Sei que praticamente tudo já foi dito sobre "Bacurau", mas queria registrar aqui, como amante do cinema, uma enorme satisfação em ver, de novo, um filme brasileiro figurando com destaque, sendo reconhecido e premiado em festivais internacionais, especialmente em Cannes onde o Brasil já brilhara em outras oportunidades com obras de arte como "O Cangaceiro", que em 1953 levava o prêmio de melhor filme de aventura, com "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", que rendeu o prêmio de direção a Glauber Rocha, em 1969, e "O Pagador de Promessas" que desbancou, entre outros, "O Anjo Exterminador", de Buñuel, para ficar com a Palma de Ouro em 1962, voltando à evidência agora com um filme tão oportuno e relevante, e que resgata com dignidade diversos elementos da tradição cinematográfica brasileira. "Bacurau" é uma resposta em forma de arte aos ataques, restrições, limitações, cortes que a cultura brasileira vem sofrendo desde a vigência do atual governo e, como se não bastasse o "desaforo", a afronta, para não cair no vazio ou na desimportância, ainda ganha os holofotes do mundo e não passa despercebida. Meio faroeste, meio drama, meio suspense, meio policial, e até meio terror, o filme dos pernambucanos Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho é construído pacientemente inserindo aos poucos elementos que vão nos elucidando a verdadeira trama, contando para isso com uma excelente fotografia, uma trilha sonora precisa e atuações impecáveis, com destaque para o atemorizante Lunga, vivido por Silvero Pereira e para a brilhante Sônia Braga, como a médica alcoólatra Domingas. "Bacurau" é um posicionamento diante da postura entreguista e lambe cu do atual governo brasileiro perante os norte-americanos, um grito de resistência, um brado retumbante. Uma declaração: nós não vamos nos entregar facilmente. Em "Bacurau", a população do minúsculo povoado que dá nome ao filme e que, assim, do nada, some do mapa, se vê ameaçada diante da atuação de estrangeiros que vão à região com a intenção de caçar os cidadãos do lugar, por mero esporte, entretenimento, com a anuência do prefeito local, simplesmente porque quem vive ali, para eles não faz a menor diferença no mundo e sequer é gente. Mas no fundo a coisa não é tão simples assim, pois, como podemos observar no filme, a região que já fora um rico pólo aquífero, inclusive sediando uma barragem, naqueles dias vive uma deplorável crise de abastecimento de água. Triste "semelhança" com um país que se submete a capacho, entregando suas riquezas de mão beijada para os gringos por sua eterna síndrome de vira-lata e também, na verdade, por outros tantos interesses escusos. "Bacurau" é Glauber, é Lima Barreto, é Nelson Pereira, Anselmo Duarte, Guimarães Rosa, é Portinari, é Lampião, é Canudos... "Bacurau" resgata o que o brasileiro realmente tem de melhor em arte e o que tem de mais forte em atitude. Se seu final sombrio, diante da revelação de que aquilo tudo é só o começo, nos faz vislumbrar tempos penosos, por outro lado nos estimula a buscar lá no fundo o espírito de luta e coragem que sempre guiou essa gente e, de certa forma, nos encorajam a afirmar, diante da ameaça do inimigo: "Podem vir. Estaremos prontos".
A comunidade reage. "Aqui, não!"
(muito Glauber essa cena)
Um dos trunfos do cinema moderno é o da subversão. Mais do que somente
a criatividade estética trazida pelos cinemas novos ou da reelaboração
narrativa proposta pelos “rebeldes” da Hollywood nos anos 70, o elemento que de
alguma maneira transforma o status quo,
que contraria o esperado pelo inconsciente coletivo, é o que determina com
maior eficiência a ponte entre moderno e clássico em cinema. Afinal, por que
até hoje é tão impactante o pastor assassino de “O Mensageiro do Diabo” ou a
brincadeira com a dualidade de gênero de “Quanto Mais Quente Melhor”, mesmo
ambos os filmes contados em narrativa tradicional? Em “Aquarius”
(2016), o diretor Kleber Mendonça Filho,
diferente do que fizera em seu filme anterior, o ótimo “O Som ao Redor”,
vale-se desta premissa com sucesso ao reelaborar, hibridizando ambas as formas,
significados muito peculiares do universo da história que se propôs a contar,
construindo uma narrativa impregnada desses elementos não raro surpreendendo o
espectador.
