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segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Sessão Comentada filme "Casa Vazia" - Cinemateca Paulo Amorim - Casa de Cultura Mário Quintana - Porto Alegre/RS (23/08/2023)

 

Em junho, eu havia participado de uma sessão comentada sobre o belo “A Primeira Morte de Joana”, da cineasta gaúcha Cristiane Oliveira, na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mário Quintana. Na ocasião, extremamente especial, pude discutir o filme com a produtora do longa-metragem Aletéia Selonk, da Okna Produções, a montadora Tula Agnostopoulos e a curadora da Cinemateca Paulo Amorim, minha colega de ACCIRS e de Jornalismo Mônica Kanitz, que me estendeu o convite. Mesmo com o gratificante posterior retorno da própria Cristiane, que mora em São Paulo e não pode comparecer naquele dia – mas assistiu ao vídeo completo do debate –, as correrias dos dias não me permitiram registrar aqui no blog aquele encontro.

Sessão de "A Primeira Morte..." com as
parceiras de debate Tula, Mônica e Aletéa
Os meses passaram e um novo convite veio, intermediado pela mesma Mônica mas, desta vez, por ideia do próprio realizador, Giovani Borba, para uma sessão sobre o seu brilhante “Casa Vazia”, filme sobre o qual escrevi no Clyblog. Aliás, esta resenha, replicada nas redes sociais da produtora do longa, Panda Filmes, chegou a Giovani, que o motivou a contar comigo nesta feita. Saborosíssima, diga-se de passagem, seja por poder rever o filme, agora na tela grande, seja pelo contato presencial, seja pela ótima conversa, que transcorreu posteriormente à exibição.

Com a presença de um público enxuto, mas qualificado – entre os quais, um interessado Glênio Póvoas, meu ex-professor de cinema na faculdade e uma referência no que se refere à pesquisa e memória do cinema gaúcho – pudemos discorrer sobre aspectos de “Casa Vazia” muito interessantes e até elucidativos. Um deles é o rol de referências cinematográficas do jovem Giovani, que vai desde cinema iraniano à escola russa. Abbas Kiarostami e John Ford são duas delas. A mim já havia ficado evidentes as alusões aos irmãos Coen, principalmente ao new-western “Onde os Fracos não Têm Vez” (2007) e, especialmente, a Andrei Tarkowsky. A cena do incêndio da casa, chave para a trama de “Casa Vazia”, faz referência direta a de “O Sacrifício” (1986), porém é “O Espelho” (1979) com o qual o filme de Giovani guarda mais cruzamentos, seja na fotografia, nos enquadramentos e nos lances sensoriais.

Outro ponto bastante discutido foi a escolha de elenco e, em especial, a participação de Hugo Noguera, ator não-profissional mas que, nem por isso, atua com maestria – que lhe rendeu, inclusive, prêmio de Melhor Ator no Festival de Gramado de 2022, pelo papel do sofrido Raúl. Giovani contou que sua ideia inicial era de realizar um filme apenas com atores amadores, mas que essa ideia foi se modificando com o andar da pré-produção em razão de uma série de questões. Porém, o papel do protagonista era uma vontade a qual gostaria de não abrir mão de utilizar alguém que não fosse da profissão para que as características rústicas do gaúcho de fronteira restassem preservadas genuinamente. O encontro com Nogueira, homem de forte sotaque “portunhol” na vida real, foi quase por acaso, mas se mostrou certeiro. A obra se desenvolve, sim, a partir das ideias do roteiro do próprio Giovani, mas muito em função da forma de ser e da sensibilidade de Nogueira, que imprimiu, mesmo sem a técnica cênica formal, peculiaridades que ajudaram a formatar a personagem de Raúl. Giovani, como bom diretor, claro, acatou de bom grado tais contribuições.

Aos que não assistiram, “Casa Vazia” é um drama com toques de western, que trata do empobrecimento de regiões agrícolas, tendo no protagonista, um peão de meia idade de traços indígenas e gestos rudes, o retrato social de um típico gaúcho na atual região do Pampa gaúcho, abordando o tema da pobreza no campo e evidenciando a violência e os conflitos sociais, econômicos e psicológicos do personagem principal. Não é somente uma obra apreciável, mas, como bem disse professor Glênio durante a sessão como um entusiasta do filme, "Casa Vazia" é uma das melhores produções do cinema gaúcho contemporâneo, o que, assim como para com "A Primeira Morte...", pode-se já afirmar mesmo com tão pouco tempo de vida de ambos.

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Com Mônica e o talentoso Giovani falando sobre "Casa Vazia"


Foto "oficial" com os três após o rico papo na Cinemateca Paulo Amorim


Daniel Rodrigues


sábado, 29 de julho de 2023

"Casa Vazia", de Giovani Borba (2021)

 

Os Muros da Fronteira

Como no jornalismo, a máxima de que não existe imparcialidade também se aplica ao cinema. Por mais limpo que seja o discurso tanto numa área quanto em outra, buscando fugir de posições político-ideológicas na abordagem de determinado tema, é impossível evitar uma mensagem desprovida de subjetividades. Em cinema, no entanto, essa dialética opera um pouco diferente. Uma vez arte, a depender do que se quer contar, o distanciamento (crítico e controlado) favorece a absorção da própria mensagem – que, ironicamente, pode ser, sim, bastante ideológica em última análise. Colocar-se conscientemente neste limiar não raro ajuda a que o cinema cumpra seu papel mais essencial: contar uma história.

Esta é uma das fronteiras conceituais às quais o brilhante “Casa Vazia” suscita. Sem ajuizamentos simplórios, o filme conta uma história cheia de questões sociais, políticas, econômicas e comportamentais de uma maneira profunda e artística, convidando o espectador à reflexão. Com uma excepcional cena inicial – um plano-sequência estático de uma paisagem rural noturna – o filme dirigido por Giovani Borba (também roteirista da obra) se passa na região do Pampa gaúcho e aborda o tema da pobreza no campo, evidenciando a violência e os conflitos sociais, econômicos e psicológicos do personagem principal, Raúl (Hugo Noguera), um peão de meia idade de traços indígenas e gestos rudes. Desempregado, é um sujeito de poucas palavras e olhar melancólico. 

Vencedor de 5 Kikitos, no Festival de Gramado, e um Troféu Redentor, no Festival do Rio, o longa trata do empobrecimento de regiões agrícolas, tendo no protagonista o retrato social atual de um típico gaúcho em uma zona historicamente romantizada, mas cuja realidade opera de maneira implacável. O clima de tensão da história, pelo qual é possível classificar o filme como um new western, se equilibra com o drama, personificado na pessoa de Raúl, um dos milhares de trabalhadores do campo que tentam se reorientar e lutar pela sobrevivência e preservar seus costumes.

O brilhante Hugo Noguera, retrato do típico gaúcho nos dias atuais

Alguns dos primorosos aspectos técnicos são essenciais para a construção da espacialidade e da estética de “Casa Vazia”, a se ver pela fotografia de Ivo Lopes Araújo. A exemplo de outras recentes produções gaúchas, a foto desempenha um papel central, ajudando a adensar estados psicológicos centrais para a narrativa proposta, como ocorre em “A Nuvem Rosa” (Iuli Gerbase, 2021) ou “A Primeira Morte de Joana” (Cristiane Oliveira, 2021). Em “Casa Vazia”, a vastidão da Campanha, com seu relevo e vegetação típicos em conjunção com a rusticidade das pessoas, coescreve a lógica das mentalidades e das inter-relações. A inospitalidade da natureza simboliza o vazio do interior humano, seja de ética, sentimento ou compaixão. 

Neste sentido, o personagem Raúl é magnificamente bem construído estética e psicologicamente, fora a interpretação exata dada por Hugo Noguera. Sem família, sem dinheiro, sem amigos, sem emprego digno, sem qualificação diante do devastador agronegócio. Um ciclo tão vicioso quanto sua queda pela bebida – a qual é constantemente assediado sem pudores alheios. O que lhe resta? A também ausência de preceitos morais. Mas não existe certo e nem errado para o espectador. Ao mesmo tempo, Raúl é envolvido com contrabando e omisso com a família, mas, em contrapartida, um cidadão desassistido, relegado e triste. As próprias consequências sofridas pelo personagem já se bastam. Os pecados são todos dele.

