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quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Sinéad O'Connor - "Am I Not Your Girl?" (1992)

 



"São as músicas
que cresci ouvindo
e me fizeram querer
ser cantora."
Sinéad O'Connor



Sabe aqueles discos que a gente acha que ninguém mais gosta além de você? Pois é, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor era assim pra mim. Já era fã da cantora de seus trabalhos de carreira, mas aí na compilação "Red Hot + Blue" coletânea com vários artistas em homenagem a Cole Porter, descobri a veia jazz da irlandesa. No projeto da organização Red Hot, em benefício às vitimas da AIDS, Sinéad interpretava, de forma magnífica, a lindíssima "You do something to me" e aquilo me arrebatou. Mas acredito que a experiência tenha sido importante para ela também, uma vez que a cantora lançaria dois anos depois, um álbum só de standarts do jazz.

Sinéad canta com elegância, com precisão, confere a emoção exata para cada canção.

A faixa de abertura já justificaria todos os elogios à obra: "Why don't you do right?", canção originalmente do filme "As noivas do Tio Sam", mas imortalizada na voz da sensual personagem de desenho Jessica Rabbit, ganha carne e osso na boca de Sinéad O'Connor numa interpretação provocativa, insinuante, venenosa, digna da femme-fatale do desenho animado.

"Bewitched, Botched and Bewildered" que a segue, conjuga magicamente melancolia, delicadeza e graça, com a cantora colocando uma doçura tal, uma fragilidade na voz... que chega a ser algo realmente tocante. "Secret Love", originalmente cantada por Doris Day, nos anos 50, tem um arranjo mais aberto, mais luminoso, mas Sinéad canta num ar quase confidente ao revelar, "Once I had a secret love" e logo abre o peito para revelar que não  tem segredos para mais ninguém, "My secret love is no secret anymore". E "Black Coffee", gravada anteriormente por nomes como Sarah Vaughn e Ella Fitzgerald, e trilha do filme "Algemas Partidas" em 1960, confirma perfeitamente aquela atmosfera misteriosa de filme noir.

No entanto é em "Success has made a failure of our home" que a irlandesa despeja sua maior carga emocional em uma das canções do disco. Apoiada por um arranjo jazz-rock intenso, Sinéad numa interpretação dramática, encarna uma mulher desesperada, quase indo às  lágrimas, se desfazendo, se desintegrando diante de seu homem, implorando para que ele simplesmente diga que ela ainda é sua garota.

Outro ponto alto do disco é a ótima "I want to be loved by you", do filme "Quanto mais quente melhor", na qual Sinéad conserva a discontração e a leveza da original, interpretada por Marilyn Monroe, com direito até a um "Boop-boop-a-doop!", que, se não tem a mesma sensualidade da loira, tem graça e doçura.

A sombria canção do compositor húngaro Rezső Seress, letrada por László Jávor, "Gloomy Sunday", associada frequentemente a suicídios, traduzida para o inglês e cuja interpretação mais famosa é de Billie Holiday, ganha uma verão não menos emocional, intensa e cheia de possíveis "leituras" e "interpretações" na voz da irlandesa que, sabe-se bem, embora tenha morrido de causas naturais, tentara o suicídio diversas vezes durante a vida.

"Love Letters", clássico que já esteve nas trilhas de diversos filmes e peças, com os mais variados andamentos e ênfases, neste disco ganha uma sonoridade imponente de metais com uma poderosa introdução de uma orquestra de jazz, enquanto Sinéad, se comparada a outras grandes vozes como Nat King Cole e Elvis Presley que já interpretaram a canção, opta por uma interpretação sóbria, comedida, que lhe confere um aspecto ainda mais fragilizado.

Em uma leitura extremamente melancólica e dramática do clássico da bossa-nova, "Insensatez", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a irlandesa demonstra toda a importância e a influência da música brasileira em sua formação. "Scarlett Ribbons", canção de Natal na sua origem, aqui adquire uma carga quase fúnebre. Muito se dá pelo formato: a voz acompanhada apenas por uma flauta, e o tom cru do estúdio, com o ouvinte podendo captar todas as respirações, as pausas, os vazios...

"Don't cry for me, Argentina", do musical Evita, aparece em duas versões, uma cantada, que se não é nada excepcional, no mínimo é, inegavelmente, melhor do que a da Madonna, e uma instrumental, num jazz descontraído e acelerado, que, praticamente fecha o disco, que ainda tem uma mensagem pessoal da cantora sobre a dor (o que também fez ainda mais sentido depois das circunstâncias de sua morte).

