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sexta-feira, 1 de março de 2019

cotidianas #620 - Pílula Surrealista #34



- Ah, lá vem ela de novo cantar! Parece que engoliu uma vitrola!

Não raro era ouvida tal exclamação no escritório quando Karol, a alta e desengonçada como uma girafa Karol, abria a boca para cantar. Vivia cantando, a toda hora do dia, em qualquer ambiente, inclusive no trabalho. Cantava mesmo que não produzisse som através das cordas vocais. Se porventura era pega fazendo silêncios prolongados, podes escrever que não estava pensando, mas, sim, cantando por dentro. Era-lhe irrefreável, instintivo, vinha das vísceras, do âmago, do chakra básico. A música lhe tomava a mente, o coração, os intestinos, os órgãos, o sangue. Os poros.

Respirava música.

No entanto, como visto, não era a todos que agradava. Bem dizer, agradava somente mesmo a si, que se ouvia cantar e se emocionava e se autoestimulava a emitir mais e mais sons em duvidosas harmonias. Sua voz não era lá das piores, não. Porém, a técnica, esta sim lhe faltava. Bastava encontrar aquele momento de maior variação no andamento, que a voz oscilava constrangedoramente como se uma girafa trocasse as patas resvalando sobre uma superfície molhada.

Os colegas de trabalho, quando não reclamavam, riam dela. Mas sabe de uma coisa? Ela até se magoava de princípio dos caçoos, mas passou a não dar mais bola – e continuava cantando. Um dia, um em que estava com muita vontade de cantar, mais do que na maioria dos dias em que a vontade já era suficientemente grande, ela sentou-se no meio ao escritório, deliberada e impiedosamente, numa posição favorável à acústica, para que todos ouvissem, e fez o que mais gostava de fazer na vida. Abriu a boca vagarosamente, sem pressa - pois sabia que, quando iniciasse, seria ininterrupto -, e simplesmente deixou virem os sons. Sem nem precisar mexer os lábios: só abriu a boca e deixou a vitrola rolar.

Para Carol

Daniel Rodrigues

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