A inóspita e desafiadora paisagem do Pampa:
vastidão e esvaziamento
O professor e pesquisador da filosofia do trabalho Giovanni Alves usa o termo “compressão psicocorporal” para designar a demanda por produtividade do mundo atual, que opera como uma imensa fábrica que empareda o trabalhador. Assim, a “casa”, física ou metafísica, começa e termina no próprio corpo. Como no referencial filme brasileiro “A Casa de Alice”, é na corporificação que os paradoxos e vontades se dispõem. E assim como no filme de Chico Teixeira, de 2007, em que a personagem que lhe dá título é sufocada pelo externo machista em sua condição feminina, desabitando seu eu-interior, Raúl também é prensado por todos que o cercam: sociedade, família, trabalho, tecnologia. É como se, na amplidão pampeana, houvesse paredes que o espremessem e o condenassem à prisão dentro de si próprio: este indivíduo clássico do Rio Grande do Sul, mas anacrônico visto que desfavorecido pelo tempo. A própria região da Fronteira gaúcha, onde o filme se passa, é um símbolo disso. Invadida pela modernidade do “agro pop”, a zona fronteiriça com países como Uruguai e Argentina faz levantar muros invisíveis intransponíveis a quem a ela não se molda, reforçando – ao invés de combater – modos bárbaros arraigados, um maniqueísmo cruel e opressor. Só existe bem ou mal, poder ou miséria, pecado ou salvação, lei ou contravenção. Assim, a outra fronteira, a da dimensão entre o corpóreo e espiritual, perde-se, esvai-se.

A forma como os fatores são expostos em "Casa Vazia" levam o espectador a entender a sina de Raúl e não a julgá-lo. Afinal, não há para onde ele fugir: seja pelo lado “certo” ou “errado”, todos lhe desumanizam e o comprimem. Nem o além-matéria, momento em que o personagem tem contato com uma curandeira ou quando, em sonho, enxerga o mitológico Negrinho do Pastoreio (personagem folclórico de origem sofrida, não á toa popular), são suficientes para mudar sua rota degradante de tristeza, abandono e solidão. Da mesma forma como ficam expostas sobre a grossa relva os restos de gado atacados pelos ladrões, Raúl nada mais se transforma do que também um bicho despedaçado e sem vida atirado ao relento. Sem ser panfletário, "Casa Vazia" deixa claro que o mundo dos homens pode ser muito selvagem. Um lugar onde há espaço de sobra, mas com nada para lhe ocupar.

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trailer de "Casa Vazia"



texto: Daniel Rodrigues
foto e vídeo: Panda Filmes

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Sessão Comentada filme "Casa Vazia" - Cinemateca Paulo Amorim - Casa de Cultura Mário Quintana - Porto Alegre/RS


Será com certeza um prazer comentar sobre uma das recentes produções de longas-metragens gaúchas, o elogiado "Casa Vazia", nesta quarta-feira, em minha amada Cinemateca Paulo Amorim, da Casa de Cultura Mário Quintana, O filme, sobre o qual já comentei aqui no blog, terá uma sessão comentada, que contará com a minha participação como membro e secretário da ACCIRS, e da colega Mônica Kanitz, Vice-Presidente. Na ocasião, vamos debater com o diretor do filme, Giovani Borba, na Sala Paula Amorim, a partir das 19h15.

Vencedor de 5 Kikitos, no Festival de Gramado, e um Troféu Redentor, no Festival do Rio, o longa trata do empobrecimento de regiões agrícolas, tendo no protagonista o retrato social atual de um típico gaúcho em uma zona historicamente romantizada, mas cuja realidade opera de maneira implacável. O clima de tensão da história, pelo qual é possível classificar o filme como um new western, se equilibra com o drama, personificado na pessoa de Raúl, um dos milhares de trabalhadores do campo que tentam se reorientar e lutar pela sobrevivência e preservar seus costumes.

Quem puder comparecer, valerá a pena. Nem sei se pelo o que terei para falar, mas por conta do ótimo filme mesmo, que fala por si.

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sessão comentada filme “Casa Vazia” 
com Daniel Rodrigues, Mônica Kanitz e Giovani Borba
Quando 23 de agosto, quarta-feira, 19h30
Local: Cinemateca Paulo Amorim - Casa de Cultura Mário Quintana
 Rua dos Andradas, 736 - Centro Histórico - Porto Alegre/RS
Ingresso: gratuito


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

50º Festival de Cinema de Gramado - Bastidores e Premiados

 

Muito se fala sobre cinema e arte cinematográfica em razão do Festival de Cinema de Granado. Por óbvio. Porém, após ter participado como jurado na edição de 2021, realizada ainda de forma online em virtude da pandemia da Covid-19, motivei-me a, finalmente, fazer algo que nunca tinha conseguido: estar presencialmente no festival. Motivos pra isso, não faltavam: este ano, realizou-se a histórica 50ª edição do festival mais longevo ininterruptamente do Brasil e por ter me tornado este ano secretário da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), apoiadora institucional do festival e responsável por algumas das curadorias, juris e premiações. Outra motivação não menos substancial era o lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, ao qual participo como um dos autores e que era importante marcarmos esse momento dentro do principal festival de cinema do nosso Estado. Afora isso, queria saber como era a emoção de viver o Festival de Gramado, ainda mais assim, no auge do inverno, em que tanta gente visita a cidade, que é a mais procurada pelos turistas no Brasil esta época.

Nós da ACCIRS, no espaço
Elizabeth Rosenfeld, lançando
o livro em Gramado

Com o socorro do amigo José Carlos Sousa, o querido Zeca, que nos ofereceu transporte de ida e um ótimo pouso, fomos Leocádia e eu. Cheios de incertezas de como seriam as movimentações por lá, partimos, na cara e na coragem, para conferir o primeiro final de semana do festival. Mesmo não sendo possível assistir à maioria dos filmes, principalmente os longas-metragens brasileiros e internacionais que rodariam diariamente até a semana seguinte, os pouco mais de dois dias a que nos programamos nos oportunizaria ver pelo menos duas das estreias de longas brasileiros, curtas-metragens nacionais e os curtas-metragens gaúchos, que passam na seção vespertina no segundo e terceiros dias. Igualmente, podemos pegar também a tão badalada abertura do festival, o que, convenhamos, embora menos apoteótico, é quase tão emocionante quanto estar no encerramento.



A emoção de pisar pela primeira vez no 
tapete vermelho do
Festival de Gramado

Se coube a nós apenas o começo do festival, no entanto, nosso batismo foi com a devida graça dos deuses do cinema. Na sala de imprensa, logo após termos tirado nossas credenciais para podermos pisar o tão famoso “tapete vermelho” que dá acesso ao Palácio dos Festivais – ou seja, logo que conseguimos confirmar que poderíamos, sim, participar efetivamente do festival, o que haviam nos dito que talvez não fosse possível por ainda não termos credenciais até então – conversávamos com o colega de ACCIRS Paulo Casanova e somos surpreendidos pela atriz Marcélia Cartaxo, que veio em nossa direção como se nos conhecesse. “Será que ela se enganou?”, pensamos. Mas acho que não. Ao que disseram, é muito o modo de ela ser, assim, despachada e extrovertida, e prefiro acreditar que aquela foi uma bênção de Macabea ou de Pacarrete que recebemos por estarmos estreando no festival. Após o choque de ter sido procurado por Marcélia (que, aliás, ganhou mais uma vez o Kikito de Melhor Atriz, como já o havia feito por "Pacarrete", em 2018) para ganhar um abraço, atentado por Leocádia, fui atrás dela novamente para fazermos um registro daquele momento – afinal, todo mundo deve ter uma foto de seu batizado. Ao lhe abordar, agradeci por sua existência em nossos corações como personagens tão memoráveis. Ela retribuiu, generosamente, agradecendo também.