Na época que soube do projeto da irlandesa, tratei de dar um jeito de dar um jeito de conseguir aquele seu novo álbum, só que duro como era na época (e ainda sou), o jeito foi gravar e ter em K7. Muito ouvi aquela fita. Gastei os cabeçotes do walkman com ela. Até evoluí depois, embora ainda sem grana, para o CD gravado, mas nunca havia tido uma mídia original. Até que numa dessas feiras de vinil, encontrei por um preço bem razoável o "Am I Not Your Girl?" em LP. O vendedor, um senhorzinho muito simpático que me contou ter sido DJ em festas disco dos anos 70, se derreteu pelo álbum. Disse ser aquele, na sua opinião, um grande disco, trabalho que muita gente não valoriza mas que para ele era o melhor da cantora, interpretações  incríveis e tudo mais... Se eu tivesse alguma dúvida, as teria abandonado naquele momento com uma manifestação tão  entusiástica como aquela. Mas a admiração pelo disco não parou nele: tenho o hábito de compartilhar nas redes sociais minhas trilhas sonoras do dia e num dia desses qualquer, ouvindo o álbum, lancei lá no Facebook, no Instagram, no Twitter, um "Ouvindo agora, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor". Ah, foi uma enxurrada de likes e comentários. "Grande disco", "Esse disco é muito bom", "Dos meus preferidos", e etc. Aí  que eu descobri que não sou só eu que adoro esse disco. E, cá entre nós, um disco com tantos clássicos, canções eternizadas pelo cinema, músicas já interpretadas por nomes imortais, admirado desta maneira, e com essa importância na vida de tanta gente, não pode ser considerado menos que um ÁLBUM FUNDAMENTAL

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FAIXAS:
1. "Why Don't You Do Right?" - Joe McCoy (2:30)
2. "Bewitched, Bothered and Bewildered" - Lorenz Hart, Richard Rodgers (6:15)
3. "Secret Love" - Sammy Fain, Paul Francis Webster (2:56)
4. "Black Coffee" - Sonny Burke, Paul Francis Webster (3:21)
5. "Success Has Made a Failure of Our Home" - Johnny Mullins (4:29)
6. "Don't Cry for Me Argentina" - Andrew Lloyd Webber, Tim Rice (5:39)
7. "I Want to Be Loved by You" - Bert Kalmar, Harry Ruby, Herbert Stothart (2:45)
8. "Gloomy Sunday" - László Jávor, Sam L. Lewis, Rezső Seress (3:56)
9. "Love Letters" Edward Heyman, Victor Young 3:07
10. "How Insensitive" - Vinicius de Moraes, Norman Gimbel, Antônio Carlos Jobim (3:28)
11. "Scarlet Ribbons" - Evelyn Danzig, Jack Segal (4:14)
12. "Don't Cry for Me Argentina" (Instrumental) - Andrew Lloyd Webber, Tim Rice (5:10)
13. "Personal message about pain (Jesus and the Money Changers)" (Hidden track) - O'Connor (2:00)

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Ouça:



por Cly Reis

sexta-feira, 19 de março de 2021

"O Homem que Sabia Demais", de Alfred Hitchcock (1934) vs. "O Homem que Sabia Demais", de Alfred Hitchcock (1956)

 

Alfred Hitchcock, se fosse um técnico de futebol, seria daqueles que mostram talento ainda jovens, quando dirigia suas primeiras e pequenas equipes do futebol inglês. Nascido na última década do século XIX, no pacato condado de Essex, situado a sudeste da Inglaterra, aquele gordinho reprimido não tinha porte nenhum para ser um astro dos gramados (ou das telas). Porém, inteligente e detalhista, dava toda a pinta de que seu negócio era comandar os outros com a cabeça. Das primeiras experiências no teatro, ainda na década de 10, não demorou muito para que, já em Londres, passasse a se aventurar naquela nova arte a qual, no período da transição entre o cinema mudo para o falado, início dos anos 30, ajudou a formar a gramática tal como se conhece hoje. Um dos filmes dessa época é “O Homem que Sabia Demais”, de 1934, a primeira versão de um clássico que o próprio diretor refilmaria em 1956. Porém, em outras condições bem diferentes.

