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segunda-feira, 28 de abril de 2025

Tracy Chapman - "New Beggining" (1995)



"Eu nunca presto muita atenção ao gênero, pessoalmente. Não acho relevante ou interessante."

"Há uma parte de mim que está em tudo que escrevo."
Tracy Chapman

Tracy Chapman já provou que não precisa provar mais nada para ninguém. Uma das maiores vendedoras de discos do folk-rock norte-americano das últimas décadas, autora original, cantora de personalidade, ativista, dona de si. Seu primeiro e celebrado disco, de 1988, venceu de 3 Grammy Awards e discos de Ouro e Platina. Com 8 álbuns gravados, Tracy entrou mais de uma vez na Billboard e ganhou BRIT Awards, American Music Awards e mais prêmios Grammy. Cantou ao lado de Peter Gabriel, Youssou N'Dour, Eric Clapton, Luciano Pavarotti, Carlos Santana, Ziggy Marley, Bonnie Raitt. Atuou em prol da Anistia Internacional, do Farm Aid, do We the Planet, da libertação de Nelson Mandela, da memória de Matin Luther King. E mesmo assim a crítica a subestima.

Além de ser perseguida pelo julgamento reducionista (inclusive, musicalmente falando) de que se trate apenas de uma “emuladora” de Joan Armatrading – musicista são-cristovense-britânica de uma geração anterior a de Tracy e a quem guarda algumas semelhanças, mas, principalmente, diferenças – recai sobre ela uma exigência para que sua obra seja mais densa do que já é, o que resulta numa demonstração bastante machista e racista. A argumentação “especializada” é de que, por exemplo, letras de canções como “Talkin’ 'bout Revolution” (escrita aos 16 anos e que se tornou um de seus maiores clássicos), que fala sobre a necessidade de levantar-se contra as injustiças sociais, seja mais profunda em dizer COMO fazer essa revolução a qual prega. Ora: está se avaliando uma música pop de pouco mais de 4 min, e não uma tese de pós-doutorado em Sociologia Política!

Para piorar, houve, principalmente nos primeiros anos de carreira musical de Tracy, logo que esta surgiu ainda jovem, aos 23 anos, uma cruel expectativa em relação aos trabalhos seguintes ao seu disco de estreia – o sucessor “Crossroads”, de 1989, e o terceiro, Matters of the Heart, de 1992. Era uma exigência velada para que ela assumisse uma imagem de singer-songwriter “de protesto”, rotulando-a num nicho pré-determinado pela própria indústria. Descarada demagogia. Nunca se viu tal expectativa para pertencer a um estilo ou outro para com James Taylor ou Paul Simon, por exemplo, dois homens brancos judeus intocáveis e da mesma linha de musicalidade de Tracy, que circula entre o folk e o soft rock. Numa indústria que reflete a sociedade norte-americana, tais cobranças haveriam de caber, sim, a uma mulher jovem, preta e LGBT fora dos parâmetros de beleza da mídia. 

Acontece que Tracy, cuja discrição da vida pessoal sugere sua esperteza, entende muito bem as intenções maliciosas para consigo. Ela sabe que cada passo seu é vigiado e que ela vale muito mais do que a caixinha dentro da qual a queiram colocar. Por isso, “New Beggining”, seu quarto disco e que completa 30 anos de lançamento, traz esse título aparentemente sem um motivo maior, mas carregado de respostas não só aos pretensos manipuladores como, ainda mais, a si mesma. Para alguém como ela, independentemente do sucesso já alcançado, é sempre um “novo começo”. Maduro e cheio de personalidade, “New Beginning”, produto de uma Tracy agora com 31 anos, é o resultante do trabalho de três anos de composição e de mergulho interior da artista, levantando questões sobre sofrimento, racismo, causas sociais e ambientais. Crítica e público reconheceram: levou disco multi-platina e teve mais de 3 milhões de cópias vendidas. 4ª posição na Billboard 200, passou 95 semanas na parada, tendo ainda o single "Give Me One Reason" por cinco semanas em 3ª no Hot 100 da Billboard.

Quebrando a repetição da foto da própria artista na capa como nos três trabalhos anteriores (mais uma mostra da maturidade alcançada), o disco é excelente em tudo: arranjos, execução, produção, narrativa e, claro e principalmente, aquilo que Tracy faz com exímia habilidade, que são as composições. Ela abre o álbum mostrando os porquês. "Heaven's Here on Earth", uma balada melancólica e de profunda beleza, traz uma letra de alta carga poética e reflexiva. “Você pode olhar para as estrelas em busca de respostas/ Procurar por Deus e por vida em planetas distantes/ Ter sua fé na eternidade/ Enquanto cada um de nós tem em si o mapa do labirinto/ E o céu é aqui na terra/ Nós somos o espírito da consciência coletiva/ Nós criamos a dor e o sofrimento e a beleza no mundo”. Arranjo perfeito e ela cantando belamente. 

A faixa-título, igualmente, exala personalidade. De ritmo embalada em tempo 2x2, provocaria qualquer músico a transformá-la num reggae. Tracy, no entanto, não cede à tentação mais óbvia e concebe uma balada folk como é mestra em compor a exemplo de “Across the Lines”, “Freedom Now” e “Open Arms”, todas dos trabalhos anteriores. 

O misto de r&b e spiritual com folk e pop do estilo musical de Tracy não é simplesmente uma receita de bolo: trata-se de um processo internalizado e inato da artista. Tracy veio de uma família pobre da negra Cleveland, em Ohio, onde vivia com a mãe e a irmã. Passou necessidade e sofreu racismo, como todo preto norte-americano de classe baixa. Na adolescência, nos anos 70, com as políticas afirmativas advindas dos Movimentos pelos Direitos Civis, pode fazer faculdade de Antropologia. Vivia entre os livros da biblioteca pública e o rádio, que ouvia incessantemente e  única fonte de informação musical que tinha na infância e adolescência,. “Eu cresci em uma família da classe trabalhadora e estava muito ciente das lutas que minha mãe enfrentou enquanto criava a mim e minha irmã. Havia outras pessoas na minha família que trabalhavam em empregos braçais enquanto a economia industrial estava começando a fracassar e desaparecer. Quando criança, acho que não tinha noção da política disso, mas por osmose você está captando o estresse ou as preocupações que os adultos ao seu redor têm”, disse em recente (e rara) entrevista ao The New York Times.

Toda essa experiência de vida deu a Tracy um jeito muito próprio tanto de compor quanto de cantar - até por isso é tão rasteiro imputá-la como uma cópia malfeita de Joan Armatrading, que tem outra bagagem. E o modo de cantar transmite isso. É quase mais sentido do que escutado. Mal comparando, assim como Bob Dylan – um de seus ídolos – cuja maneira de cantar expressa todas as angústias da geração beat, a de Tracy é carregada de ancestralidade e vivência do negro nos Estados Unidos. “Cold Feet”, com ares de canção de trabalho de escravizados das plantações de algodão do Sul norte-americano, é exemplar nisso. Um cantar triste mas lúcido, consciente de seu valor e de sua dor. O mesmo em "Smoke and Ashes", com seus coros de worksongs, e a balada ”At This Point in My Life”, que muito bem retrata a vida de um irmão de cor vivido, mas com esperança na vida: “A essa altura da minha vida/ gostaria de viver como se só o amor importasse/ como se redenção viesse em um suspiro/ como se procurar viver fosse realmente tudo o que se precisa/ não importa quem o consiga”.

Igualmente balada, porém romântica, “The Promisse” é forjada num lindo dedilhado do violão de Tracy com leves acompanhamentos do baixo e do violino. Sem percussão alguma, pura leveza. E quantas lindas melodias! Todas, sem exceção. Como Tracy sabe engendrar letra é música e ainda fazer refrões tão marcantes e gostosos de se ouvir, a exemplo daquele que é um de seus grandes sucessos do início da carreira, “Baby Can’t I Hold”. A se ver por "Tell It Like It Is", cheia de groove e das melhores do repertório, e a já referida “Give me...”, hit do álbum e que a deu um terceiro Grammy. Um blues doce e irresistível com ares de B.B. King e Memphis Minnie.

Clipe de "Give Me One Reason", que tocou bastante na MTV à época do lançamento

Tracy empresta seu vocal intenso e sofrido para falar também sobre um tema hoje na crista da onda: as mudanças climáticas. A introspectiva canção "The Rape of the World" diz: “Mãe de todos nós/ Lugar do nosso nascimento/ Como podemos ficar à distância/ E assistir a violação do mundo/ Isso é o começo do final/ Esse é o mais chocante dos crimes/ O mais letal dos pecados/ A maior violação de todos os tempos”. À época, 3 anos depois da Eco92, não era todo artista que levantava a voz para tratar sobre a natureza.