Leocádia e eu recebendo a bênção do festival de Gramado da divina Marcélia

O talentoso Palmeira recebendo
uma das principais honrarias do
cinema brasileiro, o Oscarito
Após o batismo inicial, assistimos filmes, conhecemos outros artistas, vimos Marcos Palmeira receber o Troféu Oscarito – e passar por nós, a questão de metro, e olhar-nos no olho em agradecimento às palmas. Os filmes que mais conseguimos ver foram os curtas gaúchos, com coisas bem boas, como o tenso e tecnicamente perfeito “O Abraço”, prenunciando um dos próximos realizadores de longas no Rio Grande do Sul como recentemente alçaram nomes como Davi Pretto e Felipe Matzembacher; o curto mas tocante “A Diferença entre Mongóis e Mongoloides”, de Jonatas Rubert, documentário pessoal de animação sobre a relação do diretor com seu irmão e seu tio, ambos portadores de TEA (transtorno do espectro autista); e o grande premiado do Prêmio Assembleia Legislativa — Mostra Gaúcha de Curtas: “Sinal de Alerta: Lory F”, de Fredericco Restori, que conta a meteórica vida da artista que lhe dá título, uma lenda do rock gaúcho. Mais uma das magias que Gramado nos proporcionou: na fila para entrar para a seção do primeiro dia de curtas gaúchos, conversávamos com dois jovens atrás de nós que logo revelaram serem os responsáveis pelo filme. Leocádia, sagaz, providenciou de que eu tirasse uma foto com eles, uma vez que tanto ela quanto eu temos relação com personagens do filme: o filho de Lory, meu ex-colega e amigo Ricardo, e o ex-marido dela, Ricky Bols, artista visual já falecido com quem Leocádia trabalhou e também nutria amizade. E não é que justo eles ganhariam, no dia seguinte, o principal prêmio entre os curtas gaúchos?

Ao lado de Natália Pimentel e Restori, de "Lory F..." - antes de ganharem o prêmio!

Sem se estender muito, cabe comentar que os dois longas brasileiros, que passam na programação noturna, agradaram. O triste e revoltante “A Mãe”, de Cristiano Burlan, que traz Marcélia como uma mãe em busca do filho desaparecido na periferia de São Paulo; e o cômico “O Clube dos Anjos”, de Angelo Defanti, adaptação e Luis Fernando Verissimo. A difícil tarefa de adaptar o autor do Analista de Bagé foi bem executada pelo diretor, embora o filme perca um pouco do ritmo do meio para o fim, mas consiga terminar bem. O grande trunfo de “O Clube...” é, porém, seu elenco. Nada mais nada menos que Otávio Muller, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, Augusto Madeira, César Melo, Ângelo Antônio, Samuel de Assis, António Capelo e André Abujamra

Este último, aliás, merece um aparte, pois tornou-se um novo amigo. Ao ver Abujamra no tapete vermelho (aliás, corrijo: Leocádia que o avistou e me avisou) abordei-o e, fã, quis entrevistá-lo para meu programa, Música da Cabeça. Fizemos ali mesmo, em meio à algazarra do público, mas deu tudo certo e a entrevista foi curta mas ótima. Justifiquei a Abujamra que se eu já tinha entrevistado Maurício Pereira e Pena Schmidt, os outros dois responsáveis pela lendária Os Mulheres Negras, não poderia perder a oportunidade de fazer o mesmo com ele.

Abu e eu: sintonia e entrevista em pleno tapete vermelho

Tudo isso para confirmar o que disse no início: muito se fala em cinema no Festival de Gramado, mas estar lá, poder conviver ao menos um pouco com artistas, realizadores, colegas críticos, jornalistas, organizadores do evento e toda aquela turba de pessoas que lotam a cidade nesta época, caminhar pelas ruas, observar as reações, frequentar o comércio em alto movimento; prova que o festival é muito mais do que as sessões de cinema. É, sim, essa atmosfera, essa egrégora misto de encanto, excitação, surpresa, expectativa – e até certa afetação, confesse-se. O que tiro é que a experiência foi linda, a ponto de nos programamos para, em próximas edições, talvez voltarmos não só para a abertura, mas esticar um pouco mais e até cobrir todos os sete dias de evento. 

O Kikitão e eu em pleno tapete vermelho

O consagrado "Noites...",
o grande vencedor 

A solenidade de premiação ocorreu no dia 20 e pude assistir pela televisão. O grande vencedor foi o amazonense “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho, que não pudemos ver mas fiquei curiosíssimo desde que soube da existência. Outra produção que também se destacou dos longas foi “Marte Um”, de Gabriel Martins (MG), que se mostrou muito querido do público por, assim como o lindo “O Novelo”, que concorreu no ano passado na mesma categoria, traz a vida de uma família de negros, mas sem recorrer aos chavões de submundo, pobreza, violência, etc. Também não vi, mas o bom é que este estreia em circuito nacional esta semana. Louco pra ver.

Por ora, segue aqui a lista de premiados com os Kikitos desta histórica edição de meio século de Festival de Gramado. Quem sabe, ano que vem não esteja lá mandando just in time essa lista?

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LONGA-METRAGEM BRASILEIRO

Melhor Filme – “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho
Melhor Direção – Cristiano Burlan, por “A Mãe”
Melhor Ator – Gabriel Knoxx, de “Noites Alienígenas”
Melhor Atriz – Marcélia Cartaxo, de “A Mãe”
Melhor Roteiro – Gabriel Martins, de “Marte Um”
Melhor Fotografia -Rui Poças, de “Tinnitus”
Melhor Montagem – Eduardo Serrano, de “Tinnitus”
Melhor Trilha Musical – Daniel Simitan, de “Marte Um”
Melhor Direção de Arte – Carol Ozzi, de “Tinnitus”
Melhor Atriz Coadjuvante – Joana Gatis, de “Noites Alienígenas”
Melhor Ator Coadjuvante – Chico Diaz, de “Noites Alienígenas”
Melhor Desenho de Som – Ricardo Zollmer, de “A Mãe”
Júri da Crítica – “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho
Júri Popular – “Marte Um”, de Gabriel Martins
Prêmio Especial do Júri – “Marte Um”, de Gabriel Martins, que nos trouxe o afeto para a tela.
Menção Honrosa a Adanilo, por “Noites Alienígenas”, pela excelência da construção da linha do personagem e interpretação.

CURTA-METRAGEM BRASILEIRO

Melhor Filme – “Fantasma Neon”, de Leonardo Martinelli
Melhor Direção – Leonardo Martinelli, por “Fantasma Neon”
Melhor Ator – Dennis Pinheiro, de “Fantasma Neon”
Melhor Atriz – Jéssica Ellen, de “Último Domingo”
Melhor Roteiro – Fernando Domingos, de “O Pato”
Melhor Fotografia – Fernando Macedo, de “Último Domingo”
Melhor Montagem – Danilo Arenas e Luiz Maudonnet, de “O Elemento Tinta”
Melhor Trilha Musical – “Nhanderekoa Ka´aguy Porã” Coral Araí Ovy e Conjunto Musical La Digna Rabia, por “Um Tempo pra Mim”
Melhor Direção de Arte – Joana Claude, de “Último Domingo”
Melhor Desenho de Som – Alexandre Rogoski, de “O Fim da Imagem”
Júri da Crítica – “Fantasma Neon”, de Leonardo Martinelli
Júri Popular – “O Elemento Tinta”, de Luiz Maudonnet e Iuri Salles.
Menção Honrosa – “Imã de Geladeira”, de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo, por catapultar a urgente discussão sobre o racismo estrutural através do horror cósmico
Prêmio Especial do Júri – “Serrão”, de Marcelo Lin. Pelo frescor da narrativa a partir de um olhar ressignificado, emergente e com o coração no lugar certo
Prêmio Canal Brasil de Curtas – “Fantasma Neon” Leonardo Martinelli