Mas para entender o porquê do remake – bem como qual é o melhor entre os dois, nosso objetivo – devemos voltar à carreira de Hitchcock. Com filmes como “Jovem e Inocente”, “Os 39 Degraus”, “Agente Secreto” e o próprio “O Homem...”, o exigente professor Hitch, como seus jogadores respeitosamente o chamavam, fez belas campanhas no futebol inglês, levando times de orçamento modesto a bons resultados. Era período de entre-Guerras na Europa, a grana andava curta e mal tinha pra pagar a folha dos atletas. Mas apertando daqui, inventando uma trucagem dali, usando a criatividade na mesa de edição e valendo-se do já diferenciado senso de enquadramento que tinha, Hitchcock conseguiu, se não montar times campeões, pelo menos de futebol vistoso. Resultado? Aquilo que acontece com talentos emergentes: ganhou vitrine. Em 1940, Hollywood compra seu passe. É como se o cara estivesse comandando um time mediano na segunda divisão e fosse contratado direto por um clube da principal liga de futebol mundial. A partir de então, Hitchcock só voltaria à sua Inglaterra se quisesse. E voltou.

Foram 19 filmes nos 22 anos que separaram o primeiro “O Homem...” do remake, boa parte clássicos sagrados da cinematografia mundial. O ponto importante deste ínterim, contudo, como em todo o retrospecto de Hitchcock, é a progressão exponencial de sua obra em todos os quesitos, seja em conceito, desenho de cena, fotografia, edição, efeitos e condução. Hitch avançava de uma produção para a outra, trazendo quase que invariavelmente inovações técnicas e narrativas que o fizeram consagrar-se já àquela época como principal cineasta dos Estados Unidos. Um mito ainda vivo. Para se ter uma ideia desta evolução, “Interlúdio” (1946), considerado um dos maiores filmes dos primeiros 50 anos do cinema à sua época; “Pacto Sinistro” (1951), noir com a assinatura do mestre do suspense; e “Janela Indiscreta” (1954), para muitos, seu maior filme, são três exemplos de uma sequência de realizações perfeitas de sua filmografia neste intervalo de tempo. A cada projeto, um considerável passo rumo à excelência. A cada nova temporada, um time melhor e mais artilheiro.

A segunda versão de “O Homem” faz parte desta linha progressiva estilística e narrativa de Hitchcock – que desembocaria, dois anos depois, em “Um Corpo que Cai” e, outros quatro, em “Psicose”, seus dois mais aclamados. Um filme tão clássico que só os aficionados ou curiosos para saberem da existência de uma versão inglesa antecessora e feita pelo próprio diretor. Ao rodar “O Homem” pela segunda vez, em que parte das filmagens ocorrem na sua Inglaterra (e a qual retornaria apenas em 1972, para filmar “Frenesi”), era como se o já tarimbado técnico, depois de conquistar o mundo e dirigir os principais times de sua época, fizesse questão de vestir novamente a camiseta daquele que o projetara. Mas, agora, com a estrutura de grande clube, com investimento dos cartolas e plantel estelar com direito a Doris Day e James Stewart como casal norte-americano McKenna, ao invés dos ingleses Bob e Jill Lawrence, vividos por Leslie Banks e Edna Best no primeiro.

"O Homem que Sabia Demais" (1934) - completo

"O Homem que Sabia Demais" (1956) - principais cenas

“O Homem” de 1956 faz jus ao reconhecimento que tem. Neste, a equipe inteira bate um bolão. Thriller com suspense, aventura e espionagem na medida certa entre tensão e distensão; cenários vistosos; roteiro envolvente; interpretações marcantes; e sequências/cenas históricas. Falando assim, parece que o jogo já está resolvido antes de a bola rolar em favor do time mais novo, colorido, abastado, tecnicamente perfeito, né? Mas não é exatamente assim, pois quando o juiz apita é o mesmo esporte que ambos os adversários estão disputando. 

Dotado de qualidades inquestionáveis, “O Homem” de 1934 guarda elementos fundamentais que inspirariam o remake, como o argumento (o sequestro da/o filha/o de um casal de turistas por malfeitores ao se envolverem acidentalmente em uma trama internacional de assassinato) e a proposta funcional dos personagens (o pai destemido em busca de seu rebento; o assassino cruel e amoral; a religiosa perversa; a mãe desesperada mas atuante, etc.). Ou seja: a ideia basal estava lá nos tempos de vacas magras – o que acaba por ser um elogio, visto que o cineasta tirou “leite de pedra” de um projeto tão ousado para a época. Quase gol, aquela que pega na trave e assusta. Até mesmo algumas cenas são "reaproveitadas" de um filme para o outro, como a da missa na capela, inclusive no tom misto de suspense e comédia. Igualmente, a clássica sequência do concerto no Royal Albert Hall, em Londres, cenário para ambas as produções, muito parecidas em montagem, trilha e enquadramento, e que Hitchcock refez em tecnicolor nos anos 50.