O longa conta a história de Clara (Sônia Braga, magnífica), uma
jornalista e crítica de música aposentada. Viúva, mãe de três filhos adultos e
moradora de um apartamento repleto de livros e discos na beira da praia da Boa
Viagem, em Recife, ela se vê ameaçada pela especulação imobiliária quando a
empresa detentora do seu edifício – o emblemático Aquarius – tenta a todo custo
tirá-la de lá para demolir o prédio e construir um empreendimento gigante e pretensamente
moderno. Fiel a suas convicções e sabedora de seus direitos, Clara resiste, não
sem consequências e retaliações.
As praias de Recife, elemento presente nos filmes
de Kleber Mendonça Filho.
Antes de qualquer coisa, impossível dissociar a história de Clara do
momento do Brasil. O embate entre o poder estabelecido do capitalismo e a
resistência do pensamento humanístico, à luz do maniqueísmo ideológico que
tomou o País nos últimos anos, fazem de “Aquarius” um símbolo do cinema
brasileiro da atualidade, o que, em parte, explica o sucesso de bilheteria (mais
de 55 mil pessoas já assistiram). Entretanto, é a forma com que Mendonça Filho
escolha para contar que faz de “Aquarius” uma obra marcante e, talvez, tão
apreciada. Ele vale-se de elementos da cultura de sua terra natal, Pernambuco,
e principalmente da Recife enquanto símbolo de metrópole brasileira, com seus
medos, violências, angústias e neuroses, mas também as benesses: a ligação com
o mar e o mangue, o desenho da cidade, sua rica cultura e suas memórias. Aliás,
memória é o substrato do filme. Contrapondo permanentemente passado e presente,
o diretor suscita a crítica ao perpassar questões imbricadas à sociedade, como
a desigualdade socioeconômica, a “commoditização” dos relacionamentos, a
relação entre gerações e os preconceitos, sejam estes raciais, sociais, de
gênero ou condição física.
É com base nesta visão muito pessoal, a qual não esconde o inimigo nem
exclui o belo, que “Aquarius” se monta. Muitos dos significados vão ganhando
forma à medida que o filme transcorre, às vezes quase uma suspeita inconscientemente
desconsiderada assim que o enigma se dissolve. Como a relação de Clara com seu
sobrinho, a qual, num primeiro momento, pode parecer ao espectador, que ainda
não teve informações suficientes sobre ela (ou melhor: tem informações
suficientemente superficiais para desconfiar do mais vulgar e aparente),
tratar-se de um caso amoroso liberal e promíscuo. A explicação vem sutil, sem
alarde, mas dizendo muito sobre a personagem e a história.
A personagem, aliás, carrega em si outro símbolo: o da mulher
emancipada e independente. De pronto percebe-se que Clara é reconhecida como
profissional. Porém, à medida que se entende melhor, revela-se que ela, no
passado, optou em deixar os filhos ainda pequenos com o pai para não perder a
oportunidade de ganhar a vida no centro do País. De certa forma, um pouco da
própria Sônia Braga, que, de modo a dar a natural continuidade internacional à
sua trajetória já restringida no deficiente Brasil pré-democracia, precisou dar
as costas às críticas “vira-latas” e rumar para a indústria norte-americana –
sem, ao contrário do que lhe acusavam, perder identidade e raízes.
Sônia Braga, magnífica, à frente do famigerado ed. Aquarius"
Estes dois exemplos mostram bem o jogo de ressignificações proposto por
Mendonça Filho. Largamente empregadas por cineastas maduros do cinema moderno,
como os irmãos Coen e Quentin Tarantino, a ressignificação tem o poder de
desfazer mitos e quebrar expectativas, muitas vezes a custa de anticlímaces e
desconstruções do imaginário sociocultural. “Aquarius” mostra não o
relacionamento de uma “tiazona” com um rapazote como propositadamente dá a
entender, mas, sim, uma possível, afetuosa e saudável relação entre tia e
sobrinho. O filme mostra não um estereótipo de heroína vencedora e invencível –
e, por isso, desumanizada e reforçadora da ótica sexista –, mas uma mulher com
suas qualidades e defeitos, com inquietudes e paixões tentando fazer o melhor
na vida.
