A arte como resistência
por Daniel Rodrigues
"A arte não é um fim, mas um começo."
Ai Weiwei
O imaginário social criou a ideia do artista que se doa de corpo e alma para a sua arte e que, se não for assim, uma entrega total e desenfreada até chegar à moléstia, não vale. Os poetas românticos que morriam de amor no século XIX ou o alcoolismo da geração de 20 reforçam essa premissa um tanto questionável. Vendo a exposição “Raiz Weiwei”, do artista visual chinês Ai Weiwei, presentes no CCBB e no Paço Imperial, ambos no Rio de Janeiro, é possível compreender uma ressignificação deste conceito. O artista, mais do que ser a sua própria arte, é, tanto quanto, um vórtice transformador de sua realidade político-social. E a doença não é do artista, mas sim a do estado, a da sociedade de consumo, reelaborada nas entranhas do artista e exposta sob o caráter da crítica, da ironia, de resgate cultural, de empoderamento. Da arte.
A partir de uma visão profundamente humanista, Weiwei, que realizou uma residência no Brasil a convite do curador Marcello Dantas, põe-se abertamente do lado certo da história, o dos oprimidos. Filho de um literato perseguido pelo Regime Comunista de Mao, ele traz a sua carne para dentro da obra, chegando sempre no mesmo fim: a denúncia ao sistema. Seu objeto – e quando se materializa esse “objeto” chega-se a qualquer tipo de plataforma que comporte a mensagem: vídeo, porcelana, madeira, fotografia, lego, pedra, gesso, PVC, bambu – é a eterna tensão entre os que dominam e os que são dominados. Ou, no caso de pessoas como ele, os que lutam contra essa dominação.
Cabides: representação da resistência da arte |
Mapa feito com a madeira recuperada: preservação de identidade |
Centenas de bicicletas em aço inundam de beleza a parte externa do CCBB |
Papel de parede "Iluminação", de 2009: nome mais apropriado impossível |
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Arte completa
por Cly Reis
"Tudo é arte. Tudo é política."
Ai Weiwei
Eu já havia ouvido falar de Ai Weiwei, sabia de seu engajamento, de sua atuação política, conhecia superficialmente seus problemas com as autoridades chinesas, mas não tinha a verdadeira noção do quanto seu trabalho era comprometido e constantemente repleto de conteúdo. Nada nele é sem propósito, nada é por acaso. Uma cor, um material, um ângulo, uma pose, uma palavra, nada é sem motivo e sempre terá contido em si alguma mensagem ou contestação, pois, como ele mesmo afirma, os caminhos da arte são necessariamente indissociáveis aos da política.
A questão dos refugiados e a urgência por um mundo mais humano |
Ai Weiwei é a arte em estado puro. Desde uma notável sensibilidade estética e conceitual, à utilização do objeto mais banal e cotidiano como elemento artístico. É impressionante sua capacidade aplicar mais sentido, mais interpretações a uma obra que, por si só, já teria valor estético tornando-a ainda mais valorosa, então, pelo poder de sua sugestão. É o caso dos vasos de porcelana, já belíssimos se apreciados à distância, mas que, vistos em detalhe revelam recortes de situações de refugiados ao longo da história, aos quais o artista faz questão de lembrar sob um olhar crítico e corajoso, do impressionante papel de parede “egípcio” que ocupa uma parede inteira da exposição e que, de perto, revela também episódios de refugiados ao redor do mundo . E o que dizer das "Sementes de Girassol" (2010), milhares de réplicas cerâmicas, produzidas uma a uma, manualmente, obra repleta de simbologias remetendo ao mesmo tempo à vida das mulheres chinesas, aos direitos humanos e à época da Revolução Cultural.
Cerâmicas feitas manualmente: resistência e ancestralidade |
“Raíz” é uma exposição daquelas que impressiona, perturba, alerta, encoraja, transforma, inspira e nos faz lembrar, tanto materialmente quanto conceitualmente, quais os verdadeiros objetivos da arte.
A impressionante arte de Weiwei: perturbação e alerta |
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Manifesto
por Leocádia Costa
"Minha palavra favorita? É Agir!"
Ai Weiwei
Ai Weiwei reuniu a mim, Daniel e Cly numa incursão curiosa ao acervo que veríamos do ativista chinês no CCBB, que reúne lucidez e ação. À medida em que fomos entrando no processo de criação, misturado a trabalhos já realizados e outros mesclados ao solo brasileiro, fui me emocionando, porque somos parte do que ele faz.
Arte hoje é ativismo, mas não porque o artista de antes nunca tenha sido um interlocutor consciente do cenário onde vivia e da sua função mas, principalmente, porque hoje o artista possui uma conexão muito mais ágil, acessível e que em um único gesto é capaz de viralizar.
Selfie com os potes: riqueza no Ocidente, sem valor no Oriente |
A delicadeza da porcelana oriental e a contundência da palavra |
Weiwei sabe disso.
Ele dá aquele grito derrubando muros de hipocrisia e medo. Ele coloca a verdade nua e crua dentro de um contexto histórico, afinal de contas, não somos meros personagens da vida, mas sim pessoas que fazem a história e, por isso, tem responsabilidade sobretudo com o que existe e acontece. Essa participação é viva, necessária, e se for artística fica ainda muito melhor. No caso dele é tudo isso de forma inspiradora.
"Panda a panda", bicho de pelúcia, material impresso e cartão SD com documentos confidenciais vazados por Edward Snowden |
A partir das frases destacadas pela curadoria nos ambientes expositivos tomei a liberdade de montar esse manifesto, que com certeza elucidará sua mensagem aos ainda insensíveis e divergentes ao mesmo tempo em que inspira quem busca, como nós, agir.
"Eu não diria que me tornei mais radical: eu nasci radical. A história nos ensina que no início das maiores tragédias havia ignorância. Muitas vezes penso que o que estou dizendo é para as pessoas que nunca tiveram a chance de ser ouvidas. Eu quero que as pessoas enxerguem o seu próprio poder. Temos que lembrar que não temos escolha. Ou estamos do lado certo ou do lado errado. Minha palavra favorita? É Agir! Uma pequena ação vale um milhão de pensamentos. O meu mundo é uma esfera, não há Oriente nem Ocidente. A liberdade diz respeito ao nosso direito de questionar tudo. A arte não é um fim, mas um começo. Se você desviar o olhar você é conivente.”
O trio que comanda o Clyblog se esbaldando na exposição de Weiwei |
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Confiram outras fotos das exposições:
A minúcia de Weiwei já na entrada da mostra:12 telas e centenas de vídeos e imagens em sincronia |
"Obras de Juazeiro do Norte" une a técnica ancestral do artesanato em madeira do Brasil e da China |
Ofertas votivas tradicionais que fiéis fazem a divindades como sinal de gratidão e devoção. Entre estes, o "foda-se" |
Visitantes no CCBB com o papel de parede "Iluminação" ao fundo |
No piso, a bora "Florescer", símbolo da resistência do artista quando preso e, ao fundo, a parede com a impressionante "5 910 fotos relacionadas a refugiados" |
Sob os pés de Leocádia, "Máscara", em mármore (2013) |
Detalhe de "5 910 fotos relacionadas a refugiados": ares da Guernica de Picasso |
Detalhe de "Uvas", feito com 32 banquinhos da Dinastia Qing |
Visitantes admirando a arte engajada de Weiwei no CCBB |
Mulher atenta a um dos vários vídeos da mostra |
As bikes de Wewei com a Candelária ao fundo |
Olha eu lá interagindo com as luas de madeira, no Paço |
Foto impressa em jogo de Lego: a criatividade sem limites de Weiwei |
Uso do Alfabeto armorial em "Marca 11" (2018): citação de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Cappellette |
A forte "Lei da Viagem", em PVC, no vão de entrada do Paço |
Outra obra impactante, "Duas Figuras", feita em gesso |
Uma das "Sete Raízes" extraídas de árvores nativas do Brasil |
A violência policial no rico de detalhes da porcelana ao estilo chinês |
Um "fuck" esculpido em bronze |
As sementes de porcelana e, acima, "Taifeng" (2015), feita em bambu e seda |
Metáfora à famosa cena da Praça da Paz Celestial, em Pequim |
Outra parte de "Sete Raízes", que tem colaboração de artesãos do Brasil e da China |
Caranguejos feitos em porcelana, animal que simboliza resistência em diferentes dinastias chinesas ao longo da história |
Tradicional arte em madeira para dizer... Recado dado |
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Exposição "Raiz Weiwei", de Ai Weiwei
local: Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB e Paço Imperial
endereços: Rua Primeiro de Março, 66 - Centro - Rio de Janeiro /RJ (CCBB) e Praça XV de Novembro, 48 - Centro (Paço)
horários: de quarta a segunda, das 9h às 21h (CCBB) e de terça a domingo, das 12 às 19h (Paço)
período: até 4/11/2019
ingresso: gratuito
textos e fotos: Cly Reis, Daniel Rodrigues e Leocádia Costa