Depois de dar um susto com uma bola no poste, tanto pela sequência do concerto quanto pela ágil edição da cena inicial do esqui nos Alpes da Suíça, que impacta o espectador já nos primeiros segundos de filme, o time do antigo “O Homem”, surpreendendo a todos, larga na frente mal a bola começa a rolar. Aí, não demora muito, meio que desnorteado, o filme de 56, que entrou em campo cadenciando o jogo, sofre novo golpe. Sabe aquele meia habilidoso e experiente entre os “pratas da casa” que foi contratado do futebol alemão? Um com histórico de mau comportamento, que atende pelo nome de Peter Lorre – e cuja camiseta não tem um número, mas sim uma estranha letra “M“ estampada... Sim, ele, o raçudo jogador apelidado pela fiel torcida de "Vampiro de Düsseldorf" por chegar "mordendo" seus adversários, com a rara qualidade de um dos maiores de todos os tempos em sua posição, marca mais um gol numa bucha de fora da área. Impiedoso como o seu personagem, o matador Abbott. Para surpresa geral, são 10 minutos de partida e já está 2 x 0 para o time de 34!

Como fez Didi após o gol de Liedholm para a Suécia na final de Copa de 1958, James Stewart, que não era capitão mas um líder nato da equipe como o autor da “folha seca”, pega a bola calmamente de dentro da rede e a leva para o círculo central. Ninguém quer sair em tamanha desvantagem assim, obviamente, já nos primeiros minutos, mas tem muito tempo de partida ainda. Guiados pelo talento de Stewart – o melhor mocinho hitchcockiano disparado – e pela mão firme do seu técnico, que confia no esquema tático proposto, o time mais novo põe a bola no chão e naturalmente faz valer a sua visivelmente melhor qualidade técnica. Consertando passagens mal resolvidas do primeiro (como a dramaticidade da aflição dos pais ao saberem do sequestro), dando-lhe maior unidade narrativa (o segundo tem aproximadamente 1 hora a mais de duração) e, principalmente, criando cenas novas (como a da loja de taxidermia) e recriando outras (a morte do espião a céu aberto no Marrocos ao invés de uma festa confinada na Suíça), o remake marca, ao natural, o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto. O primeiro tempo se encerra, e apenas um time agora domina as ações.

No segundo tempo, com o time encaixado, “O Homem” de 56 segue com maior posse de bola, fazendo um quinto gol com a nova sequência no Albert Hall, que passa a ter 12 minutos de duração (6 a mais do que o original) e onde o mestre do suspense se esbalda em técnica, reaproveitando a ideia do primeiro, mas refinando-a em todos os aspectos: fotografia, trilha, cenografia e principalmente, edição. É como se uma jogada bonita fosse ensaiada e reensaiada exaustivamente até funcionar como que (ou literalmente) por música. Desnorteado, o filme de 34 se perde totalmente em campo e apresenta um final medíocre, apressado, querendo que o jogo termine logo. A sequência do tiroteio dos bandidos com a Scotland Yard, muito mal concluída com o tiro desferido pela própria Jill (que arranca a arma das mãos do policial, que não oferece nenhuma resistência...) é, convenhamos, sofrível. Nada comparada à brilhantemente tensa cena da resolução da trama na escadaria na casa do embaixador em que a sintonia entre a música que Jo McKenna está tocando ao piano com a ação do marido, que resgata o filho das mãos dos bandidos naquele momento, fecha o placar com o gol de misericórdia. É goleada! O juiz, em respeito ao próprio Hitchcock, tanto o vencedor quanto o perdedor, não dá nem acréscimos. Final de partida: 6 x 2 para o remake de “O Homem”.

Sequência do concerto no Albert Hall 
(filme 1934: 6 min - filme 1956: 12 min)

 

Na coletiva, depois daquelas perguntas sem grande serventia, como: “Qual a sua emoção ao voltar a treinar um time na Inglaterra depois de tanto tempo fora do país?” ou “Por que o senhor, que sempre entra em campo em algum momento, não faz sua tradicional ‘ponta’ justo neste que é tão vencedor?”, um repórter, finalmente, faz a pergunta que os colegas deveriam ter feito: “Professor Hitchcock: por que o senhor decidiu refilmar ‘O Homem’ e por que esta nova realização é melhor que a primeira na sua opinião?”. A resposta veio com a sabedoria de quem conhece como ninguém as quatro linhas – as do gramado e a das telas: "Vamos dizer que a primeira versão é o trabalho de um talentoso amador e a segunda foi feita por um profissional." Entrevista encerrada, mas a torcida aguardava seus ídolos na saída. A galera, extasiada, ovacionava principalmente o seu técnico cantando a plenos pulmões: “o professor Hitch é o homem que sabe demais!”


