“É
muito fácil para mim falar de ‘Spinnig Away’, porque ela tem uma característica
que eu gosto muito, e que já eu usei antes também. Eu gosto muito de ter
contrastes de velocidade. Por exemplo, de ter ritmos staccato muito, muito rápidos, ritmos picotados, em
que vocais muito líquidos correm por cima deles. Algo como duas qualidades bem
opostas: um ritmo que é staccato e
ligeiramente oscilante. Se você ouvir a forma como os tambores começam nessa
música, eles têm uma sensação estranha e fora de equilíbrio. Seu som é nítido.
Os vocais e os violinos, por outro lado, não são tocados com o mesmo espírito,
eles estão quase em um universo musical diferente. Eles flutuam em cima deste
mar de ação, esse mar de atividade. E os violinos tocam em um compasso
diferente.”
Brian Eno
“Wrong Way Up” foi uma paixão instantânea. Adquiri o CD poucos anos depois de seu lançamento, 1990, mas já o mirava desde quando li na revista Bizz que Brian Eno – de quem já gostava, pois até lhe tinha em K7 “Before and After Science”, de 1977, além de admirar as parcerias/produções a bandas e artistas que de muito já ouvia, como as com David Bowie, Talking Heads, U2, Devo, entre outros – e John Cale – de quem sabia em parte da importância e qualidade também pelas produções a outros artistas e pelo The Velvet Underground, obviamente, mas não tinha ainda noção de sua magnitude como hoje – haviam, finalmente, se juntado para um trabalho em comum. Os dois já tinham se pechado 16 anos antes no show ao vivo transformado em disco “June 1, 1974”, projeto conjunto com Nico e Kevin Ayers que, justamente por contar com tantos talentos juntos, não abria espaço para cada um explorar mais de si mesmos. Os dois também participavam frequentemente dos projetos de um e de outro (Cale em “Another Green Wolrd”, de Eno, de 1975; Eno em “Fear”, de Cale, de 1974), mas algo único, em par, não. “Wrong...” surgia-me, assim, com uma grande expectativa de poder ouvir reunidos aqueles que considero, juntos com Phil Spector e George Martin, os dois maiores produtores de estúdio da história, duas figuras fundamentais para o rock e com bagagens ricas, até parecidas em alguns aspectos. Britânicos (um nascido na Inglaterra, o outro no País de Gales), ambos fundaram bandas clássicas, Roxy Music e Velvet Underground, respectivamente, e foram os integrantes que saltaram fora no início (Eno, depois do primeiro disco; Cale, após do segundo) para tocarem seus projetos solo. De formação acadêmica e erudita, também sempre tiveram estilos marcantes em tudo que produziram e, muito por conta disso, preferiram trilhar por uma carreira que apontava não só para a musical, mas para outras artes, como plásticas, cinematográfica e cênica.
O que esperar, então, deste aguardado encontro? Ainda mais considerando que lhes era comum há bastante tempo o valor das parcerias, basta ver as de Eno (David Byrne, Jon Hassell, Harold Budd, Robert Fripp) e as de Cale (Nico, Terry Riley, Lou Reed). Por que nunca haviam pensado em algo próprio até então? A resposta parece nos direcionar a uma mera coincidência ou falta de oportunidade, pois o resultado é uma afinidade tamanha que chega, às vezes, a parecer que sempre compuseram juntos. Para mim, o efeito foi o que lhes disse na primeira linha deste texto: arrebatamento imediato, que perdura até hoje por um álbum que não canso de ouvir, um dos preferidos de minha discoteca.
Apesar da sugestão do nome, algo como “caminho errado ascendente”, em que se nota certa ironia por parte de dois artistas de vanguarda que sempre optaram pelo caminho autoral e não-comercial, o disco é um verdadeiro caminho fácil. Fácil de ouvir, fácil de gostar. Complexo em harmonias e arranjos, mas totalmente aprazível e saboroso aos ouvidos. Composto de 12 faixas, metade cantada por cada um e todas compostas em dupla (exceto “The River”, só de Eno), “Wrong...” tem cara de projeto artesanal, haja vista a sucintez da instrumentalização e até do projeto gráfico (do próprio Eno), mas que consegue ser universal e supermoderno sem soar pretensamente high-tech, resgatando referências folclóricas, pop e clássicas. Um resumo do que poderia ser chamado de world music. Valendo-se dos predicados de cada um, como o conhecimento apurado de ambos da mesa de estúdio, a técnica de Eno aos teclados e sintetizadores, seus cuidados com os detalhes, a pegada erudito-modernista de Cale e, claro, a criatividade absurda dos dois como compositores, “Wrong...” lhes extrai o que há de melhor. “Lay my Love”, bela e imponente, abre dando este tom: simbiose entre instrumentos eletrônicos e acústicos, polirritmia, escalas em intervalos quebrados – típico de Cale – e referências étnicas principalmente nos contracantos – típico de Eno. “Empty Frame”, um rock-soul anos 50, e “Crime in the Desert”, espécie de twist minimalista, ambas sob uma textura eletrônica e também na voz solo de Eno, trazem o mesmo conceito.
