E esse formato inquieto, inconformado, ágil, é exatamente o que se encontra nas páginas de "Os Frutos da Terra". Gide transita entre a prosa, o verso, a crônica, a ficção, a autobiografia, o onírico, o fantástico, de maneira apaixonada e apaixonante, com o prazer de quem saboreia a vida a cada gota.
André Gide relata experiências, reais e imaginárias, em lugares que visitou ou em que nunca esteve, com pessoas que conhecera de verdade ou que nunca existiram ("... se nele falo pr vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi (...), não é por hipocrisia..."), que o teriam feito adquirir um gosto ainda maior pela vida, numa verdadeira revelação dos prazeres nas pequenas coisas, pelo valor de cada momento, de cada vivência.
Conforme disse anteriormente, "Os Frutos da Terra" atua na minha vida quase como um conselheiro e essa sensação de proximidade, de cumplicidade fica amplificada pelo fato do autor se dirigir, praticamente durante todo o livro, a um interlocutor fictício a quem ele chama de Nathanael, mas que por conta de sua pessoalidade e sinceridade, faz com que pareça estar se dirigindo de uma forma muito direta a nós leitores, como seu estivesse sentado com a gente, debaixo de uma árvore, conversando sobre as coisas da vida ("Nathanael, gostaria de te dar uma alegria que nenhum outro te houvesse dado ainda. Não sei como dá-la e no entanto possuo essa alegria. Desejaria voltar-me para ti mais intimamente do que ninguém o fez ainda (...) Desejaria aproximar-me de ti, e que me ames.").
O livro se divide em duas partes, "Os Frutos da Terra" e "Os Novos Frutos", escritas, curiosamente, em épocas diferentes, com um grande espaço de tempo entre a conclusão de um (1897) e o início do outro (1935). Embora contenha uma boa unidade e uma coerência, a primeira metade é, por assim dizer, mais encantadora que a complementar, que por sua vez é um pouco mais reflexiva e espiritualizada. No entanto não seria justo afirmar que a sequência seja "pior" que o escrito original pois há nela há passagens belíssimas, o teor das reflexões é tão valioso quanto o do inicial e a qualidade literária permanece intocada. "Os Novos Frutos", dentre tantas frases, trechos, pensamentos que poderia destacar, traz os maravilhosos "Encontros", capítulos em que o autor conhece ou interage com outros personagens (reais ou não), que de alguma forma, lhe proporcionam alguma nova perspectiva para sua existência, como o que conhece o inventor da casa de botão, e a impagável conversa com Deus, num "papo-reto", sincerão no qual, se tivesse acontecido mesmo, não duvido, que o Criador dissesse exatamente o que Gide imaginou. Reproduzo aqui parte da passagem:
"- Pois bem. Então escuta-me - disse Deus - Alguns desejariam sempre que eu interviesse e perturbasse para eles a ordem estabelecida. Seria complicar demasiado as coisas, e trapacear, se eu não permanecesse fiel a minhas leis. Que aprendam um pouco melhor a submeter-se a elas; que compreendam que é dessa maneira que melhor proveito tirarão delas. O homem pode muito mais do que imagina.
- O homem está na merda - disse eu.
- Pois que saia dela - continuou Deus; - é para patentear-lhe a minha estima que o deixo safar-se sozinho."
Depois de todas as lições, experiências, conselhos, absorvidos, devo admitir que, invariavelmente, ainda hoje, mesmo depois de já tê-lo lido inúmeras vezes, chego às últimas páginas às lágrimas. Mesmo quando é pretensioso em aconselhar, Gide é fascinante, e sua convicção no que aprendeu na vida e os caminhos que o fizeram chegar às conclusões que ali descreve, são cativantes o bastante para que o leitor feche a última página determinado a viver mais e mais e mais e tente, cada dia, ser uma pessoa um pouquinho melhor, e para afiançar o que digo, assim termina "Os Frutos da Terra":
"Nathanael, agora joga fora meu livro. Emancipa-te dele. Abandona-me (...) Estou farto de fingir educar alguém. Quando te disse que te queria igual a mim? É porque diferes de mim que te amo; só amo em ti o que difere de mim (...).
O que um outro poderia fazer tão bem quanto tu mesmo, não o faças. o que um outro poderia dizer tão bem quanto tu mesmo, não o digas - e o que poderia escrever como tu, não o escrevas. Só te apegues em ti ao que sintas que não se encontre alhures senão em ti, e cria em ti, impaciente e pacientemente, ah! o mais insubstituível dos seres.".
Cly Reis