À esq., cenas de "O Homem que Sabia Demais" de 1934, cuja diferença para
o remake de 1956 não é apenas do p&b para o colorido, mas também
a lente Panavision mais ampla. Mas vamos aos enfrentamentos! Bem acima,
os dois vilões: o craque Peter Lorre e o apenas competente Bernard Miles,
quesito que pôs um dos gols na conta do time mais antigo. Mas na sequência,
o escrete de 1956 começa o seu passeio (e passeio sem sequestro de criança, viu!?).
Na cena do telefonema dos sequestrados para os pais, a tomada em plongê com 
Doris Day e James Stewart, que virou uma marca do filme. Na terceira fila,
a tomada quase idêntica da arma que atira no diplomata entre as cortinas
do Royal Albert Hall. Por último, o espião após levar um tiro confidencia
aos protagonistas (no filme de 34, à mãe, e no de 56, ao pai): o cineasta aperfeiçoa
os mínimos detalhes desta importante cena para a trama na refilmagem.

 

Sinceramente, foi quase covardia colocar esses dois 
para disputar uma partida, algo comparável aos sêniores 
contra os profissionais em plena forma. Mas campeonato é assim. 
E olha que teve até susto no início do jogo com “O Homem” dos anos 30
 marcando 2 logo de cara. Mas com a bola no pé, não deu outra: 
o time de 56 tomou conta das ações e ninguém mais segurou este 
que um dos maiores clássicos da filmografia do professor Hitch. 
Futebol inglês, afinal, também pode ser bonito.



Daniel Rodrigues

terça-feira, 11 de julho de 2017

"O Inquilino", de Alfred Hitchcock (1927)


Não é sempre que um artista consegue, desde cedo, estabelecer um estilo próprio de produzir sua arte. Isso pode acontecer com pintores, músicos, escritores e, claro, com cineastas. Não se trata de demérito, afinal, na maioria das vezes, para se chegar a uma síntese de elementos conceituais que pertençam ao universo do autor e se manifestem com inteireza na obra, carece, sim, que se percorra algum chão.

A inconsistência das primeiras obras, entretanto, parece não valer para todos os criadores do cinema, principalmente, quando se está falando de gênios como o inglês Alfred Hitchcock. “O Inquilino” (The Lodger: A Story of the London Fog), de 1927, seu primeiro longa-metragem – ainda da fase muda e rodado na Inglaterra 13 anos antes de ele se radicar nos Estados Unidos –, guarda muito dos elementos estilísticos que adotaria em sua extensa, exitosa e referencial filmografia. Descontada, claro, a ainda pouca experiência que os 28 anos lhe ofereciam, bem como a carência de recursos de toda a Europa do período entre-Guerras, nota-se no filme tanto as trucagens técnicas criativas quanto os elementos narrativos que consagrariam o “mestre do suspense” e, mais do que isso, ajudariam a formatar a linguagem do cinema comercial no decorrer do século XX.

A começar pela história: pequena, tensa e baseada em temáticas que se sustentam em conflitos psicológicos. Um serial killer, ao estilo Jack, O Estripador, inicia uma série de assassinatos em Londres, tendo como fator em comum o de suas vítimas serem todas mulheres loiras. Um novo hóspede, Jonathan Drew (Ivor Novello), chega ao hotel do casal Bounting e aluga um quarto. O homem tem estranhos hábitos, como o de sair em noites nevoentas. Ele também guarda a foto de uma moça loira, o que faz com que a suspeita das mortes facilmente recaiam sobre ele. Daisy (June Tripp), a filha dos Bouting, também loira, é modelo e está noiva de um detetive. Incomodado com a presença de Jonathan e pressionado a achar uma solução para os crimes, o policial o prende, acusando-o de ser o assassino.

O esquisito inquilino Jonathan (Ivor Novello): acusação, culpa e crime
O argumento é suficiente para Hitchcock desenvolver os conflitos internos dos personagens e as naturais consequências desse desequilíbrio, que tanto sustentarão seus filmes subsequentes. A dúvida e a ambiguidade, por exemplo, estão no centro da história de “O Inquilino”. O comportamento esquisito de Jonathan, que coloca interrogações no que se refere a sua sanidade, intenções e até gênero sexual, desencadeiam a desconfiança da polícia e da sociedade e, consequentemente, a imputação da culpa. Não é difícil encontrar em toda a filmografia de Hitchcock personagens levianamente acusados antes de poderem se explicar, casos de “Os 39 Degraus” (1935), “Interlúdio” (1946), “O Homem Errado” (1956), “Cortina Rasgada” (1966) ou “Frenesi” (1972), pegando-se um por década.