Cale sussurra a leve “In the Backroom”, de clima árabe especialmente no andamento. O canto elegante do galês volta em “Cordoba”, estupenda, das melhores do álbum. Minimalista e propositalmente em volume mais baixo que o restante das faixas, é toda composta em detalhes de texturas e sonoridades, em que os elementos vão se incorporando um a um sobre uma base de teclados e uma batida programada. Muito cool, nela se sentem os ecos das tradições moura e.católica da histórica cidade espanhola. A sempre marcante viola de Cale tange um curto mas exuberante solo que remete à atmosfera misteriosa da região da Andaluzia.
“Spinning Away”, mais uma maravilhosa, tem visível mão dos dois. A começar pela de Cale, que pinta com o som de sua viola com cores renascentistas esta peça. Mas a melodia é bastante característica de Eno, tais como as que coescreveu com Byrne em “Remain in Light”, do Talking Heads, em 1980, ou as que já experimentava em “Before...” ("No One Receiving"), visto suas camadas de linhas vocais em tom médio lembrando cantos tribais e a base percussiva da guitarra, que se conjuga com a programação rítmica. A cara da proposta do disco.
Mais uma linda canção e outro show de Cale aos vocais, charmoso e variante nas escalas: a enigmática “Footsteps”. Com uma aura oriental, seja nos acordes agudos de teclado-solo, seja nos adornos que adensam seu “climão” sombrio, seja no som seco da tabla tocada por Ronald Jones. Ao final da faixa, esta mesma batida amadeirada marca em três tempos espaçados o começo da seguinte e, talvez, melhor do disco – embora seja difícil a escolha. “Been There, Done That” é ritmada e num tom mais alto, o que contrasta com a gradação média para menor da soturna anterior. Nela, a ideia de percutir os fios dos instrumentos de corda aparece de novo. De refrão pegajoso (“Been there, done that/ Been there, don’t wanna go back”), é um dos melhores exemplos de pop world music que pode existir. Novamente, o entrecruzamento de cantos aproveita muito bem os timbres aveludados tanto de Eno quanto de Cale – como ocorrera em outra ótima faixa, “One World”, música de trabalho do álbum –, assemelhando-se um com o outro em vários lances.
O disco fecha com talvez a mais bonita música de todo o cancioneiro de Eno: “The River”. Balada estilo anos 50, em que o tom grave de sua voz cantando com suavidade faz-se extremamente marcante (“So deep in the water/ Sleep, dark as the night...”), é uma cantiga de ninar doce e lírica escrita para sua filha Irial no dia de seu nascimento – o que justifica ser a única sem parceria na composição. A participação do outro filho do compositor, Roger Eno, aos teclados, aumenta o clima familiar e emotivo da canção, que desfecha com o violino de Neil Catchpole desenhando o andamento de maneira lânguida e cadenciada, até sumir leve e gradualmente, caindo em um sono tranquilo.
“Wrong...” é um disco que não data, semelhante a "Nightclubbing", de Grace Jones (1981), "Low", de Bowie (1976) ou “Off the Wall”, de Michael Jackson (1979), trabalhos que souberam casar a tecnologia que suas épocas lhes disponibilizaram com uma essência tradicional, trazendo inovações de estilo e técnica, mas, principalmente, por conterem um conceito bem definido e apurado. Por isso mantêm-se frescos através do tempo, atemporais.
Porém, mais do que a contribuição que trouxe ao universo pop, o disco é, antes de mais nada, um feliz encontro de artistas muito afins, onde fica evidente a identidade e admiração mútuas que têm um pelo outro. Tarimbados àquela altura, podiam muito bem, como vários outros veteranos já incorreram, trilhar pelo “caminho fácil”: gravar standards um de outro, intercalando-se. Cale cantaria, por exemplo, "Third Uncle" ,“Babies on Fire" e outras quatro e Eno fazia o mesmo: ficava com versões de "All Tomorrow's Parties", "Heartbreak Hotel" e completava com mais quatro. Pronto: fechava um disco com 12 faixas, quando muito mais umazinha nova (a de trabalho, claro) para justificar para a mídia um reencontro. Mas estamos falando de John Cale e Brian Eno, meus caros, dois dos maiores nomes da música do século passado e que, graças!, ainda vivos e produzindo bem, continuam sendo permanentemente ascendentes anos 2000 afora e até quando existir esta fascinante arte chamada música.
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FAIXAS:
1. Lay My Love - 4:44
2. One Word - 4:34
3. In the Backroom - 4:02
4. Empty Frame - 4:26
5. Cordoba - 4:22
7. Spinning Away - 5:27
8. Footsteps - 3:13
9. Been There, Done That - 2:52
10. Crime in the Desert - 3:42
11. The River - 4:23
Ouça:
Brian Eno e John Cale_Wrong Way Up
por Daniel Rodrigues