Maior evidência dessa ressignificação é a cena do nu parcial da
personagem. A mensagem imediata que se transmite, ao vê-la começando a se
despir para tomar banho, é o de que se verá a antiga musa e símbolo sexual
despida agora com idade avançada. “Como estará o corpo de Sônia Braga aos 66
anos? Será que está uma velha gostosa?” Mendonça Filho quebra a lógica rala não
ao confirmar o que se suspeitava no que diz respeito às marcas da idade terem
chegado à Dona Flor. Fazendo emergir outro nível de mensagem, mais profundo e
agudo, mostrando-a com um dos seios amputados, consequência de um câncer da
personagem Clara. Em milésimos de segundo, entremeiam-se o preconceito com o
deficiente físico – algo explorado ainda mais e sem rodeios no decorrer –, com
a mulher “não-jovem”, com a mulher em si.
Interessante notar que, a título de narrativa, o cineasta dá um passo
atrás no que se refere à modernidade na comparação com seu filme anterior.
Enquanto “O Som ao Redor” é uma trama coral ao estilo das de Robert Altman e
Paul Thomas Anderson, “Aquarius”, por se concentrar numa personagem, torna-se
mais linear e anedótico. O que não é nenhum demérito, pelo contrário. Assim
como o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu, que depois de uma
trilogia de sucesso de tramas corais (“Amores Perros”, “21 Gramas” e “Babel”) e
de passar pelo radicalismo de "Birdman" optou acertadamente pelo formato
clássico para realizar "O Regresso", seu grande filme. Mendonça Filho parece de
certa forma e em noutra realidade repetir o recente feito de Iñárritu: iniciar
a carreira explorando uma linha intrincada de narrar para, em seguida,
aperfeiçoar seu estilo e simplificar a narrativa voltando as atenções a um herói/heroína.
Em “Aquarius”, contado em capítulos tal qual a construção literária de Stanley Kubrick e Tarantino – inclusive, com um prólogo, com Clara ainda jovem, em 1980
–, Mendonça Filho equilibra com assertividade a forma tradicional e a moderna
de contar a história.
Outros elementos de ressignificado são compostos de maneira muito
segura pelo diretor, que conduz o filme num ritmo cadenciado, por vezes
poeticamente contemplativo, como um ir e vir da onda do mar da praia. Igual a
“O Som ao Redor”, em “Aquarius” o mar é um olho divino que a tudo enxerga. O
som, inclusive, faz-se presente novamente e, agora, é demarcado pela música. De
Queen a Gilberto Gil, passando por Roberto Carlos e Taiguara, as canções pontuam
o filme do início ao fim, ajudando a construir a narrativa e dando-lhe uma
dimensão tanto documental quanto lúdica. Novamente, Mendonça Filho reelaborando
o passado para trazer luzes ao presente. Na guerra indigna que Clara tem de
deflagrar contra a construtora que quer tomar o prédio sob a égide monetária e
desfazendo o real valor sentimental e simbólico, fica clara a mensagem que o
autor que transmitir: o mundo precisa de mais poesia. Se Cazuza integrasse a
trilha com estes versos de “Burguesia”, não seria nenhum absurdo: “Enquanto houver burguesia não vai haver
poesia”.
Para além da discussão partidária e da polêmica em torno da afronta
direta ao Governo no episódio da classificação etária e da não escolha pelo
título à concorrência ao Oscar de Filme Estrangeiro, o objeto do filme é por si
saudavelmente revolucionário, o que o torna, por esse viés, sim, bastante
político. Como um “Sem Destino” ou “Um Estranho no Ninho”, marcos de uma era logo
ao serem lançados, “Aquarius” está igualmente no lugar e na hora certa, tornando-se
de imediato importante como registro do Brasil do início do século XXI
polarizado ideologicamente. Polarização largamente mais desfavorável do que
proveitosa. A ideia do que Clara representa, “minoria empoderada” e não sujeita
aos preceitos verticais da sociedade machista e ditada pelo dinheiro, celebra
uma verdadeira liberdade de pensamento e conduta cidadã a que tanto se aspira
entre os tantos tabus que hão de serem quebrados. Os novos significados, uma
maneira de pensar despida de pré-concepções e amarras sociais, é o que intentam
aqueles que acreditam em igualdade e fraternidade. Se isso concorda ou discorda
do pensamento de esquerda ou de direita, é outra questão. “Aquarius” é, isso
sim, um libelo da necessária subversão em tempos de intolerância.