Em sequência, tomadas de escada de "O Inquilino", "Chantagem e Confissão" e "Um Corpo que Cai"
Igualmente, “O Inquilino” já apresenta a inventividade na utilização dos recursos técnicos, pelos quais Hitch não apenas surpreendeu espectadores muitas vezes ao longo dos anos como, mais que isso, ajudou a inventar soluções, tornando-se um dos precursores dos efeitos visuais tal qual se convencionou no cinema. Assinaturas de sua direção, como a fotografia expressionista, os enquadramentos bem pensados, detalhes de objetos, zoons, close no rosto de uma mulher gritando e até travelling dentro de um automóvel dão ao filme um ritmo bastante atrativo e pop. Ainda, as vertiginosas tomadas em plongée de escadaria, fator narrativo imprescindível a filmes dele de épocas distintas, como "Chantagem e confissão" (1929) e "Um Corpo que Cai" (1958), Além disso, a agilidade da montagem em momentos de clímax, colocando o espectador em uma espiral de tensão, fazem lembrar a perseguição no parque de diversões de “Pacto Sinistro” (1951) ou a famosa cena do assassinato do chuveiro de “Psicose” (1960), para ficar em dois exemplos.

Close em mulher gritando, uma das
marcas de Hitch
Afora isso, outras semelhanças com filmes que rodaria posteriormente chamam atenção. A cena inicial da aglomeração de pessoas diante de um corpo no rio lembra direto a também primeira cena de “Frenesi” (1972), que Hitchcock rodaria já em final de carreira, 45 anos depois deste debut cinematográfico. Fácil associar ainda a cena final, em que Jonathan, em apuros, fica pendurado na grade e prestes a cair, com as sequências também conclusivas de “Intriga Internacional” (1959) e de “Janela Indiscreta” (1954), quando o diretor usa o mesmo precedente como catarse dramática. Além, é claro, da fixação pelas loiras – as blond girls Kim Novak, Doris Day, Tippi Hadren e Ingrid Bergman, entre outras – e da sempre presente culpa da sensualidade feminina, associada a desejos tanto carnais quanto letíferos.

Vários elementos narrativos e técnicos presentes em “O Inquilino” seriam aperfeiçoados pelo diretor no decorrer de mais de 50 anos de carreira – aliás, tal qual fizera em toda sua obra, num incansável aprimoramento metalinguístico. Mas é fato que, já em seu primeiro projeto atrás das câmeras, Alfred Hitchcock lançara as bases daquilo que lhe tornaria uma marca: o hoje largamente conhecido gênero triller psicológico. Sua estética apurada, exigência técnica e a constante intenção de mexer com as emoções do espectador fizeram de Hitchcock uma referência, haja vista que buscara permanentemente a associação entre uma linguagem própria e sustentada na gramática original do cinema a um diálogo com o público. Não à toa, por isso, vários de suas realizações se tornaram clássicos, visto que respondem não apenas ao cinema enquanto arte, mas também como entretenimento. E se obras-primas como “O Homem que Sabia Demais” ou “Um Corpo que Cai” são como quadros irretocáveis, é porque estas devem bastantemente ao bem-acabado esboço “O Inquilino”.

Assista ao filme "O Inquilino"



por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Phil Spector & Vários – “A Christmas Gift for You from Phil Spector” (1963)





"Eu inventei o negócio da música.
Onde está a estátua para mim?"
Phil Spector




Talvez não combine muito com o espírito natalino fumar, beber e se drogar compulsivamente dentro do estúdio de gravação. Muito menos andar armado, a ponto de mirar uma espingarda nos integrantes dos Ramones para que estes o obedecessem. Pior: disparar um tiro a esmo e deixar John Lennon com permanentes problemas auditivos. Mas, sobretudo, não combina com o ato de usar um revólver para matar a atriz Lana Clarkson em sua própria casa. Pois, ironicamente, esta criatura, que bem poderia passar por qualquer delinquente, é nada mais, nada menos que uma das mentes mais geniais que o mundo da música pop já viu. Foi ele que concebeu integralmente este histórico disco.