Já “Remember the Tinman” volta àquela atmosfera da contadora de histórias de “Fast Car”, sucesso do seu primeiro e aclamado disco. Tudo para encerrar com outra das melhores: “I’m Ready”, um tocante r&b com toques gospel. Sim, Tracy Chapman diz que, em seu novo nascimento, estava pronta para o que desse e viesse. “Eu estarei pronta para deixar os rios me lavarem/ Se as águas puderem me arrastar/ Eu estou pronta”. Eles pensavam que ela sucumbiria ao sistema, né? Até tentaram, mas Tracy tem consigo séculos de conhecimento ancestral, de tradição oral, de musicalidade inerente, de dor de escravidão, de exclusão social, de genocídio preto.

Nossa, acabou... Ou melhor: ainda não acabou! De pouco menos de 2 min, a hidden track "Save a Place for Me” ainda vem para dar um recado cheio de generosidade para com os que a amam como também para quem quer que seja: “Salve um lugar para mim/ Salve um espaço para mim/ Em seu coração/ Se você esperar, eu virei para você”. Com uma fraca média de um disco a cada 5 anos, pode-se perceber que o negócio com Tracy é realmente esperar, que um dia ela reaparece para conquistar mesmo aqueles que não eram seus fãs e passam a reconhecer suas qualidades inequívocas e intransferíveis. Porém, quando ela vem, como “New Beggining” é uma prova, pode-se ter certeza de que é para ficar.
 
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FAIXAS:
1. "Heaven's Here on Earth" – 5:23
2. "New Beginning" – 5:33
3. "Smoke and Ashes" – 6:39
4. "Cold Feet" – 5:40
5. "At This Point in My Life" – 5:09
6. "The Promise" – 5:28
7. "The Rape of the World" – 7:07
8. "Tell It Like It Is" – 6:08
9. "Give Me One Reason" – 4:31
10. "Remember the Tinman" – 5:45
11. "I'm Ready" – 4:56
12. "Save a Place for Me" (hidden track) – 1:50
Todas as faixas de autoria de Tracy Chapman

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OUÇA O DISCO:
 


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Weezer - "Weezer" ou "The Blue Album" (1994)


por Roberto Sulzbach Cortes

“Se você quiser destruir meu suéter, 
segure esse fio enquanto vou embora.”
da letra de "Undone (The Sweater Song)"


Olá, Clybloggers! Antes do ano acabar, venho aqui para falar de um clássico que está completando três décadas em 2024! Sabe aqueles álbuns que, quando você coloca na vitrola (ou onde quer que você escute música), transportam você para aquele tenebroso local de insegurança e incerteza na vida chamado adolescência? Pois é: apesar de eu ter nascido mais de seis anos depois dessa obra ser lançada, o disco de estreia do Weezer, que completa 30 anos e que também se chama "Weezer", mas é comumente conhecido como "The Blue Album" (devido à cor predominante em sua capa), é um dos que mais me vêm à mente.

O ano é 1986 e Rivers Cuomo conhece o baterista Patrick Wilson, e logo, se muda para a casa dele e de seu amigo baixista, Matt Sharp. Cuomo era um rapaz tímido, que não falava direito com meninas, era fissurado em heavy metal e Role-Playing Game (RPG). Ou seja, um “nerd clássico” a la "Vingança dos Nerds". Aliás, uma curiosidade: o nome Rivers vem do inglês e se traduz como “rios”. Segundo sua mãe, é porque ele nasceu em Manhattan, entre o Rio Hudson e o Rio East. Contudo, seu pai, Frank Cuomo (também músico, tocou bateria no "Odyssey of Iska", do jazzista Wayne Shorter), dizia que era por conta de três jogadores da Copa do Mundo de 1970: os italianos Riva e Rivera, e o brasileiro Rivelino. Ao residir com os futuros colegas de banda, o metaleiro foi se afastando do gênero e se aproximou do grunge, que estava borbulhando na costa oeste, por meio de bandas como Soundgarden, Mudhoney, Pearl Jam e, claro, Nirvana, além de umas pitadas de artistas precursores, como Pixies e Sonic Youth.

Em 1992, os três roommates se juntaram ao guitarrista Jason Cropper (que, durante as gravações do primeiro álbum, foi trocado por Brian Bell por divergências pessoais) e formaram a Weezer. Àquela altura, já tocavam canções que viriam a integrar o "Blue Album", como "Sweater Song" e "Say It Ain’t So", mas ainda não tinham a aderência que viriam a conquistar. Até que Rivers gravou uma K7 que chamou a atenção da Geffen Records. Das oito músicas contidas na fita, cinco apareceram no eventual disco de estreia.

Em agosto de 1993, o quarteto entrou no Electric Ladyland, em Nova Iorque, junto do produtor Rick Ocasek, vocalista do The Cars. Praticaram muito as harmonias, que fariam parte integral da sonoridade do álbum, e definiram que as guitarras precisavam soar tão altas quanto as de "Creep", do Radiohead, lançada um ano antes. O resultado foi um hit atrás do outro, daqueles discos que podem tocar inteiros no rádio sem causar tédio em nenhum ouvinte.

A abertura é com o dedilhado de violão de "My Name is Jonas" e, na prática, explica que a tônica é o power pop direto, sem firulas. Além disso, pouco mais de 10 anos depois, ela fez parte da infância e adolescência de uma nova geração, por meio do jogo de videogame Guitar Hero III. Machismo nunca foi tão pegajoso quanto em "No One Else", em que o locutor terminou com sua namorada porque ela ria das piadas de outros homens e ele desejava alguém que não risse para ninguém além dele, e que ficasse em casa enquanto ele estivesse fora.

"The World Has Turned and Left Me Here" é o completo oposto da faixa anterior. O refrão fala que “o mundo girou e me deixou aqui, onde eu estava antes de você aparecer” e que “no seu lugar, um espaço em branco preencheu o vazio atrás do meu rosto”. Além disso, destaco a abertura da bateria de Patrick Wilson: sempre me pega. "Buddy Holly" é o "hit dos hits". Referenciando o ícone do rock dos anos 50, é um hino atemporal, cultuado por jovens e adultos ao redor do globo e que ganhou o célebre videoclipe de Spike Jonze, sucesso na MTV à época. Seu riff é meme no TikTok, e é impossível achar algo que esteja errado na música. Steve Baltin, da Cash Box, disse que você deve amar uma música que faz referência a Mary Tyler Moore. Eu não poderia concordar mais.

"The Sweater Song" começa a explorar as ansiedades e inseguranças que nosso narrador apresentou em "No One Else". A canção inicia com diálogos de dois amigos em primeiro plano (interpretados por Sharp e Karl Koch, amigo de longa data do grupo e considerado “o quinto Weezer”), enquanto sons de festa são perceptíveis ao fundo. Cuomo começa a cantar versos curtos sobre o suéter que está se despedaçando com as interações que ele tem com as pessoas - uma metáfora para sua própria saúde mental frente à fobia social que sofria. "Surf Wax America" acelera a batida novamente e aborda o distanciamento que amizades e relações sofrem com o desgaste do tempo.

Talvez a música mais interessante do projeto seja "Say It Ain’t So". A canção surgiu de um momento em que Cuomo chegou em casa, encontrou uma garrafa de cerveja no congelador e entrou em pânico. O trauma da separação dos pais, causada pelo alcoolismo de Frank, seu pai, fez com que ele temesse pela relação de sua mãe com o padrasto, a quem tinha grande apreço. Em um trecho, a letra se traduz: “Como pai, padrasto, o filho esta se afogando da avalanche”. "Say It Ain’t So" surge dessa angústia, desse pedido para que a história não se repetisse.

Em "In the Garage", Cuomo fala sobre como “dentro da garagem”, ele se sente seguro, junto de seu jogo de tabuleiro RPG Dungeons and Dragons, da Kitty Pryde, do Noturno (ambos, dos X-Men) e de sua guitarra, e como “ninguém se importa com o seu jeito”. Lembrando algo que disse no começo do texto: Cuomo é um nerd, esquisitão e que não se encaixa direito na sociedade em que vive. Em "Holiday", o objetivo é fugir para um lugar distante, em uma batida harmônica, parecendo uma versão eletrificada dos Beach Boys.

Assim como "My Name Is Jonas" tem um "cheiro de abertura”, "Only In Dreams" foi fabricada para finalizar a obra. A linha de contrabaixo de Matt Sharp é afiadíssima (com o perdão do trocadilho em inglês: sharp é “afiado”) e é protagonista na melodia durante seus 7 minutos e 59 segundos de duração. A tônica do álbum é encerrada com a história de um jovem que gosta de uma menina, mas não tem a coragem de ir atrás dela; portanto, é apenas nos seus sonhos que ele fica com ela. A narrativa é, proporcionalmente, pequena perto da duração dos seus quase oito minutos, mas os arranjos nos contam até mais da história do que a própria letra. Da metade para o final, um épico musical é formado e se torna a despedida perfeita para um álbum que gira em torno da esquisitice que é ser adolescente, a busca por aceitação e a procura do amor perfeito que os hormônios mais ladinos provocam nos jovens de geração em geração.

