Depois de uma manhã e uma tarde lotadas de passeios por São Paulo, o horário da visitação gratuita ao Masp, fim de tarde, se aproximava. Já sabíamos que as entradas online estavam esgotadas dada a alta procura, ainda mais porque naquela semana havia estreado justamente a exposição que mais atraía as pessoas (e a nós):
"A Ecologia de Monet". Mas estávamos Leocadia e eu próximos, andando pela Av. Paulista e, mesmo cansados, pensamos:
"por que não tentar?" Talvez esse espírito
flaneur tenha nos presenteado com dois ingressos, que nos foi alcançado logo que chegamos em frente ao lindíssimo prédio projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi.
Com muita fila e sala lotada, pudemos mesmo assim, apreciar as poucas (32) mas bem reunidas obras de Claude Monet, um dos maiores gênios das artes de todos os tempos. Já havia tido a oportunidade de ver Monet numa exposição interativa em Porto Alegre anos atrás, onde não havia nenhuma obra original dele, apenas reproduções, e lembro de, apesar da beleza inconteste, ficar um tanto frustrado de não ver um “Monet Monet”. Dessa vez, realizei o sonho.
A seleção da exposição evidencia a relação de Monet com a natureza, as transformações ambientais, a modernização da paisagem e as tensões entre ser humano e natureza, mostrando como ele estava adiantado no tempo no que se refere ao pensamento ecológico, algo mais evidente somente no final do século 20.
O interessante recorte dado pela curadoria pinça obras dos diferentes ambientes naturais que o artista impressionista pintou em sua vida, desde Havre, na Normandia, Belle-Ille, na Bretanha, Vétheuil, no interior da França, a seu famoso jardim em Giverny, próximo a Paris, onde realizou algumas de suas mais marcantes obras, como a série das “Ninfeias” e a famosa ponte chinesa de seu quintal, as quais mereceram uma sessão especial na mostra.
Porém, não apenas estas, mas as paisagens da Normandia começando a ser turística e moderna ao mesmo tempo, como registrou em “Vista do antigo porto de Havre”, de 1874. Ou a beleza impactante das rochas milenares de Port-Gouphar (1886), em que a brutalidade de suas formas contrasta, primeiro, com a delicadeza do céu nublado em tons leves, mas, principalmente, com a organicidade da água à sua frente, cujas pinceladas curtas e marcadas fazem o quadro parecer vivo.
Por falar em vivacidade da água, a ecologia fluvial de Monet é um dos aspectos mais investigados e valorizados da exposição, visto que justifica duas sessões: "O Sena como Ecossistema", onde podem ser vistos quadros como “O Passeio de Argenteuil” (1872), e "Os Barcos de Monet", que mostram a relação deste com o curso d'água do afluente do rio Sena em uma imersão. As barcas são mostradas de pontos de vista elevados, eliminando, assim, a noção de uma linha do horizonte. Para um apaixonado por cinema, é impossível não enxergar na forma de enquadrar de Monet referências daquilo que se tornaria gramatical no cinema, a qual ele viu nascer enquanto arte. Não são à toa os planos incomuns de Dreyer em "A Paixão de Joana D'Arc" ou o constante distorção imagética do Expressionismo Alemão.
Note-se a correnteza do rio é destacada por pinceladas onduladas em tons de vermelho e amarelo que se somam ao verde intenso. O traço impressionista, embora caracterizado pela dissolução, se modificado conforme a necessidade: ora mais intenso, mais sutil, mais ou menos carregado, o que vai provocando diferentes texturas e sensações. Novamente recorrendo ao cinema, há quadros das plantas ninfeias que, afora o "enquadramento" fora dos padrões, jogando a linha do horizonte para a parte superior da tela, as plantas aquáticas ganham como vizinhas o reflexo das árvores no lago, provocando aquilo que em cinema se chamaria facilmente de sobreposição como as que David Lynch e Alain Resnais usavam largamente em seus filmes.
Há ainda o núcleo “Neblina e Fumaça”, que discute como Monet representou as transformações urbanas e industriais de seu tempo com a chegada da energia a vapor, da expansão das fábricas e a produção de carvão, que mudaram radicalmente as cidades europeias do fim do século XIX. A sequência de trabalhos em que o artista retrata as pontes de Waterloo e de Charing Cross, de Londres, são emblemáticos, pois dão a ver a forma como Monet explorou a perspectiva atmosférica com cores e pinceladas singulares, conferindo espessura à neblina e evidenciando o ar carregado pela fumaça liberada pelas indústrias instaladas às margens do rio Tâmisa. A poluição, sim: a poluição!
Por fim, outro núcleo é “O Pintor como Caçador”, que explora as trilhas por onde caminhava em busca de pontos de vista originais. Traz visões muito poéticas de Monet em pinturas realizadas em suas viagens pela costa francesa - Normandia, Bretanha e Mediterrâneo -, além de passagens por outros países, como a Holanda.
Saímos ainda mais cansados do que já estávamos, mas completamente arrebatados e preenchidos por termos a sorte de conseguir entrar e presenciar a arte maior de Monet. Era um objetivo nesta ida a São Paulo, que pareceu por algum momento que não seria possível realizar. Foi.
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| A impressionante “Vista do antigo porto de Havre”: começo do turismo de praia no Mediterrâneo |
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| Composição magistral dos barcos atracados |
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| Genialidade: as rochas de Port-Gouphar e o espelho d'água |
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| Público embasbacado com tamanha maestria na pintura |
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| Dos mais impressionantes, “O Passeio de Argenteuil” |
Muito público para ver a exposição
no final de tarde/início de noite no Masp
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| A série das "Ninfeias". Basta admirar |
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| Sessão das Ninfeias disputada |
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| Aula de enquadramento e de fusão de imagens: totalmente cinema |
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| Mais das Ninfeias, aqui na famosa ponte chinesa de Giverny |
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| A ponte de Waterloo e a... poluição, já em fins do século 19. Ah, o homem... |
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| Outra cena linda de barcos sob o céu nublado |
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| Detalhe de uma das cenas de "caça" de Monet. Sempre em busca de novos olhares |
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| Duo de quadros que junta o trato com a água e o enquadramento diferenciado de Monet... |
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| ...Que fecham/abrem a exposição magistralmente |
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| E estes dois flaneurs em estado de graça após verem a exposição |
Daniel Rodrigues
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