Claro que estamos falando de Phil Spector. O talentoso produtor que deu forma às obras-primas “Let it Be”, dos Beatles, a “Plastic Ono Band”, do Lennon, e a “All Things Must Pass”, do George Harrison. Que é também o mesmo tirano que se trancafiava no estúdio como fez em “Death of a Ladies’ Man”, de Leonard Cohen, em 1977, para não deixar ninguém entrar (nem mesmo o próprio Cohen). Mas, talvez, por uma missão divina – motivada, quem sabe, por um milagre de Natal – esse judeu pobre nascido no Bronx em 1939 não escolheu o caminho do crime como seus amigos de bairro e encontrou sua salvação na música para, passando por cima de todas as excentricidades, egocentrismos e loucuras, entrar para a história. No final dos anos 50, esse iluminado ajudou a dar forma à música pop, a forjar o que se passou a chamar de enterteinment.

Compositor, arranjador, produtor, instrumentista e até cantor, Spector ostenta ao menos dois títulos de pioneirismo: o de primeiro multimídia da indústria fonográfica e o primeiro grande produtor de discos. Pois, além de todos esses predicados, ele também sabia empresariar astros e encontrar talentos. E aí ele era infalível. Cabeça do selo Philles Records, ele liderava projetos, lançava grupos e cantores, direcionava carreiras. Tina Turner, Ben King, The Righteous Brothers e Dusty Springfield passaram por sua mão. Criador de peças de forte apelo popular, mas com pés firmes no R&B, no country e no folk, Spector inventou as teenage symphonies, quando pôs grupos vocais como Ronettes e Crystals a serviço de seus arranjos elaborados e primorosos.

A Christmas Gift for You from Phil Spector” é o resultado dessa profusão. Primeiro álbum-conceito de Natal do mercado fonográfico, ajudou a impulsionar as hoje tradicionais vendas de música nessa época do ano (o próprio título, inteligentemente sugestivo, já induz ao ato da compra). Dono de um apuro técnico inconfundível das mesas de som, Spector desenvolveu o que até hoje se conhece como “wall of sound”, ou seja, a “parede de som”, técnica própria dele que aproveitava o estúdio como um instrumento, explorando novas combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos timbres (elétricos e acústicos) e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações.

É isso que se ouve em todo o álbum, em maior ou em menor grau e sempre na medida certa. Recriando melodias de standarts natalinos, Spector, junto com o grupo de compositores e sob a batuta de Jack Nietsche, pôs para interpretar em ”A Christmas Gift...”, além dos já citados girl groups Ronettes e Crystals, a cantora Darlene Love e, para equilibrar, o grupo vocal misto Bob B. Soxx & the Blue Jeans, cada um com três faixas (exceto o último, com duas).

Cabe a Darlene Love iniciar o disco com “White Christmas”, clássico de Irving Berlin que, na mão de Spector, ganha uma dimensão apoteótica. O primor do arranjo dá contornos s eruditos à música, como uma minissinfonia. Mas, antes de mais nada, nada rebuscada e saborosamente pop. Exemplo perfeito do seu método de gravação, a música começa com a voz potente de Darlene no mesmo peso dos instrumentos (banda e orquestra), que, por sua vez, soam com amplitude, reverberados. A massa sonora vai se intensificando à medida em que a carga emocional também avança na interpretação da cantora. Ao final, banda, voz e cordas parecem explodir no ambiente, quando atingem o ponto máximo do volume, que Spector modula cirurgicamente. Nota-se um permanente equilíbrio de alturas: percussão grave como tímpanos de orquestra, instrumentos de base assegurando os médios e a voz, juntamente às cordas, com o privilégio diferencial dos agudos, aqueles que fazem arrepiar o ouvinte.

Na sequência, “Frosty The Snowman”, com as Ronettes, traz o marcante timbre agudo de Ronnie Spector – esposa do produtor à época – animando mais o álbum, num R&B típico dos anos 50. O coro das companheiras Estelle Bennett e Nedra Talley ao fundo encorpa a harmonia, mesclando-se as cordas e à percussão permanentemente cintilante dos chocalhos e sinos, como os do trenó do Papai Noel. Os motivos natalinos, também com os característicos sininhos, voltam na outra das Ronettes, o hit “Sleight Ride”, com uma frenética levada de jazz swing.

O gogó romântico de Bobby Sheen, primeira voz da Bob B. Soxx & the Blue Jeans (que tinha a própria Darlene Love mais Fanta James no backing), arrasa na versão para “The Bells of St. Mary's” – que ficou conhecida com Bing Crosby no filme homônimo de 1945, em que, fazendo um padre, o ator a interpreta totalmente diferente, acompanhado de um coro de freiras e órgão. Aqui, Spector redimensiona a beleza litúrgica da canção, aprontando um arranjo vibrante, carregado de emotividade, com toques de balada de baile de anos 50.