LONGA-METRAGEM ESTRANGEIRO 

Melhor Filme – “9”, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca
Melhor Direção – Néstor Mazzini, de “Cuando Oscurece”
Melhor Ator – Enzo Vogrincinc, de “9”
Melhor Atriz – Anajosé Aldrete, de “El Camino de Sol”
Melhor Roteiro – Agustin Toscano, Moisés Sepúlveda e Nicolás Postiglione, de “Inmersión”
Melhor Fotografia -Sergio Asmstrong, de “Inmersión”
Júri da Crítica – “9”, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca
Júri Popular – “La Pampa”, de Dorian Fernández Moris
Prêmio Especial do Júri a Direção de Arte de Jeff Calmet, de “La Pampa”

LONGA-METRAGEM GAÚCHO

Melhor Filme – “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto
Melhor Direção – Bruno Gularte Barreto, por “5 Casas”
Melhor Ator – Hugo Noguera, de “Casa Vazia”
Melhor Atriz – Anaís Grala Wegner, de “Despedida”
Melhor Roteiro – Giovani Borba, de “Casa Vazia”
Melhor Fotografia – Ivo Lopes Araújo, de “Casa Vazia”
Melhor Direção de Arte – Gabriela Burk, de “Despedida”
Melhor Montagem – Vicente Moreno, de “5 Casas”
Melhor Desenho de Som – Marcos Lopes e Tiago Bello, de “Casa Vazia”
Melhor Trilha Musical – Renan Franzen, de “Casa Vazia”
Júri Popular – “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto
Menção Honrosa – Clemente Vizcaíno, por “Despedida”, pela presença destacada no filme e por sua importância na história do cinema gaúcho
Menção Honrosa – “Campo Grande é o Céu”, de Bruna Giuliatti, Jhonatan Gomes e Sérgio Guidoux, pelo resgate da tradição de cantorias e da importância das comunidades quilombolas daquela região do Rio Grande do Sul

CURTA-METRAGEM GAÚCHO - PRÊMIO ASSEMBLEIA LEGISLATIVA — MOSTRA GAÚCHA DE CURTAS

Melhor filme: "Sinal de Alerta Lory F"
Melhor direção: Jonatas Rubert - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor ator: Victor Di Marco - "Possa Poder"
Melhor atriz: Valéria Barcellos - "Possa Poder"
Melhor roteiro: Jonatas Rubert, - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor fotografia: Flora Fecske - "O Abraço"
Melhor montagem: Frederico Restori - "Sinal de Alerta Lory F"
Melhor direção de arte: Gabriela Burck - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor trilha sonora: Gutcha Ramil, Andressa Ferreira e Ian Gonçalves Kuaray - "Mby Á Nhendu - O Som do Espírito Guarani"
Melhor desenho de som: Andrez Machado - "Fagulha"
Melhor produção executiva: Henrique Lahude - "Drapo A" 
Menção honrosa: "Drapo A" 
Prêmio da crítica (ACCIRS): "Apenas para Registro"

LONGA-METRAGEM DOCUMENTAL

Melhor Filme – “Um Par Pra Chamar de Meu”, de Kelly Cristina Spinelli.                 
Menção Honrosa – “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”, de Pedro Murad, pela valorização do compositor, parceiro dos grandes nomes da música popular brasileira, e também pelo rigor formal e criativo na recriação visual da vida e das grandes composições de Elton Medeiros, que faleceu em 2019. Parabéns ao diretor Pedro Murad e equipe.



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e ACCIRS

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

cotidianas #609 - O Morador



Batem à porta.
Um senhor de idade já bastante avançada, meio encurvado e de óculos na ponta do nariz, atende.
- Sr. Aldo? - pergunta um homem parado à porta do lado de fora.
- Não. Sr. Oscar.
- ... É que o Sr. Aldo, o corretor, tinha marcado comigo aqui pra conhecer a casa....
- Ah, os corretores! - exclamou o velhote com ar de enfado - Eu sempre tenho que ficar os espantando daqui.
- Quer dizer que a casa não está a venda?
- Não está, nem estará.
- O senhor é o dono?
- Eu mesmo.
- Me disseram que a casa estava vazia... - deixou escapar o interessado com uma indisfarçável ponta de decepção na informação.
A resposta foi inequívoca:
- Eu vivo aqui há anos e não pretendo sair tão cedo. - reafirmou em tom amistoso.
Conformado com o possível mal-entendido com a imobiliária, o potencial comprador desculpou-se com o velho dono do imóvel, despediu-se e virando-se para tomar o caminho do portão, ouviu a porta bater com estrondo às suas costas. Atravessou o pequeno jardim frontal que separava a casa da calçada e quando ia quase deixando o terreno percebeu um carro que estacionava junto ao meio-feio, em frente à propriedade. Um homem bem vestido, elegante, de terno, saiu do veículo e caminhou em sua direção.
- Perdoe-me o atraso. O senhor deve ser o Sr. Moretti. Eu sou Aldo, da imobiliária. - informou estendendo a mão para um cumprimento, gesto que foi correspondido pelo outro lentamente como que despertando de um aturdimento
- Vamos entrar para ver a casa? - completou o corretor.
- Mas e o morador?
- Morador? Ninguém mora aqui há uns dez anos. O último morador, acho que se chamava... Oscar, morou aqui até o fim da vida. Mas não é nada que possa lhe "assombrar". - pronunciando a última palavra com um estremecimento jocoso na voz - Morreu na velhice. Mas o imóvel está em ótimo estado. Gostaria de entrar para ver?



Cly Reis

sábado, 27 de junho de 2009

Fabric - Londres (09/05/09)





Ainda sobre a viagem e ainda sobre Londres, que como disse foi o lugar que mais me impressionou dentre minhas estações na Europa, não podia ter estado lá, na casa das raves e não ter ido em uma. Não foi exatamente daquelas "maratonas eletrônicas" de dias num sítio afastado, foi uma festa de música eletrônica. Também não quis ir em nenhuma muito "marginal", ainda que provavelmente estas sejam mais legais, mas hoje em dia, ao que parece a polícia está em cima e a maioria destas festas ilegais não acabam, recolhem tudo, confiscam equipamento às vezes e neste caso, na condição de estrangeiro, não quis me meter em roubada e (sabe-se lá, né...) ir preso junto, ser acusado de qualquer merda... Europeus já estão tão ressabidos de estrangeiros. Melhor não correr risco.
Sendo assim, procurei uma boa referência e na feirinha de Camden perguntei a um carinha que tinha um estandezinho de CD's de música eletrônica se poderia me recomendar alguma rave ou festa do gênero. Ele me deu um flyer de um lugar chamado Fabric. Vi as atrações da semana. Conhecia alguns que tinham tocado durante a semana e que tocariam lá no dia. Pareceu uma boa pedida. Depois, em casa, vi numa revista de programação de eventos, turismo, gastronomia e tudo mais, a TimeOut, que a tal da Fabric era o point do momento e tida como das melhores da noite londrina. Uhuu!!! É pra lá que eu vou.
Mesmo não sendo "da casa" não tive grandes dificuldades pra chegar no lugar à noite e de metrô. Fácil, seguro, tranqüilo.
O lugar realmente lembra uma instalação industrial. Por dentro aquele visual tijolinho inglês. Passsagens em arco, mezaninos metálicos, alguns corredores estreitos, meio labiríntico em alguns pontos. E grande o local! No dia que fui havia três pistas funcionando mas li que funcionam até cinco.
Das três pistas, curti mais a house da parte de cima (a pista 2), que estava mais vazia e me possibilitava DANÇAR, o que era impossível na pista 1, embaixo, que tocava um house mais popular, menos elaborado. Já a pista 3 estava um horror. Um eletro tão ruim que eu não consegui parar lá por muito tempo nenhuma das vezes que tentei. Talvez melhorasse mais tarde, mas saí de lá quase 4 da manhã e continuava um lixo. Acho que não melhorou, não.
Mas no geral me diverti. Não foi tudo o que esperava para uma rave inglesa, numa casa noturna inglesa. Já fui em festas melhores em Porto Alegre ainda que a casa em si, a Fabric, tenha sido com certeza bem impressionante.
Como curiosidade, é impressionante como, seja em Porto Alegre ou em Londres, o pessoal deve me achar com cara de chapado ou de traficante. Sei lá. Não raro vêm pessoas me perguntando se eu tenho "algo", se eu sei onde consegue e tal. Já me pediram alguma vezes em POA. Lá não foi diferente. Nada menos que 3 pessoas vieram a mim com esse interesse. Um rapaz perguntou se eu tinha Ecstasy, uma garota foi mais abrangente e perguntou se eu tinha drogas (essa topava o que fosse) e um outro, ouvindo a menina me perguntar, se aproximou interessado mas logo viu que eu era mais careta que o Primeiro-Ministro e começou a conversar de outras coisas. Falamos brevemente da Fabric, dos DJ's, da minha estada em Londres, de Camden e aí eu troquei de pista. Fui dançar.
Enfim, etapa obrigatória cumprida: Beats in London!