As gravações foram finalizadas em setembro de 1993, com o lançamento previsto para maio de 1994. Kurt Cobain faleceu tragicamente em abril de 1994 e, com ele, toda a onda grunge perdeu um de seus principais expoentes. Contudo, a música “alternativa” estava espalhada por todo o mainstream, e a porta estava aberta para quem quisesse a atenção das massas, algo que, talvez, possibilitou que o "Blue Album" (lançado menos de um mês depois) se tornasse o sucesso que se tornou. Além de, claro, clipes produzidos pelo Spike Jonze são sempre bem-vindos.

Clássico clipe de "Buddy Holly", da Weezer, 
com direção de Spike Jonze


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FAIXAS:
1. "My Name Is Jonas" (Jason Cropper, Patrick Wilson, Rivers Cuomo) - 3:23
2. "No One Else" - 3:14
3. "The World Has Turned And Left Me Here" (Wilson, Cuomo) - 4:26
4. "Buddy Holly" - 2:40
5. "Undone - The Sweater Song" - 4:55
6. "Surf Wax America" (Wilson, Cuomo) - 3:04
7. "Say It Ain't So" - 4:18
8. "In The Garage" - 3:56
9. "Holiday" - 3:26
10 "Only In Dreams" - 8:03
Todas as composições de autoria de Rivers Cuomo, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Bom Dia, Manhã - Poemas", de Grande Othelo - Ed. Topbooks (1993)




"Grande Othelo foi um imenso brasileiro, um dos maiores de todos os tempos: ator, músico, cantor, apresentador de televisão, grande do teatro e do cinema, gênio nascido no ventre mestiço do Brasil. Tão gênio brasileiro quanto Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Pelé."
Jorge Amado

"O autor por excelência do Brasil."
José Olinto

Há determinados artistas brasileiros que deixam um vácuo quando morrem. Aqueles que vão inesperadamente como foi com Elis Regina, Chico Science, Raphael Rabello, Cássia Eller e, mais recentemente, com Gal Costa. Eles provocam essa sensação de um buraco que se abre e que nunca mais será preenchido. Tanto quanto aqueles que, comum mais antigamente, despediam-se com menos idade do que seria normal à atual expectativa de vida, casos de Tom Jobim (67), Emílio Santiago (66), Mussum (53) e Tim Maia (55). 

Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Othelo é um desses vazios. Aliás, fazem 30 anos deste vazio, tão grande que parece contradizer com a diminuta estatura deste homem de apenas 1m50cm de altura. Mesmo que menos prematuro como os já citados (morreu aos 78 anos), sua vida marcada pela infância dura e pela vida adulta boêmia, não o poupou de roubar-lhe, quiçá, uma década cheia. Mas o que este brasileiro deixou como legado se reflete (ao contrário dos citados acima, músicos por natureza) em mais de um campo artístico. Grande Othelo foi um gênio na arte de atuar, mas deixou marcas indeléveis na música popular e na poesia.

"Bom Dia, Manhã" cristaliza essa magnitude de Grande Othelo, o homem das palavras, sejam as da dramaturgia, as dos sambas ou as dos poemas. Lançado em 1993 e com organização de Luiz Carlos Prestes Filho, o livro reúne um bom compêndio de mais de 100 textos poéticos do artista que eternizou em seu nome o ícone shakesperiano. Não haveria o livro, por óbvio, ser menos do que isso. Com sua inteligência incomum e fluência natural de escrita, Grande Othelo alterna da mais singela confissão existencial ao romantismo sentimental, a malandragem e a alta literatura, os sambas e o parnasianismo, passando pelas homenagens aos amigos e as observâncias da vida e das mazelas do mundo. Tudo numa linguagem de "puras palavras", como definiu o escritor José Olinto, sem cerebralismos e dotados de cadências existenciais.

Em “Nada”, o poeta escreve: “Na saga das tuas solidões/ Vão surgindo outras/ Em outros corações”. A compreensão do amor “desromantizado” de “Homem e Mulher” é também digna de escrita, assim como “Estrada”, que narra o descompasso de um homem velho e uma mulher mais jovem. Os sambas, no entanto, são uma delícia à parte. Como os que coescreveu com Herivelto Martins  “Fala Claudionor” ou o clássico “Bom dia Avenida”, de 1944, feito quando a Prefeitura do Rio de Janeiro resolveu acabar com o Carnaval na referencial Praça Onze, a Sapucaí do início do século XX: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba/ Não vai/ Chora tamborim/ Chora o morro inteiro”. Mas há ainda o samba-fantasia “Penha Circular”, o samba-crônica “Rio, Zona Oeste”, o samba inacabado “A boemia cantou”, o samba não-cantado por Elizeth Cardoso “Ao som de um violão”.

Representativo da raça negra em uma época de inúmeras dificuldades para o exercício deste ativismo, Grande Othelo mesmo assim posiciona-se por meio de suas palavras. Semelhante ao que ocorrera com outro ícone preto made in Brazil, Pelé, Othelo (que bem pode ser considerado um Pelé dos palcos, pois possivelmente o maior da sua área) bastava existir para representar resistência. Mas faz mais. “Sou no momento que passa/ A expressão mais forte/ De uma raça”, escreveu em “Neste momento: eu!”. Leu, com o olhar de menino sábio, a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio, que ele mesmo representou no cinema em 1973, dirigido pelo tradicionalista Nico Fagundes:

“O negrinho descerá e subirá cañadas
Em correrias desenfreadas...
Beberá a água das sangas
E sempre sozinho, pois ninguém o vê.
Mas quando voltar há de trazer
A felicidade procurada por você.”

Não é uma delicadeza de apreciação? Estas e muitas mais delicadezas estão em "Bom Dia, Manhã", cuja leitura se dá com o prazer de quem ouve um samba, de quem lê uma crônica, de quem reflexiona a própria condição humana. É difícil imaginar o que Grande Othelo teria feito se tivesse vivido, quem sabe, mais 10 anos – nada alarmante nos tempos de hoje em que senhores da faixa dos 87-88 anos são Tom Zé ou Roberto Menescal, ativos e joviais. Mas é impossível não sentir falta dele vivo, aqui presente. Pensar que aquele Macunaíma, aquele Espírito de Luz, aquele parceiro de Carmen Miranda, aquele Cachaça, aquele farol do povo brasileiro não está mais é reconhecer o vazio que isso provoca. Um vazio grande, como o que este pequeno Othelo carregava no nome.

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Trio de Ouro 


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

U2 - "Zooropa" (1993)

 

Atento, bebê?

“Quando começamos ‘Zooropa’, sugeri à banda que ficassem improvisando no estúdio regularmente. Eles haviam perdido esse hábito de improvisar e, por vários motivos, não o faziam. Então eu disse: ‘devemos imaginar que estamos fazendo trilhas sonoras de filmes hipotéticos, não fazendo músicas.’”
Brian Eno

Nunca acreditei em “Achtung Baby”, o tão celebrado disco da U2 de 1991. É este mesmo o termo: "acredito". Não se trata de "gostar", mas sim de crer. Aliás, gostar, até gosto. "One", "Until the End of the World" e “Acrobat” estão aí para provar. Porém, estas e todas as demais nove faixas de “Achtung...” são, a rigor, de longe menos inspiradas do que diversas outras da banda e, principalmente, graus abaixo do que Bono Vox, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton têm condições de entregar. Por que, então, falo de credibilidade e não necessariamente de qualidade? E por que abro o texto indo na contramão da maioria falando de uma obra consagrada e não daquela que motiva este artigo, “Zooropa”? Afora a ordem sucessória entre um disco e outro, é necessário que se volte alguns anos antes ao grande sucesso comercial e de crítica da U2 nos anos 90 para entender aquela que considero a maior farsa planejada da música pop moderna.

O ano é 1988. A U2 ostentava a posição de grande banda do rock internacional. Com o término da The Smiths e os às vezes errante caminhos da The Cure, a U2 somava todos os elementos para ocupar tal posição, rompendo a linha que divide o underground do início da carreira para o status de lotadores de estádio. Musicalmente, um fenômeno gerador de hits, vendas de discos e canções clássicas. Tinha um vocalista de admiráveis qualidades vocais e letrísticas, um guitar hero sofisticado e criativo e a "cozinha" mais competente do rock 80. Politicamente, foi o grupo mais engajado da sua geração. A coroação veio com “The Joshua Tree”, de 1987, que deu aos irlandeses discos de ouro, platina e diamante em vários países e um Grammy de Álbum do Ano, consolidando-os no mercado mundial com sucessos como "With ir Without You" e "I Still Haven't Found What I'm Looking For".

Arte do famigerado "Achtung...", de 1991
Ocorre que “Joshua...” é daquelas obras tão divisórias na carreira de qualquer artista, que lhes surtiu o efeito contrário. Ao invés de orientar Bono & Cia., desnorteou-os. Que rumo tomar depois de tamanho êxito comercial e artístico? O longo e irregular “Rattle and Hum”, no qual voltam os olhares para a cultura folk norte-americana, simboliza este hiato conceitual. A imagem da capa de Bono apontando o holofote para The Edge, mais do que uma mostra da saudável parceria entre ambos, simboliza uma necessidade (talvez inconsciente) de valorização da forma sobre a aparência. A U2 queria dizer que não se resumia ao Bono front man e, sim, que formavam um coletivo do qual seu guitarrista era o melhor representante. Nem todos entendiam isso, entretanto; E pior: continuavam exigindo-lhes a divindade cega atribuída às celebridades. Então, para que lado ir se já afastados da forte pegada política de “Sunday Blood Sunday” e alçados a astros planetários? Foi então que, naquele mesmo ano de 1988, a resposta se insinuou como uma solução: a fraude da dupla alemã Milli Vanilli.

Surgidos como revelação da música pop, Fab Morvan e Rob Pilatus foram acusados de não interpretarem as próprias músicas. Desmascarados, foram demitidos da gravadora que os fez vender milhões e tiveram que devolver o Grammy que venceram. Morvan e Pilatus precisaram convocar uma vexatória coletiva para confessarem que, de fato, apenas faziam playback em cima do palco e que ghostsingers cantavam por eles em estúdio. Justificaram que haviam sido recrutados pelo visual, como uma estratégia de publicidade. Bono, então, ouviu e ligou os pontos: “Fraude, Grammy, publicidade, paradas de sucesso, personagens...”. Deu-lhe um estalo: ali estava a chave para os problemas da U2.

Não é possível medir o quanto Bono ficou impactado com tal ocorrido, embora a polêmica da Milli Vanilli tenha ganhado tamanha proporção que, provavelmente, deu um sinal de alerta para qualquer um que pertencesse à indústria cultural. Bono, ao que tudo indica, perspicaz como é, captou a essência da discussão, mas injetou-lhe doses de ironia. Numa fase de “crise de identidade”, o negócio era assumir uma “não identidade”. Genial! Já distante da figura politizada que os consagrou e diante da incerteza que o estrelato provocou, a escolha da U2 foi criar uma nova imagem pública: dar vida a personagens fictícios e produzir músicas de fácil assimilação. 

Os riffs de “Achtung...”, basta notar, são bastante simples, até simplórios em alguns casos em se tratado da alta técnica de The Edge. "Who's Gonna Ride Your Wild Horses", "The Fly", "Mysterious Ways", "Tryin' To Throw Your Arms Around The World" são assim: quase sem graça. O minimalismo característico de The Edge transformou-se em preguiça. Praticamente todas as faixas têm o mesmo embalo. Mas, claro, com a caprichada produção de Brian Eno, que mascarava tudo. Além disso, fotos e clipes de Anton Corbijn, mixagem de Daniel Lanois e Robbie Adams e engenharia de som de Flood. Invólucro perfeito, como todo produto premium de supermercado. Para arrematar a traquinagem, o disco é gravado na mesma Alemanha em que David Bowie e o mesmo Eno conceberam a nova música pop no final dos anos 70. Mas também a mesma Alemanha da Milli Vanilli... 


Agora, valendo!

Jamais a U2 tinha feito algo tão raso como “Achtung Baby”, e isso queria dizer alguma coisa. O circo foi tão bem montado que, com absoluta unanimidade, todos caíram na deles. Público e crítica elevaram o disco a obra-prima mesmo sem ter um riff à altura de “Bad”, “Red Hill Minning Town”, “God Part 2”, “Like a Song...” e por aí vai. Quando um artista chega a determinado estágio, o que se espera é que, no mínimo, supere o que já fez. Mas diante da incapacidade crítica da pós-modernidade, a U2 percebeu que isso não se aplicaria a ídolos acima de qualquer suspeita como eles. Na verdade, fizeram o contrário: ao invés de evoluir, deram passos para trás, mas com muita inteligência e marketing. E ego. Bono encarnava personagens como The Fly e The Macphisto com visível falta de habilidade cênica, mas suficiente para encantar os fãs. A piada foi tão bem contada que, somado ao respeito e a credibilidade de que jamais uma banda “séria” como a U2 faria algo assim, ninguém desconfiou de nada.

Por sorte, a enganação deliberada de “Achtung...” foi, em trocadilho com o próprio título, apenas para ver se a galera estava “atenta”. Como ninguém estava, no fundo o tiro saiu pela culatra. O negócio era desistir da palhaçada e fazer algo bom novamente. Fruto de canções surgidas durante a turnê e de suspeitas “sobras” do afamado disco anterior, “Zooropa” mostra porque a U2 chegava, enfim, à maturidade. Improvisos, experimentações, ousadias, ludicidade. É possível sentir um clima de liberdade criativa em suas faixas. Se a ida para Berlim anos antes foi, como fez Bowie, para se afastar do burburinho da mídia, enfim a intenção funcionava para a U2. 

Um rápido paralelo entre as faixas de um disco e outro provam que a turma estava mesmo interessada em fazer o que sempre soube: pop-rock forjado no pós-punk, somado aos elementos do tecno, como downtemto, synth pop e experimental. Na abertura, para uma pirotécnica ”Zoo Station”, mandam ver “Zooropa”, extensa, pouco vendável, sem pressa para começar e nem para terminar. Riff bem elaborado que, lá pelas tantas, ainda sofre uma virada que acelera seu compasso, gerando quase que uma outra música. Excelente cartão de visitas para deixar claro que a U2, definitivamente, havia deixado as máscaras de mosca em segundo plano.

A melódica “Babyface”, algo semelhante em atmosfera a “So Cruel”, de “Achtung...”, faz homenagem ao músico de R&B que influenciaria bastante o som da banda naquele momento. Esta antecipa a primeira obra-prima do álbum: “Numb”. Desviando os holofotes quase monopolizados por Bono, a banda realiza de vez o que prenunciavam na capa de “Rattle...” com The Edge fazendo as vezes de protagonista. E aqui Eno, novamente recrutado como um quinto integrante, faz valer sua arte de produção. E não para “salvar” a música, mas para potencializá-la. Construtiva, a partir de uma programação eletrônica e um riff estetizado, “Numb” vai agregando elementos como bateria, efeitos de teclados, frases de guitarras, sintetizadores e contracantos, como o belo falsete de Bono dizendo versos como: “I feel numb” e “Too much is not enough”. Tão original que é sem comparação com qualquer uma de “Achtung...”.

Outra pérola: “Lemon”. Mais uma cantada em falsete, agora com Bono retomando o centro do palco, lembra “Misterious Ways” por certa latinidade da percussão de Mullen Jr. Mas apenas de longe, pois é muito melhor e bem mais elaborada. A começar pelo riff, este sim minimalista como The Edge é craque, mas saborosamente criativo, forjado apenas no efeito de pedal, que se forma através de ressonâncias. O baixo de Clayton, idem: seguro como sempre, fazendo a base perfeita para esta world music moderna. Mas principalmente: o arranjo de Eno. Nesta faixa fica evidente o quanto o papel do eterno Roxy Music foi fundamental para a retomada da U2 à sua raiz de beleza estética com liberdade e ousadia. Os coros em tom menor, com contracantos acentuados, dão um exótico ar étnico à música. Impossível não lembrar das contribuições de arranjo e melodia de Eno para a Talking Heads em “Remai in Light” (“Born Under Punches”/“Crosseyed and Painless”/”The Great Curve”), de 1980, ou músicas de seus trabalhos solo como “No One Receiving” (de “Before and After Science”, 1977).

clipe de "Lemon", com direção de Mark Neale

Já “Stay (Faraway, So Close!)”, se não supera “One”, sua mais evidente correspondente em “Achtung...”, emparelha, ainda mais porque, balada sentimental tanto quanto, faz paralelo também com outra do álbum anterior, “Until...”, pois ambas são temas de trilhas sonoras de filmes do cineasta alemão Win Wenders – neste caso, a tocante continuação de “Asas do Desejo” homônima à canção. Virando a chave, “Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car” devolve energia a “Zooropa” – aliás, como até então não havia ocorrido. Tecno industrial com um riff bem sacado, bateria eletrizante e uma produção, meus amigos! Que habilidade numa mesa de som tem o sr. Brian Peter George St. John le Baptiste de la Salle Eno! Ele colore a música do início ao fim, ressaltando todas as texturas e detalhes que ela tem de melhor, mas sem tirar o brilho original, deixando os louros para a performance da U2. Distantes da espetacularização da turnê Zoo TV, a banda irlandesa realmente está espetacular.

Se “Daddy’s...” lembra em certa medida “The Fly” e “Zoo Station”, de “Achtung...”, “Some Days Are Better Than Others” equivale a "Tryin' To Throw Your Arms Around The World". Novamente, contudo, vencendo a disputa. E quão simbólica a letra para aquele momento de autorreconhecimento, quase um mea culpa: “Alguns dias você usa mais força do que o necessário/ Alguns dias simplesmente nos visitam/ Alguns dias são melhores do que outros”. Já a escondida “The First Time” é uma surpresa altamente positiva, que começa com uma leve base de baixo sob a linda voz de Bono para ir ganhando, aos poucos, outros instrumentos/elementos, que lhe aumentam a emotividade. Além disso, faz analogia com “Love Is Blindness”, última do trabalho antecessor. Mas como assim, se ela não encerra “Zooropa”? Aham! A estratégia narrativa usada para gerar estardalhaço anteriormente, agora era empregada a favor da feitura da obra. “The First...” prepara o terreno para a penúltima faixa, “Dirty Day”, outra que, assim como “Zooropa”, não se apressa em começar e a se desenrolar. Pop eficiente, tem o detalhe da voz de Bono sobre todos os outros sons, como que viva diante do microfone, expediente imortalizado por Eno e pelo produtor Tony Visconti em “Heroes”, de Bowie, em 1978, daquela mesma inspiradora fase alemã do Camaleão do Rock. 

Eno com Edge e Bono em estúdio
dando as coordenadas pra banda
Toda essa construção narrativa, quase como a de um filme ou de uma ópera-rock (seria a tragédia do famigerado personagem The Fly?), converge para um gran finale: “The Wanderer”. Pode ser que tenha sido coisa de Bono ou dos outros integrantes da U2, mas ninguém me tira da mente que a ideia de chamar o mitológico Johnny Cash para cantar triunfalmente a última faixa do disco foi de Eno. A base totalmente em teclados, contrastando com o estilo country-folk orgânico de Cash, dão uma clara pista de que a música surgiu desta ideia central pensada por ele. O estilo melódico, a reelaboração modernista do rock 50, os coros estilo Phil Spector, o refrão com melodia emotiva terminado em uma nota baixa e melancólica... Tal “The River”, de Eno e John Cale, tal “Golden Hours”, do seu solo “Another Green World”. Muita coincidência. Ou a U2 emulou Eno, ou essa música, meus amigos, é de Eno com participação da U2! O que, na verdade, é uma prova de grandiosidade da banda, que soube abrandar os egos e delegar a alguém um fator importante da obra, mas sem perder sua marca própria. Isso se chama maturidade.

E quanta beleza em “The Wanderer”! Escritos para o barítono embriagado Cash, os versos (de Bono, credite-se) largam dizendo: “I went out walking/ Through streets paved with gold/ Lifted some stones, saw the skin and bonés/ Of a city without a soul” (“Eu saí caminhando/ Pelas ruas pavimentadas com ouro/ Levantei algumas pedras, vi pele e ossos/ De uma cidade sem alma”). Uma clara referência ao clássico “Walked in Line”, imortalizada na voz do errante Homem de Preto, mas também à própria consciência da U2 pelas perigosas trilhas da fama. “The Wanderer” ainda serviu como uma homenagem em vida a Cash. Eterno outsider e já no ostracismo naqueles idos, ele viria a se revitalizar como artista e gravar seus últimos álbuns na série “American”, morrendo 10 anos depois daquela gravação (a versão definitiva de “One”, aliás, é de seu “American III”, de 2000). Um digno final de disco da U2, o mais tocante e melhor de sua discografia, mais bonito até do que “MLK” encerrando “The Unforgatable Fire” ou do que “All I Want Is You” fechando “Ratlle...”. Um final para desfazer mal-entendidos e enterrar qualquer piada de mal gosto que um dia tenham feito.

clipe de "The Wanderer", com participação de Johnny Cash

“Zooropa”, o melhor disco da banda em toda a década de 90 e seu último grande álbum, completa 30 anos de lançamento. Isso nos leva a deduzir que, há três décadas, a U2 desfazia um erro grotesco chamado “Achtung Baby” para, responsavelmente para com sua própria obra, dignidade e reputação, conceber “Zooropa”. O processo de concepção conduzido por Eno, livre das amarras do enterteinment e voltado às origens deles como músicos, foi tão rico, que rendeu, dois anos depois, o ótimo “Passengers: Original Soundtracks 1”, em que encarnam com humildade a inédita nomenclatura para compor trilhas sonoras para diversos filmes. Um pouco do que já era “Zooropa”: uma narrativa, uma história.

O certo seria Bono, Edge, Mullen Jr., Clayton e Eno, assim como fez a Milli Vanilli no passado, chamar a imprensa para uma coletiva e confessarem o engodo de "Achtung Baby" – de preferência, em Berlim, cidade acostumada a reconstruções e onde a farra foi cometida. Mas isso jamais acontecerá. Para mim, contento-me em ouvir “Zooropa” e saber que ele veio reestabelecer minha relação com a U2, o que vinha gradativamente perdendo força e sofrera considerável abalo quando do meu desmascaramento solitário. “Zooropa”, com sua força e identidade, zerou tudo. A U2 está para sempre desculpada.

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FAIXAS:
1. Zooropa - 6:30
2. Babyface - 4:00
3. Numb - 4:18
4. Lemon - 6:56
5. Stay (Faraway, So Close!) - 4:58
6. Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car - 5:19
7. Some Days Are Better Than Others - 4:15
8. The First Time - 3:45
9. Dirty Day - 5:24
10. The Wanderer - 5:42
Todas as composições de autoria de Bono Voz, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Th’ Faith Healers - "Lido" (1992)

 

"Eu estava dirigindo para o meu trabalho estúpido e me vi preso em um engarrafamento gigantesco na estrada. De repente, algo novo flutuou sobre as ondas do rádio... um vocal feminino rosnado e sensual serpenteando em uma batida thumpa-thumpa... furtivo, legal... De repente a coisa toda se tornou selvagem. A cantora sibilou entre os dentes, as guitarras (soavam como 50 delas) gaguejavam e cuspiam, e a maldita coisa toda entrou em hiperdrive. A tempestade se estabeleceu em um ritmo pesado, hipnótico e caótico ao mesmo tempo, a música se agitou e se agitou e só terminou quando caiu no chão com um estrondo. Meu trabalho (e o resto do dia), desnecessário dizer, empalideceu em comparação com esse ataque auditivo. Totalmente perfeito... Eu estava apaixonado."
Dave Ehrlich, músico e produtor


A música é das poucas coisas nesse mundo capazes de me provocar paixões arrebatadoras. E que podem acontecer a qualquer momento. Se ainda é assim comigo hoje com todos os recursos e facilidades que a internet traz, imagine-se antigamente, antes da era digital, quando muita coisa era de difícil acesso, se não, impossível. Tudo era mais complicado e mágico. Podia estar a qualquer lance no rádio, na tevê, nas revistas, nos sebos, na discoteca de amigos e familiares. Pois houve um tempo, nos anos 90, em que um desses locais de pesquisa e reconhecimento eram as locadoras de CD’s. A pouca grana que dispunha de mesada ou estágios mal remunerados era boa parte reservada a gravar em K7 as coisas que vasculhava nas prateleiras das locadoras reforçando antigas paixões e descobrindo novas. Numa dessas ocasiões, lá pelos idos de 1994, uma se revelou para mim. 

Logo que entrei na loja, num início de tarde de um sábado, notei que estava rodando, como sempre faziam, algo interessante, mas que não conhecia. Aliás, não conhecia, mas reconhecia ali elementos que me agradavam muito. Rock alternativo forjado nas guitarras distorcidas, base de baixo bem pronunciada, vozes masculina e feminina se intercalando, bateria forte marcando um ritmo pulsante. Algo entre o indie, o shoegaze, o dream pop, o college, o experimental e o noise rock. Era atmosférico, ruidoso, visceral, melodioso... Lembrava muito Sonic Youth, mas não era, isso eu tinha certeza. Havia algo de Lush, de My Bloody Valentine, de Pixies, mas também dava para ver que não era nenhum deles. De boas, o rapaz da loja me sanou a dúvida: “é este CD aqui”. A capa em si me chamou atenção: uma foto vintage de um camping e as letras em fonte de máquina de escrever, tipo Courier New, escrito apenas o nome do disco e da banda cujo artigo “Os” (“The”), vinha sem a letra “e”: apenas “Th". Era um detalhe, mas muito esquisito e interessante. Tudo aquilo, som, estilo, atmosfera, me cativaram imediatamente. Pronto: paixão. Deu tempo de escolher algum outro disco para levar, mas, claro, não poderia deixar de adicionar à minha sacola também “Lido”, aquele álbum do grupo de rock alternativo londrino ao qual acabava de conhecer Th’ Faith Healers, formado por Roxanne Stephen e Tom Cullinan, nos vocais e guitarras; Ben Hopkin, baixo, e Joe Dilworth, bateria.

Como grandes bandas do underground dos anos 90, a Th’ Faith Healers, tal a Whale, a The La’s e a brasileira 3 Hombres, tem uma carreira curtíssima, mas totalmente assertiva. Tanto que talvez goste até mais do segundo e último disco de estúdio deles, “Imaginary Friend”, de 1994, o qual me motivou, inclusive, a concepção de um conto literário, “Heart Fog”, baseada na música homônima, presente na antologia “Conte uma Canção – Vol. 2”, publicada em 2016 pela Multifoco. Mas “Lido”, além de estar completando 30 anos de seu obscuro lançamento, lá nos idos de 1992, guarda consigo a primazia de ser o trabalho inaugural da banda e o que me fez descobri-la. Além de, claro, merecer estar nesta lista de fundamentais, inclusive já tendo sido responsável pelo primeiro nome do Clyblog, que se chamou por um breve espaço de tempo, em 2008, pelo nome da sua última faixa, a apoteótica “Spin ½”, uma minissinfonia de guitarras altamente distorcidas de quase 10 minutos com samples que sobrevoam, batida cadenciada e loopada a e voz de Roxanne cantarolando um único verso: “Into the sea you must be in the water”. Hipnótica, sensual, inebriante, caótica, tempestuosa, onírica, algo hinduísta. Uma oração ruidosa e barulhenta de um dos melhores finais de discos do rock de todos os tempos, sem exagero.

Mas voltemos ao começo com a música que me fez vidrar na Faith Healers logo que os escutei: “This Time”. Exemplar no que se refere ao estilo da banda, tem letra curta, geralmente repetida várias vezes (“Let's do it, whereby/ this time, you die/ if not, quite soon/ maybe by this afternoon”), como um mantra nas vozes em uníssono de Roxanne e Cullinan, sobre uma massa de ruídos eletrificados. O minimalismo abre espaço para o experimentalismo e, principalmente, as melodias muito bem criadas pela banda. Pode ser um riff simples, repetido, dissonante, mas invariavelmente muito inspirado, de quem sabe o que está fazendo e explora suas bagagens musicais.

Bem produzidos por eles próprios, os Faith Healers exploram ao máximo na faixa "A Word of Advice" os detalhes do som metalizado das guitarras, enquanto as vozes, despretensiosas, cantam sem muito alarde. Isso, até a música explodir no refrão em barulho. A mixagem orgânica da gravação, sensível a qualquer ruído, dá a sensação de uma banda tocando ao vivo, inclusive na captação dos "defeitos", como o do som de um nariz aspirando o ar, o que lembra o conceito de produção de Flood para PJ Harvey em “To Bring you my Love”, de três anos mais tarde. Parecido com este trabalho de PJ também é “Hippie Hole”. Pós-punk com umas quebradas funkeadas, traz essa fórmula sintética infalível da Faith encapsulada por uma timbrística cirurgicamente suja. Nela, aliás, Roxanne canta com fúria, com o microfone rascante, longe da sutileza desafetada do começo.

Com subidas e descidas (ao paraíso da melodia e ao inferno do barulho), “Don’t Jones Me” retraz a letra sucinta que mais serve de cama para o rock livre da Faith, espécie de Can dos anos 80. Aliás, o clima é bastante parecido com esta e outras bandas da kratrock alemã, como a Neu! e a Harmonia. Não à toa eles versam a clássica alternativa “Mother Sky” da Can, a qual ouvi com os ingleses primeiro. Embora a original seja incomparável, até pela ousadia visionária dos alemães, a leitura da Faith Healers é daquelas que não deixam a desejar. Coisa de banda realmente identificada com seus ídolos, como a Living Colour fez para com “Memories Can’t Wait”, da Talking Heads, ou a Nirvana com “The Man Who Sold the World”, de David Bowie.

“Repetile Smile” e “Moona-Ina-Joona”, na sequência uma da outra, têm riffs tão consistentes quanto improváveis. Ninguém, não fosse uma banda forjada na sonoridade atípica do shoegaze e com referências muito próprias, ousaria criar. Que sonzeira! Se em “Moona...” valem-se do uníssono infalível de “This Time” e "A Word...”, em “Repetile...” é a voz sensual e cativante de Roxanne que prevalece. Ela sabe que não é uma grande cantora. Mas quem disse que é esta a intenção? Aliás, é justamente esta postura insolente roqueira que faz com que ela passeie naturalmente por diferentes formas de cantar com um lirismo espontâneo e encantador. É isso que se vê na balada "It's Easy Being You", a mais “calma” do disco (embora também não se contenham em adicionar guitarras pesadas bem ao final): um timbre jovem e solar. Porém, já na rascante “Love Song”, que de balada romântica só tem o nome, ela vai do doce à sujidade. Principalmente no refrão, quando sua garganta faz soltar gritos carregados de tesão e lamento.

Quando conheci a Th’ Faith Healers, Sonic Youth, Pixies, My Bloody Valentine, Lush, The Breeders e muitas outras bandas já eram realidade para os meus ouvidos. Tanto que ouvi-los não foi uma novidade e, sim, um reconhecimento. Neles eu ouvia todas essas bandas e conseguia entender com mais acuidade aquilo que a Velvet Underground propunha 30 anos antes – inclusive, nas dobradinhas das vozes de Cale e Reed com a de Moe Tucker. Com a Th’ Faith Healers eu descortinaria a Can, tão fundamental para o rock moderno. E descobri depois, que não fui apenas eu que me surpreendi com a Th’ Faith Healers na primeira vez que os escutei, bem como que havia uma legião de fãs escondida nos subterrâneos da internet com relatos muito parecidos com o meu. Mas o mais importante foi a descoberta de que, para mim, a Th’ Faith Healers era a banda que eu sempre gostei, mas não sabia ainda. Era como se eles já estivessem na minha vida desde sempre: bastava apenas que eu me deparasse com aquele CD rodando na locadora para que este laço nunca mais se desfizesse.

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FAIXAS:
1. "This Time" (Tom Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:09
2. "A Word of Advice" - 06:22
3. "Hippy Hole" - 03:20
4. "Don't Jones Me" - 06:18
5. "Reptile Smile" (Th' Faith Healers) - 04:57
6. "Moona-Ina-Joona" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 03:14
7. "Love Song" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:38
8. "Mother Sky" (Holger Czukay/ Michael Karoli/ Jaki Liebezeit/ Irmin Schmidt/ Damo Suzuki) - 04:17
9. "It's Easy Being You" - 02:12
10. "Spin 1/2" - 09:34
Todas as composições de autoria de Tom Cullinan, exceto indicadas


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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 21 de março de 2022

Suzanne Vega - “99.9 F°” (1992)

 

“'Foi muito emocionante trabalhar com ele, porque a música era sua paixão e ele sabia muito sobre isso.”
Suzanne Vega sobre Mitchell Froom, em entrevista de 2017

"Você me parece/
Como um homem/
A ponto de queimar/
99,9 graus Fahrenheit"
Da letra da faixa-título

Dizem que as paixões são febris. Intensas, podem durar pouco como o fulgurante instante de um gozo, mas nem por isso - na verdade, inclusive por isso – deixam de ficar marcadas para sempre na pele de quem sente. E quando se juntam paixão carnal e espiritual, então! Aí o ser humano atinge o raro momento de completude. Suzanne Vega pode dizer que viveu um momento assim há exatos 30 anos. Cantora e compositora de mão cheia e poetisa afiada, esta nova-iorquina filha de um escritor e de uma professora traz na voz doce e afinada a pronúncia cristalina de um inglês o qual se vale com sensibilidade e inteligência literária, buscando referências tanto nas feministas quanto na geração beat. De ouvido raro, adiciona ainda à sua musicalidade a música brasileira, latina, celta e do Oriente. Foi com essa personalidade única que Suzanne surgiu com seu folk pop para o showbizz no elogiado disco de estreia, em 1985. 

No entanto, já no segundo trabalho, “Solitude Standing”, de dois anos depois, aconteceu-lhe o que todo artista pop almeja: fama. O hit “Luka”, 3º lugar na Billboard Hot 100 e indicado a Grammy em três categorias, estourou e tornou-a mundialmente conhecida. Porém, perigosamente estigmatizada. Suzanne Vega havia virado sinônimo de “Luka”. O que poderia ser bom para muito artista descompromissado com sua obra, para alguém como ela, que sabia ter muito ainda a dizer, definitivamente não era. Parafraseando a letra da própria música, Suzanne precisava sair daquele mesmo segundo andar em que Luka morava e mudar-se para outro lugar longe dali. 

Depois de “Solitude...”, veio ainda o belo “Days of Open Hand”, de 1990, nova parceria com o produtor e arranjador Anton Sanko, com quem havia obtido o seu até hoje maior êxito comercial. Mas Suzanne sentia que precisava de algo mais, algo que a movesse, que a desacomodasse. Que fizesse pulsar seu coração de forma diferente. Uma paixão. Foi então que o destino lhe pôs na frente o músico e produtor Mitchell Froom, que havia trabalhado com Elvis Costello e Los Lobos. Suzanne e Froom identificaram-se, apaixonaram-se e passam a viver sob o mesmo teto, tanto do estúdio quanto de casa. Num intervalo de 6 anos, casaram-se, tiveram uma filha, Ruby, e produziram dois discos, os melhores da carreira de Suzanne: “Nine Objects of Desire”, de 1996, e o primeiro em colaboração: o não coincidentemente intitulado “99.9 F°”: a temperatura do corpo, correspondente a 37,72°C, a partir da qual pode-se considerar que alguém está com febre.

O disco, de fato, respira essa ruptura artística e pessoal de Suzanne, que urgia mostrar isso. O recado é dado já no primeiro verso de “Rock in this Pocket”, a impressionante faixa de abertura em que ela diz elegantemente, como lhe é característico, mas de maneira abertamente confessional: "Desculpe/ Se eu puder/ Volte sua atenção/ A meu caminho/ Um momento/ Eu não vou implorar/ Não é muito/ É o que eu preciso". E que refrão! (“And what's so small to you/ Is so large to me/ If it's the last thing I do/ I'll make you see” - “E o que é tão pequeno para você/ É tão grande para mim/ Se é a última coisa que eu faço/ Eu vou fazer você ver”). A ideia do álbum está já toda ali, em brasa: sonoridade moderna, discurso intimista, texturas, poesia e a evolução conceitual de uma artista parindo a si própria para uma nova vida.

Em “99.9F°”, mantém-se a seresteira da tradição voz e violão e a criadora de "chicletes de ouvido" melodiosos, mas adiciona a isso a visão de uma mulher madura, sensualizada e de veias pulsantes. É esta a ideia da brilhante “Blood Makes Noise”, em que uma programação eletrônica engendra um ritmo que supõe o som de um fluxo sanguíneo, como se fosse possível captar - e transformar em música - a sensação de um corpo afogueado de tesão, de urgência. A sonoridade dá forma a esta nova proposta na injeção pertinente de sons sintetizados, vestindo a música naturalmente criativa dela com uma roupagem moderna. Longe da singeleza melancólica de “Luka”, dá pra ouvir até os respiros de Suzanne enquanto canta este rap estilizado e potente: “Mas o sangue faz barulho/ É um zumbido no meu ouvido/ O sangue faz barulho/ E eu não posso ouvi-lo/ No espessamento do medo”.

O excelente clipe de "Blood Makes Noise"
dirigido pelo alemão Nico Beyer

A faixa-título, por sua vez, leva ainda mais às entranhas a dicotomia carne/espírito. Se “Blood...” emula através de sons mecânicos a ideia de um organismo vivo, “99.9° F” reconduz a artista a origens selvagens, instintivas. Numa espécie de tribal pop, Suzanne dança nua em plena floresta para atrair o seu amor: “Algo legal/ Contra a pele/ É o que você/ Pode estar precisando”. Prenúncio de sexo quente.

Já na lírica “In Liverpool”, outra joia do disco, vê-se a cantora e compositora de temas melodiosos como “Night Vision”, de “Solitude...”, e “Thin Man”, do posterior “Nine...”, certeira em sua delicadeza. Tão lírica que foi a música escolhida por Suzanne para dividir os vocais com o tenor italiano Luciano Pavarotti em “Pavarotti & Friends”, daquele mesmo 1992. Aliás, lirismo este o qual a norte-americana nunca abandonou. Com “Blood Sings”, que vem na sequência, ela reitera a temática "blood on the tracks" do disco – já a essas alturas o mais ousado de sua carreira. Porém, fez resgatando a singer woman dos primórdios. Somente voz e violão de aço tocado com dedos chorosos e uma melodia primorosa, a la Bob Dylan e Leonard Cohen, dois de seus ídolos, igual os que ela inundou seu primeiro disco, em 1985. “Quando o sangue vê sangue/ De si próprio/ Ele canta para se ver novamente/ Ele canta para ouvir a voz que é conhecida/ Ele canta para reconhecer o rosto”. Triste e profundamente bela. 

A ótima banda, que conta com o próprio Froom aos teclados e arranjos, mais Bruce Thomas, ao baixo, Jerry Marotta, bateria e percussão, e David Hidalgo, Tchad Blake e Richard Pleasance, nas guitarras – além de Suzanne no violão base –, dá uma reviravolta no climão deixado pela faixa anterior e engata a simpática “Fat Man And Dancing Girl”. Algo como um eletro-jazz em que se ouve com destaque o baixo, aqui tocado por Jerry Scheff, sob a arquitetura sonora estilosa dada por Froom na mesa de estúdio. Mesma coisa ele faz em “(If You Were) In My Movie”, de ares arábicos como Suzanne já havia feito em “Room of the Street”, de “Days...”, mas agora mais texturizado, encorpado. Por feitos como este, ele recebeu indicação ao Grammy de produtor do ano em 1993 por este disco.

Sequência de fotos da arte do encarte:
Suzanne descobre-se feminina e plena

Já em “As a Child”, Froom põe sua musa a brincar num carrossel de parque de diversões, literalmente, como uma criança, enquanto que “Bad Wisdom”, logo em seguida, quebra de novo o estado de euforia. Introspectiva, tem a cara dos tradicionais temas do folclore norte-americano, especialidade de Suzanne, a se ver pela cara country que ela sabe muito bem imprimir como já o fizera em “Predictions”, de “Days...”, e “Cracking”, do álbum de estreia. E como Suzanne está cantando bem! Impossível não lembrar uma de suas principais referências no canto, a bossa-novista brasileira Astrud Gilberto

Num disco tão peculiar como este, até o “perfect pop” não é, assim, tão “perfeito”. Diferentemente do que fez em exemplos clássicos disso, como “Book of Dreams” e a própria “Luka”, em “When Heroes Go Down” ela não respeita o tempo de duração comum a uma música de trabalho (entre 3min30 e 4min), e condensa a ideia em menos de 2 min! Mas o faz aproveitando cada segundo, visto que é daquelas de sair dançando imediatamente. Com cara de que se está se encaminhando para o final, “As Girls Go”, com um excelente solo de guitarra de Richard Thompson ao final, tem, regendo toda a banda, o violão. O velho violão desde sempre tocado com muita habilidade por Suzanne, outra de suas marcas. 

Pinho, aliás, que encerra triunfalmente um álbum surpreendente até nisso. Se começou e se manteve repleto de efeitos e experimentações, agora baixa a rotação e aposta na simplicidade do acústico. “Songs of Sand”, deprê, mas absolutamente poética em letra e melodia, faz Suzanne remeter ao violão perfeito e a colocação exata das frases vocais de Nick Drake. As cordas, arranjadas por Froom, adensam ainda mais essa atmosfera. É o violão também que volta puro novamente na valseada “Private Goes Public” (faixa adicional da edição europeia), em que se ouvem apenas as cordas para finalizar o repertório: as do seu vocal e as do instrumento.

Mesmo com esse encerramento, “99.9F°” é, nos seus contornos e contrastes, um instante de êxtase. Naquele começo de anos 90, Suzanne sabia que nunca mais faria o sucesso que fez com “Luka”, e pelo visto nem desejava isso. Queria, a partir de então, satisfazer-se, estar plena como mulher e artista, e em Mitchell Froom ela encontrou abrigo para tal aspiração existencial. Mas como o fogo dos arrebatados, a chama foi arrefecendo. Como uma fogueira acesa, ainda teve força para iluminar o sensual “Nine...”, registro daquele momento da relação em que ainda desconfiavam se o ardor poderia transformar-se em amor eterno. Não aconteceu: Suzanne e Froom separaram-se e nunca mais voltaram a trabalhar juntos. A temperatura, antes febril, foi baixando cada vez mais no ponteiro do termômetro até voltar a um grau de normalidade corporal. A paixão, tal uma enfermidade deleitosa, enfim, passou. Suzanne, hoje casada há 16 anos com outro homem, talvez veja um disco como 99.9F°”, gravado há três décadas, como algo valioso mas pertencente a um passado muito distante. Da MPB que ela tanto adora, talvez se enxergue naqueles sábios versos de Chico Buarque“vestígios de estranha civilização”.  Já Froom, por sua vez, quem sabe ainda pense consigo mesmo ouvindo a mesma música: “Futuros amantes, quiçá/ Se amarão sem saber/ Com o amor que eu um dia/ Deixei pra você”.

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FAIXAS:
1. “Rock In This Pocket (Song Of David)” - 3:31
2. “Blood Makes Noise” - 2:28
3. “In Liverpool” - 4:41
4. “99.9F°” - 3:15
5. “Blood Sings” - 3:18
6. “Fat Man And Dancing Girl” - 2:18 (Mitchell Froom/ Suzanne Vega)
7. “(If You Were) In My Movie” - 3:06
8. “As A Child” - 2:56
8. “Bad Wisdom” - 3:22
9. “When Heroes Go Down” - 1:54
10. “As Girls Go” - 3:26 (Nils Petter Molvær/ Vega)
11. “Private Goes Public” - 1:57
Todas as composições de autoria de Suzanne Vega, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 14 de junho de 2021

R.E.M. - "Out of Time" (1991)

 

“Não esperávamos o que aconteceu com ‘Losing my Religion’. É uma música de cinco minutos sem refrão perceptível, e o bandolim é o instrumento principal. Não há absolutamente nenhuma maneira de prever que a música seria um sucesso."
Mike Mills

"Eu realmente gosto muito do disco. Na verdade, eu amo o disco.”
Michael Stipe

O início dos anos 90 foi especial para apreciadores de rock de qualquer canto do planeta, inclusive no Sul do Brasil, sempre longe demais das capitais. Surgiam ótimas e promissoras bandas tanto nas paradas de sucesso quanto na cena alternativa, despontavam alguns músicos de fina estirpe, as rádios e uma ativa MTV repercutiam muita coisa boa, festivais legais aconteciam pelo mundo. Mas aquele período foi também de confirmação de velhos conhecidos. Oriundos dos anos 60, 70 e 80, muitos artistas em plena atuação faziam alguns de seus melhores trabalhos naquele começo da última década do século XX, o mesmo que viu, nos anos 50, o rock surgir enquanto movimento jovem e cultural de massas. Foi assim com Iggy Pop, Lou Reed, The Cure, Neil Young, Metallica, U2 e vários outros. Sabendo-se de seus potenciais e história, de certa forma esperava-se deles que trouxessem novidades a cada lançamento. Porém, por incrível que pareça, não se alimentava essa expectativa quanto a R.E.M. – ou, quem sabe, temporariamente se esquecia deles.

Talvez por terem demorado três anos para lançar algo novo ou por virem de uma série de ótimos discos, desembocando no acachapante “Green”, a impressão que dava era a de que eles haviam se livrado dessa cobrança. A ausência do peso da responsabilidade foi positiva, pois fez com que a chegada de “Out of Time” fosse ainda mais impactante naquele ano de 1991. O primeiro single, "Losing My Religion", cujo videoclipe foi ao mesmo tempo um choque e um sucesso imediato, tratava-se de um perfect pop com as características que lhe são comuns: refrão pegajoso, riff fácil e inteligente, melodia envolvente, evolução com carga emotiva. Mas, mais do que isso, um tom melancólico, grave, contristado, algo entre uma balada com ares sacros e um pop rock de massas. Fora isso, o instrumento principal é um incomum bandolim. E que letra! “Aquele sou eu no canto/ Aquele sou eu sob os holofotes/ Perdendo minha religião/ Tentando te acompanhar/ E eu não sei se eu consigo fazer isso”. Sabia-se que se estava presenciando o nascimento de um clássico do rock.

Dada a primeira boa impressão, o então novo disco da R.E.M., porém, levou um pouco para chegar no ainda atrasado mercado fonográfico do Brasil daqueles idos. "Losing My Religion", por sua vez, cumpria o papel de reacender os holofotes para o quarteto Michael Stipe, Peter Buck, Mike Mills e Bill Berry. A se ver pelo primeiro hit, prenunciava-se um disco acima da média. Foi então que o dia de conhecer “Out...” chegou ao Rio Grande do Sul (provavelmente, se não o primeiro estado no Brasil, dos primeiros a ter esse privilégio) através da finada Rádio Ipanema, que aos finais de tarde geralmente rodava na íntegra alguma novidade do mundo do rock. 

E as expectativas foram todas confirmadas. “Radio Song”, que abre o álbum, assinalava que a R.E.M. vinha, sim, para engrossar a fila das bandas veteranas em plena forma naquela virada de anos 80 para os 90. Um britrock ao estilo das melhores coisas da Ride e Stone Roses, com um ritmo funkeado, riff matador e carregado das guitarras espetaculares de Buck. Ainda assim, o arranjo também comportava uma orquestra de cordas e uma boa dose de variações de andamento. Mas isso não é tudo: dividindo os vocais com Stipe está o rapper KRS-One. Primeiro, soltando frases e melismas com o sotaque das ruas norte-americanas, o que dá uma personalidade totalmente própria à música. Depois, ao final, KRS-One engata, aí sim, somente ele um rap, encerrando a canção com o provavelmente quarto ou quinto ritmo apresentado na melodia. Que cartão de visitas “Radio Song”!

A audição de “Out...” se desenrolava e, a cada nova faixa, mais se confirmava que se estava diante de um grande disco. "Low" emulava com competência The Doors, tanto no canto de Stipe a la Jim Morrison e no riff de guitarra circunspecto, que lembra temas como "When the Music's Over" e "Strange Day", quanto, principalmente, no órgão Hammond como o de Ray Manzareck. Bem ao estilo guitar melody, a R.E.M. volta à sua pegada dos discos “Document”, “Reckoning” e, principalmente, “Green”, em "Near World Heaven", outra música de trabalho do disco, esta, cantada por Mills. Conforme se avança no sulco, percebem-se semelhanças com a construção de repertório desses álbuns anteriores que tão certo havia dado, os quais intercalam temas mais alegres com outros mais melancólicos, mais agitados com lentos, mais distorcidos com melodias doces. Mérito do produtor Scott Litt.

O que “Out...” guarda também, no entanto, são mais maravilhas. A emocionante instrumental "Endgame" é um country altamente melodioso em que, além da instrumentalização caprichada com escaleta, violão, cordas e percussões delicadas, ouve-se a voz de Stipe apenas para cantarolar melismas como mais um instrumento. Após uma canção tristonha, vem mais uma pulsante. E em alto astral, por sinal. Sinônimo de música pop alegre, o segundo maior hit do disco, "Shiny Happy People", traz, além do termo "alegria" no próprio título, a esfuziante participação de Kate Pierson, da B52's, musa da divertida new wave, dividindo os microfones com Stipe, que pega emprestada a ideia tão bem executada por Iggy Pop com a cantora um ano antes noutro sucesso daquele começo de década, "Candy". Assim como “Losing...” e espelhando-se num tema de função parecida de “Green”, “Stand”, é mais um perfect pop que também marcou época por conta de sua melodia animada e de seu clipe, que trazia uma cenografia festiva e colorida como a música.

O pop rock eficiente de "Belong" completa-se com uma nova redução na rotação e mais uma bela canção: "Half a World Away", balada misto da atmosfera folk de "Endgame", o vocal anasalado típico de Stipe em "Losing...", as cordas de “Radio Song” e a levada Doors de "Low" – desta vez trocando o órgão por um cravo. Na sequência, Mills encabeça outro tema assim como fez em “Near...”. É “Texarcana”, novamente um rock com magnífico riff e complemento de cordas. A construção do repertório é tão parecida com a de “Green”, que mais uma vez as faixas se espelham. Caso de “Country Feedback”, balada que remete a “The Wrong Child” do álbum anterior. Esta prepara o terreno para o encerramento com "Me in Honey", em que se repete a dobradinha Stipe-Pierson num tema pop se não à altura de grandes faixas do próprio “Out...” e nem do gran finale de “Green” (o rockasso "I Remember California"), ao menos mantém com dignidade a boa qualidade.

Chegado ao final daquela primeira audição de “Out...”, ação se repetiria centenas de vezes nesses últimos 30 anos que o disco completa em 2021, ficava evidente que a R.E.M. se superava. E se não era melhor do que seu antecessor “Green” – difícil tarefa que a banda jamais atingiria até se dissolver, em 2011 – ao menos aperfeiçoava seu estilo e discurso. Adicionava-se às guitarradas de Buck outras formas de criar riffs; ampliava-se a instrumentalização; aprofundam-se na raiz da música norte-americana; Stipe apurava ainda mais sua poesia e canto. Presente em listas de grandes discos dos anos 90, como a dos 100 Álbuns das revistas Rolling Stone e Slant, “Out...” ganhou três Grammy Awards em 1992 (Melhor Álbum de Música Alternativa e dois para "Losing My Religion"). E se hoje o disco é considerado um clássico, à época de seu lançamento ele alçava o grupo a um novo patamar: o de banda que transpunha a fronteira do alternativo para o pop. O esquecimento temporário da R.E.M. havia feito bem tanto para poderem apresentar aquele novo trabalho quanto, principalmente, para atingirem livres de preconceitos um feito que poucos conseguem: o de tornar-se internacionalmente conhecido, mas manter o status de cult.

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FAIXAS:
1. "Radio Song" - 4:13
2. "Losing My Religion" - 4:26
3. "Low" - 4:55
4. "Near Wild Heaven" - 3:17
5. "Endgame" - 3:48
6. "Shiny Happy People" - 3:45
7. "Belong" - 4:05
8. "Half a World Away" - 3:26
9. "Texarkana" - 3:37
10. "Country Feedback" - 4:07
11. "Me in Honey" - 4:06
Todas as músicas de autoria de Berry, Buck, Mills e Stipe

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Daniel Rodrigues