Santa Claus Is Coming to Town” traz as Crystals Barbara Alston, Dee Dee Kennibrew e Mary Thomas num R&B embalado e ao seu estilo vocal peculiar. O trio reaparece em “Rudolph the Red-Nosed Reindeer”, de pegada bem infantil, e na divertida “Parade of the Wooden Soldiers” em que, para representar a lúdica “parada dos soldadinhos de madeira”, Spector se vale, na abertura, de cornetas marciais, mas sem perder o astral festivo e descontraído.

As Ronettes, estrelas da Phillies, têm o privilégio de cantar outro standart: “I Saw Mommy Kissing Santa Claus”, original na voz de Jimmy Boyd que atingira, em 1952, o 1º posto da Billboard. Por sua vez, Darlene Love ganha “Winter Wonderland”, um dos mais celebrados cantos natalinos norte-americanos – composta em 1934 por Felix Bernard e Dick Smith –, além da única composta para o disco: “Christmas (Baby Please Come Home)", alçada em 2010 pela revista Rolling Stone à lista de Grandes Canções Rock and roll de Natal, que justificou a escolha: "ninguém poderia combinar tão bem emoção e pura potência vocal como Darlene Love”.

O vozeirão de Bobby Sheen mais uma vez encanta na sacolejante “Here Comes Santa Claus”, outro clássico natalino que, além da gravação do autor – Gene Autry, hit em 1947 –, também recebeu versões ao longo dos tempos de Elvis Presley (no aqui já resenhado "Elvis Christmas Album"), Doris Day, Ray Conniff e Bob Dylan. Sinos de trenó, escala em tom alto, contracantos, percussão reverberada, melodia em crescendo. Um típico “wall of soundspectoriano. Para finalizar, o próprio “cabeça” do projeto declama a letra e “Silent Night” com o suave coro de todos os outros músicos ao fundo, num desfecho se não brilhante como todo o restante, ao menos coerente.

Dessa trajetória iluminada mas altamente conturbada de Phil Spector – a qual ele, encarcerado desde 2009 pelo assassinato da amante, segue infelizmente desperdiçando –, fica a rica contribuição de seu modo de compor e, principalmente, “apresentar” as músicas. Spector foi uma verdadeira máquina de sucessos, criando peças que serviriam de exemplo para toda a geração da Motown e do rock de como fazer uma música pegajosa e inteligente em menos de 4 minutos. Brian WilsonBrian JonesRod Argent, Frank Zappa, Rogério DupratBrian Eno e até George Martin conseguiram pensar como um dia pensaram por causa do caminho aberto por Phil Spector. Sem ele não existiriam os conceitos de hit nem perfect pop. Com Phil Spector a música popular virou negócio – e um negócio muito bom de escutar. Se isso já não vale por um milagre de Natal, ao menos justifica uma estátua.

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FAIXAS:
1. White Christmas (Irving Berlin) - com Darlene Love - 2:52
2. Frosty the Snowman (Steve Nelson/Walter Rollins) – com The Ronettes - 2:16
3. The Bells of St. Mary's (A. Emmett Adams/Douglas Furber) – com Bob B. Soxx & the Blue Jeans - 2:54
4. Santa Claus Is Coming to Town (J. Fred Coots/Haven Gillespie) – com The Crystals - 3:24
5. Sleigh Ride (Leroy Anderson/Mitchell Parish) – com The Ronettes - 3:00
6. Marshmallow World (Carl Sigman/Peter DeRose) - com Darlene Love - 2:23
7. I Saw Mommy Kissing Santa Claus (Tommie Connor) – com The Ronettes - 2:37
8. Rudolph the Red-Nosed Reindeer (Johnny Marks) – com The Crystals - 2:30
9. Winter Wonderland (Felix Bernard/Dick Smith) – com Darlene Love - 2:25
10. Parade of the Wooden Soldiers (Leon Jessel) – com The Crystals - 2:55
11. Christmas (Baby Please Come Home) (Ellie Greenwich/Jeff Barry/Phil Spector) – com Darlene Love - 2:45
12. Here Comes Santa Claus (Gene Autry/Oakley Haldeman) - com Bob B. Soxx  the Blue Jeans - 2:03
13. Silent Night (Josef Mohr/Franz X. Gruber) com Phil Spector & artistas - 2:08

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OUÇA O DISCO: