre a necessidade de levantar-se contra as injustiças sociais, seja mais profunda em dizer COMO fazer essa revolução a qual prega. Ora: está se avaliando uma música pop de pouco mais de 4 min, e não uma tese de pós-doutorado em Sociologia Política!

Para piorar, houve, principalmente nos primeiros anos de carreira musical de Tracy, logo que esta surgiu ainda jovem, aos 23 anos, uma cruel expectativa em relação aos trabalhos seguintes ao seu disco de estreia – o sucessor “Crossroads”, de 1989, e o terceiro, Matters of the Heart, de 1992. Era uma exigência velada para que ela assumisse uma imagem de singer-songwriter “de protesto”, rotulando-a num nicho pré-determinado pela própria indústria. Descarada demagogia. Nunca se viu tal expectativa para pertencer a um estilo ou outro para com James Taylor ou Paul Simon, por exemplo, dois homens brancos judeus intocáveis e da mesma linha de musicalidade de Tracy, que circula entre o folk e o soft rock. Numa indústria que reflete a sociedade norte-americana, tais cobranças haveriam de caber, sim, a uma mulher jovem, preta e LGBT fora dos parâmetros de beleza da mídia. 

Acontece que Tracy, cuja discrição da vida pessoal sugere sua esperteza, entende muito bem as intenções maliciosas para consigo. Ela sabe que cada passo seu é vigiado e que ela vale muito mais do que a caixinha dentro da qual a queiram colocar. Por isso, “New Beggining”, seu quarto disco e que completa 30 anos de lançamento, traz esse título aparentemente sem um motivo maior, mas carregado de respostas não só aos pretensos manipuladores como, ainda mais, a si mesma. Para alguém como ela, independentemente do sucesso já alcançado, é sempre um “novo começo”. Maduro e cheio de personalidade, “New Beginning”, produto de uma Tracy agora com 31 anos, é o resultante do trabalho de três anos de composição e de mergulho interior da artista, levantando questões sobre sofrimento, racismo, causas sociais e ambientais. Crítica e público reconheceram: levou disco multi-platina e teve mais de 3 milhões de cópias vendidas. 4ª posição na Billboard 200, passou 95 semanas na parada, tendo ainda o single "Give Me One Reason" por cinco semanas em 3ª no Hot 100 da Billboard.

Quebrando a repetição da foto da própria artista na capa como nos três trabalhos anteriores (mais uma mostra da maturidade alcançada), o disco é excelente em tudo: arranjos, execução, produção, narrativa e, claro e principalmente, aquilo que Tracy faz com exímia habilidade, que são as composições. Ela abre o álbum mostrando os porquês. "Heaven's Here on Earth", uma balada melancólica e de profunda beleza, traz uma letra de alta carga poética e reflexiva. “Você pode olhar para as estrelas em busca de respostas/ Procurar por Deus e por vida em planetas distantes/ Ter sua fé na eternidade/ Enquanto cada um de nós tem em si o mapa do labirinto/ E o céu é aqui na terra/ Nós somos o espírito da consciência coletiva/ Nós criamos a dor e o sofrimento e a beleza no mundo”. Arranjo perfeito e ela cantando belamente. 

A faixa-título, igualmente, exala personalidade. De ritmo embalada em tempo 2x2, provocaria qualquer músico a transformá-la num reggae. Tracy, no entanto, não cede à tentação mais óbvia e concebe uma balada folk como é mestra em compor a exemplo de “Across the Lines”, “Freedom Now” e “Open Arms”, todas dos trabalhos anteriores. 

O misto de r&b e spiritual com folk e pop do estilo musical de Tracy não é simplesmente uma receita de bolo: trata-se de um processo internalizado e inato da artista. Tracy veio de uma família pobre da negra Cleveland, em Ohio, onde vivia com a mãe e a irmã. Passou necessidade e sofreu racismo, como todo preto norte-americano de classe baixa. Na adolescência, nos anos 70, com as políticas afirmativas advindas dos Movimentos pelos Direitos Civis, pode fazer faculdade de Antropologia. Vivia entre os livros da biblioteca pública e o rádio, que ouvia incessantemente e  única fonte de informação musical que tinha na infância e adolescência,. “Eu cresci em uma família da classe trabalhadora e estava muito ciente das lutas que minha mãe enfrentou enquanto criava a mim e minha irmã. Havia outras pessoas na minha família que trabalhavam em empregos braçais enquanto a economia industrial estava começando a fracassar e desaparecer. Quando criança, acho que não tinha noção da política disso, mas por osmose você está captando o estresse ou as preocupações que os adultos ao seu redor têm”, disse em recente (e rara) entrevista ao The New York Times.

Toda essa experiência de vida deu a Tracy um jeito muito próprio tanto de compor quanto de cantar - até por isso é tão rasteiro imputá-la como uma cópia malfeita de Joan Armatrading, que tem outra bagagem. E o modo de cantar transmite isso. É quase mais sentido do que escutado. Mal comparando, assim como Bob Dylan – um de seus ídolos – cuja maneira de cantar expressa todas as angústias da geração beat, a de Tracy é carregada de ancestralidade e vivência do negro nos Estados Unidos. “Cold Feet”, com ares de canção de trabalho de escravizados das plantações de algodão do Sul norte-americano, é exemplar nisso. Um cantar triste mas lúcido, consciente de seu valor e de sua dor. O mesmo em "Smoke and Ashes", com seus coros de worksongs, e a balada ”At This Point in My Life”, que muito bem retrata a vida de um irmão de cor vivido, mas com esperança na vida: “A essa altura da minha vida/ gostaria de viver como se só o amor importasse/ como se redenção viesse em um suspiro/ como se procurar viver fosse realmente tudo o que se precisa/ não importa quem o consiga”.

Igualmente balada, porém romântica, “The Promisse” é forjada num lindo dedilhado do violão de Tracy com leves acompanhamentos do baixo e do violino. Sem percussão alguma, pura leveza. E quantas lindas melodias! Todas, sem exceção. Como Tracy sabe engendrar letra é música e ainda fazer refrões tão marcantes e gostosos de se ouvir, a exemplo daquele que é um de seus grandes sucessos do início da carreira, “Baby Can’t I Hold”. A se ver por "Tell It Like It Is", cheia de groove e das melhores do repertório, e a já referida “Give me...”, hit do álbum e que a deu um terceiro Grammy. Um blues doce e irresistível com ares de B.B. King e Memphis Minnie.

Clipe de "Give Me One Reason", que tocou bastante na MTV à época do lançamento

Tracy empresta seu vocal intenso e sofrido para falar também sobre um tema hoje na crista da onda: as mudanças climáticas. A introspectiva canção "The Rape of the World" diz: “Mãe de todos nós/ Lugar do nosso nascimento/ Como podemos ficar à distância/ E assistir a violação do mundo/ Isso é o começo do final/ Esse é o mais chocante dos crimes/ O mais letal dos pecados/ A maior violação de todos os tempos”. À época, 3 anos depois da Eco92, não era todo artista que levantava a voz para tratar sobre a natureza.

Já “Remember the Tinman” volta àquela atmosfera da contadora de histórias de “Fast Car”, sucesso do seu primeiro e aclamado disco. Tudo para encerrar com outra das melhores: “I’m Ready”, um tocante r&b com toques gospel. Sim, Tracy Chapman diz que, em seu novo nascimento, estava pronta para o que desse e viesse. “Eu estarei pronta para deixar os rios me lavarem/ Se as águas puderem me arrastar/ Eu estou pronta”. Eles pensavam que ela sucumbiria ao sistema, né? Até tentaram, mas Tracy tem consigo séculos de conhecimento ancestral, de tradição oral, de musicalidade inerente, de dor de escravidão, de exclusão social, de genocídio preto.

Nossa, acabou... Ou melhor: ainda não acabou! De pouco menos de 2 min, a hidden track "Save a Place for Me” ainda vem para dar um recado cheio de generosidade para com os que a amam como também para quem quer que seja: “Salve um lugar para mim/ Salve um espaço para mim/ Em seu coração/ Se você esperar, eu virei para você”. Com uma fraca média de um disco a cada 5 anos, pode-se perceber que o negócio com Tracy é realmente esperar, que um dia ela reaparece para conquistar mesmo aqueles que não eram seus fãs e passam a reconhecer suas qualidades inequívocas e intransferíveis. Porém, quando ela vem, como “New Beggining” é uma prova, pode-se ter certeza de que é para ficar.
 
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FAIXAS:
1. "Heaven's Here on Earth" – 5:23
2. "New Beginning" – 5:33
3. "Smoke and Ashes" – 6:39
4. "Cold Feet" – 5:40
5. "At This Point in My Life" – 5:09
6. "The Promise" – 5:28
7. "The Rape of the World" – 7:07
8. "Tell It Like It Is" – 6:08
9. "Give Me One Reason" – 4:31
10. "Remember the Tinman" – 5:45
11. "I'm Ready" – 4:56
12. "Save a Place for Me" (hidden track) – 1:50
Todas as faixas de autoria de Tracy Chapman

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OUÇA O DISCO:
 


Daniel Rodrigues