Cly Reis


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

"Teorema", de Pier Paolo Pasolini (1968)





"Proposição que, para ser aceita como evidente,
 precisa ser demonstrada."
definição de Teorema


Ganhei do meu irmão e parceiro de blog, há algum tempo atrás, um monte de filmes em DVD. Coisas interessantíssimas, filmes excelentes mas que como ele tinha os pares resolveu dar bom destino. Até pelo ritmo de vida, correria, prioridades, sono, outras coisas na TV, futebol, etc., estou assistindo-os aos poucos e muitos deles nem vi ainda. Muitos deles já conhecia mas são daqueles de paixão, daqueles pra ter em casa e ver e rever até cansar, outros são inéditos para mim, como era o caso de “Teorema” de Pier Paolo Pasolini, filme que eu sempre ouvira falar a respeito e me despertava muita curiosidade.

Assisti dia desses, com grande interesse e de fato, esta obra de Pasolini justifica todos os bons predicados que lhe são atribuídos. Numa obra de sutileza, contundência e ironia, o anárquico Pasolini demonstra todo seu desprezo pelo formato tradicional de família burguesa, desmoralizando-a de forma inteligente e mordaz.

Terence Stamp, o misterioso 'anjo' sedutor
Utilizando-se de um elemento externo ao meio familiar ortodoxo, um visitante anônimo, Pasolini faz desmoronar os pilares mais sólidos daquela estrutura, a começar pela questão da ‘moral’ uma vez que a porta de entrada para toda a corrupção de cada um dos elementos da família é o sexo, inclusive entre os homens da família. Um hóspede misterioso, instalado na casa da família de um rico industrial seduz silenciosamente, sutilmente, sem esforço algum, cada um dos membros da casa, desde a velha empregada católica, passando pela filha até então pudica, pela esposa reprimida, até os homens da casa, o filho artista plástico e o patriarca, até então certo de sua sexualidade. O resultado de cada relação, após a despedida do estranho, é uma transformação em cada um dos personagens, com reações de diferentes grandezas e proporções, mas todos com a marca da revelação interior, apenas descortinando coisas que já estava impregnadas naquele meio mas que a partir de sua chegada, ficaram evidentes.
Em alguns, como no filho, estudante de arte, que, a partir da noite que passa com o visitante parece querer tirar o que há de mais profundo e criativo de suas confusões e conflitos pessoais colocando tudo isso em suas obras, a consequência pode-se dizer, acaba sendo de certa forma produtiva, embora o rapaz não consiga resultados satisfatórios de seu ímpeto repentino. Ou no caso da esposa que, após o ocorrido com o enigmático visitante, começa uma espécie de busca descriteriosa por prazer em homens na rua, tendo a interferência o poder de despertar para uma descoberta interior, alertar que alguma coisa estava faltando em sua vida vazia. Já nos casos da empregada e da filha a consequência acabara por ser mais traumática. Na velha, fazendo-a abandonar a casa e retornar a seu povoado de origem onde proporciona uma espécie de milagre, sendo idolatrada como uma santa, mas desde então mostrando-se afogada em uma infinita melancolia. Já na menina, uma adolescente virginal, a experiência causa uma letargia irreversível, uma imobilidade, uma desistência da vida, que assim pode significar uma satisfação tamanha que a fizesse preferir não viver mais, mas pode também indicar a incapacidade de conviver com a culpa por ter permitido que seu princípio fundamental fosse destruído, num remorso insustentável e doloroso.

Já o pai, o dono da família, o industrial, o símbolo da família burguesa, vê-se nu. Vê-se destituído de tudo o que sempre acreditou, entregando-se a uma espécie de exílio, a uma espécie de inferno.

Embora tenha ido longe na minha exposição, o que é inevitável em se pretendendo falar algo a seu respeito, não se preocupe o eventual leitor pois tenho certeza que não fui até o final e ainda deixo coisas a serem vistas, descobertas e interpretadas no filme. Mas no que diz respeito a um conceito, a meu juízo, este elemento transformador apresentado por Pasolini, um homem sem nome que cuja presença e a beleza seduz a tal ponto de pessoas com diretrizes concretas básicas bem formadas, abandonarem esses valores de maneira cega e inconseqüente, me parece que entre toda a crítica social, as preferências políticas, os conceitos religiosos e todos os outros elementos presentes, há acima de tudo uma referência à Arte. Que elemento teria força para modificar a sociedade de maneira tão pacífica, através da beleza, do amor? Que elemento é capaz de desenterrar sentimentos, emoções de dentro das pessoas pela mera presença? O que é capaz de mostrar realmente o que somos? O filme é repleto de significados, símbolos e metáforas, mas me parece que, além de todas as referências políticas, posições sociais e formação comunista do diretor, a interferência da arte de forma fundamental na sociedade é uma outra interpretação válida e nada desprezível até mesmo pela sua condição de artista transgressor, que de alguma forma, sempre ansiou por transformar o que estava à sua volta.


Cly Reis

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

COTIDIANAS #341 ESPECIAL NATAL - A Namorada do Papai Noel



- Ho, ho, ho! Eu conheço essa moça boniiiiita! – disse o Bom Velhinho com a voz abafada pela volumosa barba branca que caía sobre a boca.
Distraída com uma vitrine, a moça, realmente bonita, nem percebeu que era com ela.
A criançada em volta, excitada, fazia a maior algazarra, pois iriam tirar fotos com o Papai Noel. Haviam ido ao shopping com seus pais especialmente para isso. No entanto, o calor que fazia lá fora era tanto, mas tanto, que o ar condicionado, lá dentro, não dava conta, ainda mais com a superlotação típica de dezembro. Todo ano era a mesma coisa. Suando rios por debaixo daquela roupa vermelha pesada e do enchimento para parecer mais gordo, ele, no tom de vovô animado, insistiu:
arte:Cly Reis
- Ei, menina da rua Mem de Sá, do bairro São Sebastião, você não está vendo que o Papai Noel está falando com vocêêêê?
Ela, vestida num charmoso e casual vestido verão, levou um susto tão grande que virou de costas e quase se desequilibrou no salto da sandália que calçava lindamente. Voltou-se para ele bastante surpresa, pois jamais esperava por aquilo. Quem também não esperava eram as crianças, que ficaram, literalmente, boquiabertas com a cena.
- O... oi... é você, Chri...?, perguntou ainda um pouco duvidosa querendo confirmar se era ele mesmo por detrás da roupa mas, percebendo em volta aqueles vários olhos de crianças abismadas mirando-a sem piscar, parou no meio a pronúncia do nome para não revelar-lhes a identidade do Papai Noel.
Christiano, no entanto, notou o tom de interrogação da frase inconclusa, bem como a consideração que ela teve para com os pequenos em seu encantamento lúdico (“Típico dela”, pensou orgulhoso). Tanto que respondeu:
- Sou eu... siiiiim! Ho, ho, ho! Como você está, Veronicaaaa!
- Cara, você viu: ela conhece o Papai Noeeeel!! – disse hiperimpressionada uma das crianças à outra, mas baixinho para não interromper a inusitada conversa.
- Estou bem, estou bem... Surpresa em te reencontrar... Papai Noel, assim... depois de tantos anos.
- Siiiiim! Há quantos anos eu não via essa moça boniiiita! Faz quanto tempo mesmo?... Viram, crianças – disse, tentando participá-las –, essa moça NUNCA deixou de acreditar no Papai Noeeeel, mesmo depois de tantos anos sem me ver, sem ganhar um presente meu no Natal...
Ela sorriu olhando para baixo, encabulada e com graça infantil.
- Agora você é um Papai Noel, então? Eu virei administradora; sou Gerente de Treinamentos.
- Que legal... – soltou, meio embasbacado – Então a moleca que se pendurava em árvore se transformou numa alta executiva?
- Alta, não, rsrs. Executiva. Às vezes nem sei onde foi parar a menina travessa que brincava “téti a téti” com os meninos e que voltava pra casa com os joelhos todos ralados de jogar bola com eles.
Riram juntos.
- E como vai aquela... “rena”, aquela com quem você vivia?... – indagou ela, pondo seriedade na expressão.
Ele entendeu tanto o código quanto a indireta:
- Aaaaahh! A “reeena”! Aquela que tinha o nariz vermelho! Ho, ho! – segurando a pança artificial para rir; encenando, claro – Aquela rena foi emboooora! Faz quase um aaaano. Nada de filhos. Me deixou, deixou o Papai Noel sozinho, lá no... “Polo Norte”. Que coisa, né, crianças? – virando-se para elas.
O que se viu foram apenas algumas cabecinhas sacudindo em sinal de “sim”, sem ousar dizer uma palavra. Fixos.
- Ah, é? Ela te deixou? – perguntou Veronica – Ela tinha mesmo o nariz vermelho quando ficava frio, que coincidência, rsrs. Percebi isso naquela vez em que a gente se topou na rua, naquele dia gelado, lembra? rsrs... Nossa, faz anos que aquilo aconteceu. Engraçado, comigo aconteceu algo bem parecido.
- O que, seu nariz também gelou?! – perguntou ele que, de tão interessado, deixou escapar sua voz de Christiano. As crianças se entreolharam, estranhando a reação do Papai Noel.
- Não, é que me separei também.
Dando-se conta que saíra do personagem, retomou a voz de velho estufado:
– Ah! Aconteceu o mesmo com você, entããão? Há quanto tempo iiiisso?
- Faz oito meses, Papai Noel, oito... Acho que era pra acontecer mesmo, sabe? As coisas já estavam ficando monótonas, chatas: de casa pro trabalho, do trabalho pra casa, sem nenhuma novidade, aquelas coisas. Acho que o amor foi se esgotando, sei lá... Fora isso, eu brinco que era um engenheiro; aí, você pode imaginar qual era a “pegada”, né: tudo certinho, tudo perfeito, nada fora do lugar...
- Ah, sei, ho, ho, ho! – riu sacudindo a pança de tecido com a mão, pois achou engraçado mesmo – Com o Papai Noel o motivo foi o contrário. A “rena” era também toda metódica, maniática até, e por isso não gostava dessa minha vida de ir aqui, ir ali. Você sabe, né: Papai Noel não pode ficar parado pra ganhar a vida. Tem que se reciclar, correr atrás. Um Papai Noel que se preze tem que viajar para todos os lugares, “levar presentes para as criancinhas”.
- Rsrs, imagino. Um por rotina, o outro por falta de rotina, certo?
Riram com cumplicidade mas, ainda sem jeito pela situação imprevista, caíram em um incômodo silêncio logo depois. As mães já mostravam certa impaciência, querendo sair com seus filhos de vez dali, embora estes estivessem tão encantados com o acontecimento que nem as importunavam mais para bater a tal foto.
- Lembrei bastante de você. Senti saudades, sabe... – confessou o Papai Noel, já não fingindo mais a voz – Faz quanto tempo daquilo?
- 12 anos. Eu senti saudade também.
- Foram tão bonitos aqueles cinco meses e meio, né? Pena que a gente era tão jovem e não deixou as coisas irem adiante. – arriscou falar, sentindo escorrer-lhe suores da toca às botas de neve.
- Pois é. Insegurança da juventude. A gente se conhecia desde pequenos, né? Desde que a gente tinha a idade dessas crianças aqui. Como a gente brincou junto, nossa! Só dava a gente lá no São Sebastião correndo, brincando de pegar, de esconde-esconde, jogando bola, subindo em árvore! Rsrs. Que coisa boa. A mãe não mora mais lá, sabia? Foi pra Cidade Alta. Vendemos a casa e ela foi para um apartamentinho do tamanho ideal pra ela agora depois que a casa ficou vazia. Meu irmão casou e foi pra Austrália. Tem um filho lá, meu afilhado. A mãe se aposentou. Eu me formei...
Depois de uma pausa reflexiva, prosseguiu:
Você não acha engraçado tudo isso que aconteceu e do jeito que aconteceu entre a gente? A gente cresceu junto, morou na mesma rua, frequentou a mesma escola, a mesma classe e só mais tarde que fomos namorar. Já homem e mulher. E foi tão rápido, nossa!... Foi bonito o nosso amor sim. Concordo com você. Aquele passado me emociona até hoje só de lembrar. Mas por muito tempo fiquei com ódio de você, sabe? Fiquei muito magoada. Principalmente, com a sua grosseria na hora da separação. Foi tão dolorido aquilo! Nem sei bem porque a gente se separou. Você sumiu e só fui te ver de novo naquele dia com a “rena”, na rua. Lembro que estava tão frio... E eu, embora estivesse acompanhada, fiquei muito triste, me fez tão mal aquilo... Depois, nunca mais soube de você, se você estava na cidade, na China ou, quem sabe... no Polo Norte. Mas, sabe, com o passar do tempo percebi que eu também tinha errado, que não foi culpa de ninguém, na verdade. E, olha só: aqui está você de novo na minha frente. Como são essas coisas da vida, né?
Veronica encheu os olhos d’água. As mães, até então num burburinho de irritação, agora se comoviam junto com ela.
Já as crianças continuavam sem entender nada.
- Foi bom ter te reencontrado, Papai... Noel. – retomou Veronica – Confesso que voltei a ser criança hoje. A gente se vê por aí, quem sabe, num outro Natal...
- É, quem sabe. Se você puder... digo, quiser, agora sabe onde pode me encontrar. Se eu estiver perdido no meio de um amontoado de crianças, é só falar com um segurança do shopping e pedir para falar com o Papai Noel que ele me recolhe para você, viu? – brincou, disfarçando a emoção.
Despediram-se e ninguém percebeu a lágrima que escorreu escondida pela barba e pelas sobrancelhas graúdas da fantasia, a qual, salgada e viscosa tanto quanto, se misturou aos fios de suor que, agora, nem incomodavam mais Christiano.
***
- Amor, não vai se atrasar pro trabalho.
- Não, meu amor, pode deixar. Já to saindo. Minha barba secou?
- Acho que sim. Pendurei no varal ontem. Quer que eu veja?
- Já to pegando aqui. – falou de uma peça para a outra do apartamento, porém sem gritar – Tá sequinha! Obrigado, meu amor. Vou lá, que tem um monte de gente me esperando.
- Isso, meu amor. Vai com Deus. Vai e faz o que você sabe fazer muito bem: encantar as crianças. Aliás, tem uma que tá esperando um beijinho seu antes de sair.
- Eu sei, eu sei. Já to indo.
Christiano pegou a mochila com o uniforme e os cadernos, pois após o trabalho ainda tinha a faculdade de Artes Cênicas que voltara a fazer depois de anos trancada. Foi até o quarto e parou à porta por uns segundos, numa prece de agradecimento. Depois, debruçou-se sobre a cama e lascou um beijo na bochecha gordinha do filho.
- O papai tá indo trabalhar, mas depois volta pra brincar de Papai Noel com você, tá?
O pequeno, com sono, sequer abriu os olhos, mas fez um “sim” com a cabeça de quem, certamente, registrara carinhosamente o aviso do pai.
Veronica e Christiano, mesmo não sendo católicos nem muito menos tradicionais, não cogitaram outra alternativa a não ser dar o mesmo nome do pai ao filho. Concebido numa chuvosa tarde do dia 19 de março há quase sete anos (que se completariam dali a dias), Christiano Locatelli Meireles calhou de nascer, irônica ou faltamente, num escaldante 25 de dezembro. Mas todos na escolinha o chamam pelo óbvio apêndice de sua alcunha: Júnior.

Veronica e Christiano aprenderam a nunca mais duvidarem das coincidências.


domingo, 10 de julho de 2022

Pixies no Rio



Pixies vem ao Rio! Quando soube, embora já praticamente descartando, pelas questões de aglomeração em um ambiente fechado (que considero ainda não ideais), tive a curiosidade de ver os preços dos ingressos e quem sabe, fosse convencido e deixasse de lado meus temores sanitários, uma vez que o show só ocorre em outubro, diante de uma oferta ($$$) muito convidativa. Improvável, considerando que o evento acontecerá  no Vivo Rio, mas fui dar uma conferida.

Até imaginei que não fosse barato mas fiquei estarrecido com o valor dos ingressos.
Preços absurdos, ainda mais para uma banda dessa natureza, fora do mainstream, de público mais alternativo, e longe de seu apogeu. Valores integrais na casa dos R$400,00 para pista, em torno de R$500,00 para camarote! Me parece haver um erro de avaliação da produção e organização do evento que, simplesmente, vai lhes custar uma casa vazia e um grande prejuízo.
Pixies é  banda pra Circo Voador, pra Fundição Progresso, pros fãs da antiga, quem curte mesmo, pra quem tinha as fitinhas cassete do "Doolitle", "do Bossanova", gravadas, lá nos anos 80, pro fã  do subúrbio, da periferia que é,  de um modo geral, quem curte mesmo som alternativo. Não pros "toddynho" da zona sul que vão ouvir uma meia dúzia de músicas alguns meses antes, vão lembrar que conhecem "Where is My Mind" do "Clube da Luta" e só vão mesmo porque tem mais um show internacional rolando por aqui. Lógico: não são todos, tem pessoal ali que conhece, que gosta e tal, mas são exceção. Só que, de qualquer forma, só essa faixa social, fãs ou não, poderá pagar esses valores.
Uma pena. Até para a banda e para o espetáculo, que os verdadeiros admiradores não  possas estar lá. Até  acho que, mais adiante, a organização irá  flexibilizar a coisa, criar promoções,  fazer a "meia-entrada da meia-entrada", mas mesmo assim, já  terá esvaziado e desvirtuado o evento.

De todo modo, para os interessados, segue o link da venda de ingressos:
https://www.ticketsforfun.com.br/




C.R.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Burt Bacharach & Elvis Costello - "Painted From Memory" (1998)


“Burt é um gênio.
Ele é um compositor de verdade,
no sentido tradicional da palavra;
em sua música você pode ouvir a linguagem musical,
a gramática do que ele faz."
Elvis Costello

“De todas,
eu realmente gostei das canções
 que eu escrevi com Elvis Costello,
como 'This House Is Empty Now'
e 'God Give Me Strength'.”
Burt Bacharach,
sobre suas composições favoritas



Este disco tem uma história que começa em 1971 com minha mãe, Véra Marisa de Andrade Moreira. Naquele ano, ela, que gostava de música da sua época, comprou um disco do maestro e compositor americano Burt Bacharach (aquele da capa verde em que ele está sentado numa cadeira vermelha e tem "Close to You", "Nikki" e “Wives and Lovers"). Quem se apaixonou pelo disco fui eu. Ouvia todo o dia. Não consigo explicar o que me atraiu àquele disco aos 11 anos de idade. Talvez já o gosto pela boa música.

Pulamos 27 anos. Eu já com 38 anos, soube que Burt Bacharach estava lançando um disco com Elvis Costello, inglês que tinha me impressionado 10 anos antes com o disco "Spike". Não tive dúvidas de que seria um grande disco, mas não estava preparado para o que ouvi, quando o Schmidt do Guion me disse que a encomenda havia chegado (sim, não aguentei e comprei importado. Cerca de três meses depois, foi lançado no Brasil). Era muito melhor do que jamais poderia ter imaginado. Uma simbiose perfeita entre o "estilo Bacharach" de ser com a finesse de Costello, que conseguiu traduzir em palavras todo aquele universo que Hal David (o parceiro de Bacharach nos anos 60 e co-autor daqueles sucessos todos) descortinou. Por isso tudo "Painted From Memory", de Burt Bacharach & Elvis Costello, lançado em 1998, é um dos meus discos favoritos.

Tudo começa de forma sombria com a apropriadamente chamada "In The Darkest Place". Como a maioria das canções deste disco, esta fala de amores desfeitos, de traições, de tristeza. O protagonista começa dizendo que está "No lugar mais escuro/ eu sei que você vai me encontrar/ Apesar de não ter de lhe lembrar/ que eu apaguei as luzes/ seus olhos se ajustam/ eles jamais serão os mesmos/ Você sabe que eu te amo/ vamos começar tudo de novo". Está sofrendo, mas não se exime de culpa deste relacionamento não ter dado certo. Lá pelas tantas, o narrador diz que “Mas eu tenho de dizer pra mim mesmo/ Você deveria estar com outra pessoa... seus amigos vão vir me dizer/ ‘tente arranjar um novo amor’/ Ele não vai te amar como eu”. A dor deste relacionamento fracassado ainda é muito forte. A flauta de Steve Kujala dá o clima soturno da canção. E os backing vocals, como em todo o trabalho de Bacharach, fazem uma resposta ao que diz Costello.

“Toledo” inicia com aqueles flugelhorns característicos do mestre, tocados em uníssono por Jerry Hey e Gary Grant. Nesta canção, o narrador é que cometeu a traição. E Costello usa a metáfora das cidades para contar esta história. “Mas as pessoas em Toledo sabem que seu nome não tem viajado muito bem/ E qualquer um em Ohio sonha com aquela cidadela espanhola/ mas não adianta nada dizer que aquela garota não significou nada/ E que cada pessoa que fitar seus olhos/ não vai encontrar perdão”. E o contracanto das backing diz: “Você ouve a voz dela, ‘como você pode fazer isso?’”. A pisada na bola foi das grandes. E a dor de cotovelo também: “Então eu caminho pelo sol/ E amantes passam rindo e brincando/ mas eles não sabem o tolo que eu fui/ Por que deveriam eles se importar com o que foi perdido, com o que foi quebrado?”. Pobre rapaz, pulou a cerca e dançou.

“I Still have That Other Girl” diz tudo no título. O homem está terminando o relacionamento porque ainda pensa na outra. E ele não faz questão de esconder. “Tenho de dizer que nos deveríamos terminar agora/ Antes que a gente fraqueje porque sabemos que está errado/ Eu poderia me entregar/ às vezes acho que sim/ apesar da tentação, tento ser muito forte”. Este discurso todo pra acabar com a atual porque “Eu ainda tenho aquela outra garota na minha cabeça”. Neste disco, Costello consegue mostrar porque é um ótimo cantor, pois além de usar toda sua técnica, ainda interpreta cada canção com o cuidado que merece. E o piano de Bacharach faz a moldura sonora para esta voz brilhar.

Na sequência, o compositor e pianista revisita um grande sucesso seu e dá uma nova versão para “A House is Not a Home” em “This House is Empty Now”. Com o violino de Belinda Whitney-Barratt iniciando a melancolia da canção, mais o baixo fretless de Dave Coy reforçando, Costello canta: “Estes quartos brincam com você/ Lembra quando eles estavam cheios de alegria?/ Mas agora estão desertos/ Eles parecem ecoar as vozes que soaram agressivas/ Talvez você veja meu rosto refletido na vidraça/ da janela de nosso pobre, infeliz e quebrado lar/ Ainda esta casa está vazia agora/ Não há nada que eu possa fazer para que você queira ficar/ Então me diga como deverei viver sem você?”. Ele não acredita que tudo acabou. “Você era mesmo tão infeliz?/ Você nunca me disse”. O sofrimento de ver a casa vazia onde tanta coisa aconteceu é demais para aguentar. Ele não vê saída. Muito triste. Uma das canções mais melancólicas de todo o disco. E uma continuação digna do sucesso dos anos 60.

“Tears at the Birthday Party” também é triste, mas o sax barítono de Dan Higgins e a bateria de Jim Keltner dão um certo alento. “Pense quando éramos jovens/ Sempre haviam lágrimas na festa de aniversário/ Você sabe quanto as crianças podem ser cruéis/ É como começa/ e se nós nunca tenhamos aprendido a nos comportar/ Eu fiz algo e você nunca me perdoou/ Nunca imaginei que seria assim/ Mas agora eu vejo/ eu vejo você repartindo o bolo com ele/ abrindo presentes que eu deveria ter mandado/ O que devo fazer?/ Devo ficar te observando?/ fechar a porta, diminuir as luzes e soprar a vela/ é feliz aniversário de novo”. A tristeza se instala quando vê sua ex feliz em seu aniversário, abrindo presentes e começando uma nova vida. Sem ele. E quando a dor aperta, ele diz: “E se nunca aprendermos com nosso erros/ Então, você nunca vai saber quanto dói meu coração/ Nunca pensei que seria assim”. As backing Donna e Lisa Taylor e Sue-Ann Carwell se deliciam com o refrão maravilhoso.

Bem no meio do disco está a única canção em que os amores dão certo. “Such Unlikely Lovers”. Nela, os teclados de Steve Nieve, velho parceiro de Elvis Costello estão mais proeminentes do que o piano de Bacharach. E isso é feito de propósito, pois é a faixa que tem também o clima mais pop de todo o disco. Ele aguarda a chegada de seu amor e, quando ela vem, ele diz: “Ouça agora/ não vou dizer que teremos violinos/ mas não fique surpresa se eles aparecerem/ tocando em alguma porta/ ainda não acredito no que está acontecendo/ nós somos amantes incomuns”. E quando fala em violinos eles tocam MESMO! No final, as cantoras perguntam: “você acredita que está acontecendo?” e Elvis responde: “Estou perplexo”. Nesta música também a guitarra de Dean Parks, veterano dos estúdios, se faz presente.

Mas a alegria dura pouco. “My Thief” conta mais uma história triste de um homem que não se convence de que acabou e todas as noites sonha com seu ex-amor. “Quando vou dormir, você é minha ladra”, ele inicia. Mas adiante, ele se entrega: “Me sinto quase possesso/ até que eu não perca este glorioso sofrimento então/ Você pode levar tudo o que sobrou/ Sei que acabou/ Se você não puder ser minha amante/ seja minha ladra”. Ele deixa a porta do quarto aberta, esperando que esta mulher volte um dia para sua alegria. Mas ela não vai voltar. No final, a mulher em questão responde na voz de Lisa Taylor: “Não te conduzi/ Mas sempre haverá/ um pequeno incendiário em todo mundo/ Então se acalme e não chore/ Estou tentando ser amável/ porque eu tenho um álibi perfeito”. Se você não chorou até agora é porque não tem nenhum tipo de sentimento neste seu coraçãozinho empedernido!

“The Long Division” inicia com o oboé de Earle Dumler e os teclados do convidado Greg Phillinganes e conta a história de um triângulo amoroso complicado. No refrão, o narrador diz: “E toda a noite você se pergunta/ ‘O que devo fazer?’/ Pode ser tão difícil de calcular?/ Quando três se transformam em dois, não sobra nada”. Com o destino já traçado, o narrador tenta ainda se aproximar: “Alguém disse/ Podemos ser amigos?”. Phillinganes faz um solo de moog impensável num disco das antigas de Bacharach, que, novamente, senta no banco de trás desta música. Separação embalada com música pop. Até que dá pra superar.

O que não dá é pra aguentar sem chorar é “Painted From Memory”, que é carregada pelo piano de Steve Nieve e pelo violão e guitarra de Dean Parks, além de uma seção de cordas inteira. Outra vez, a mulher foi embora e ele só pode lembrar de seu rosto de memória. No momento mais crucial ele diz: “estes olhos que eu tentei capturar/ estão perdidos pra mim para sempre/ eles sorriem para outra pessoa/ engraçado, como as aparências podem enganar/ mas ela não é facilmente lembrada de memória”. A memória lhe trai e ele está triste exatamente por isso. Porque a imagem do seu amor se desvanece. Melancolia pura.

“The Sweetest Punch” é mais animada, mas a temática é a mesma: amores desfeitos. E nesta canção, Costello usa o ringue como metáfora de uma separação. E, desta vez, a mulher é que desfere “o soco mais suave” do título. “Você abandonou o jogo, não consigo entender/ não depois de tudo que passamos/ Palavras começam a voar, meu queixo de vidro e eu encontramos algo que veio direto/ Você me nocauteou/ foi o soco mais suave/ o sino tocou/ Posso ouvi-lo soar mas não vi chegando/ Todos nos dizemos coisas que não queremos dizer/ Você não pode retirá-las/ Agora a sala está girando e eu fui o último a notar?/ Posso ver que nunca vou ganhar/ então, se você vai, é melhor que vá com ele/ Então é melhor ir com ele”. Depois disso, uma seção de cordas regida pelo maestro Bacharach carrega o tema musical até o fim.

Com Burt Bacharach e Elvis Costello, o amor sempre tem este viés de tristeza e abandono. Em “What’s Her Name Today?”, não importa quem se abandona. O sentimento é o mesmo. O narrador não sabe o que aconteceu. “Era ela quem levou embora seu orgulho e sua razão?/ Oh por que você decidiu punir toda garota que encontrou/ para tentar fazer aquele sentimento sumir?”. Ao perguntar qual é o nome da garota hoje, ele mostra que, mesmo tentando mudar o cenário, o sentimento é igual.

Pra fechar o disco, uma canção feita de encomenda e que marcou o encontro dos dois compositores: “God Give me Strength” foi feita para o filme “A Voz do meu Coração”, que conta a história de uma cantora e compositora que trabalha nos anos 60 e se apaixona por um cantor de uma banda surf music. O resumo não é dos melhores, mas é só pra dizer que, a partir desta encomenda, é que surgiu a parceria entre ambos. Costello pede que Deus lhe dê forças, porque tudo acabou. “Esta canção já foi cantada/ este sino já tocou/ ela era a luz que me abençoava/ Ela levou minha última chance de ser feliz/ Então Deus me dê forças... Talvez eu tenha sido lavado como uma marca de batom na sua camisa/ veja, eu sou apenas humano, eu quero que ele sofra/ Eu quero que ele/ Eu quero que ele sofra”. Ao dizer isso, Costello imprime uma marca de ódio e desespero na voz que nos comove, auxiliado pelas cordas sempre precisas de Bacharach.

É difícil chegar ao fim deste disco sem se comover. Os dois, Costello e Bacharach, conseguiram fazer um disco onde as temáticas e os estilos de um e de outro se completem plenamente. E criaram uma obra-prima moderna, utilizando sonoridades do passado e atualizando-as, sem cair num clima nostálgico caricatural e nem ser “muderno” demais. Se fosse você, eu pegaria uma dose de alguma coisa bem forte para ouvir com calma “Painted From Memory”, um disco cheio de nuances musicais e vocais que merece ser curtido.

vídeo de "God Gve Me Stenght" - Burt Bacharach and Evis Costello
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FAIXAS:
1. In The Darkest Place (4:15)
2. Toledo (4:31)
3. I Still Have That Other Girl (2:44)
4. This House Is Empty Now (5:08)
5. Tears At The Birthday Party (4:37)
6. Such Unlikely Lovers (3:22)
7. My Thief (4:17)
8. The Long Division (4:11)
9. Painted From Memory (4:11)
10. The Sweetest Punch (4:07)
11. What's Her Name Today? (4:05)
12. God Give Me Strength (6:10)

todas as composições são de autoria de Bacharach/Costello
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OUÇA: