Que coisa boa ver um filme desses! Ainda enquanto estava na sessão, o filme nem havia terminado ainda, e eu já estava gratificado por estar assistindo àquilo, independentemente do final que viesse a ter. "A Vida Invisível", longa-metragem do cearense Karim Aïnouz, é merecedor de todo o reconhecimento, elogios e premiações que vem recebendo. Bem dirigido, bem estruturado, de escolhas artística e estéticas acertadíssimas e roteiro extremamente bem amarrado que mantém o espectador interessado e envolvido o tempo inteiro, o filme traça os caminhos de duas irmãs extremamente ligadas uma à outra, Guida e Eurídice, que são separadas, num primeiro momento, por uma aventura amorosa inconsequente de Guida, mas sobretudo, são afastadas definitivamente pela intolerância, pela ignorância e pelo machismo. A atitude covarde do pai das garotas ao não aceitar a filha aventureira de volta, grávida, e mentir sobre o destino da outra que ficara em casa, casara e tocara sua vida em frente, faz com que, cada uma, separada da outra e ignorante da verdade, passe a imaginar a vida da outra a partir do último momento que viveram juntas e do conhecimento dos projetos que a outra tinha. Eurídice imaginando que a irmã, que fugira com um marinheiro grego, era feliz na Grécia; e Guida, que Eurídice fazia sucesso na Áustria com seu enorme talento musical ao piano. Nada disso! a verdade era bem diferente. Guida, depois de colocada na rua pelo pai, comeu o pão que o diabo amassou, se virou como deu, criou o filho e por vias avessas, acabou encontrando uma família com a bondosa Filó, com quem fora morar e criara uma amizade inabalável. Eurídice, por sua vez, casada e relegada à vida de dona de casa, é frustrada pela renúncia a seu dom artístico e, mesmo passados anos da partida da irmã, trava uma busca incansável para encontrá-la, tendo como única pista o fato de que aquela embarcara para a Europa no início dos anos 50.
As irmãs, Guida (esq.) e Eurídice (dir.),
pouco antes da fuga que começou a separá-las.
O fato do filme ser tão saboroso enquanto obra de arte, como referi no início, não faz dele, no entanto, algo leve. "A Vida Invisível" é duro, é triste, é revoltante, é forte. O filme aborda o tema da mulher na sociedade e do machismo que permeia as relações familiares desde sempre, de forma pungente sem, contudo, se tornar cansativo ou panfletário, escancarando, de maneira muito clara, o quanto o apego a velhos valores preservados em nome da família, de tradições, de costumes, de orgulho, honra, etc., podem destruir vidas, especialmente de mulheres, e mostra como esses tais "valores" eram capazes disso nos anos 50, quando se passa a trama, e deixa a reflexão para o quanto são perigosos ainda hoje.
Não há como deixar de dedicar algumas linhas à breve mas não menos importante e significativa participação de Fernanda Montenegro, na parte final do filme, interpretando Eurídice já idosa. É uma aparição relativamente curta, não são muitas falas, mas a presença dela na tela e sua interpretação, sempre precisa, abrilhantam aqueles momentos e agregam ainda mais qualidade ao filme.
"A Vida Invisível", assim como o já comentado aqui "Bacurau", é outro daqueles casos de reposta à negação à cultura que o país vem promovendo, especialmente nos últimos meses. Quanto mais a cultura apanha, mais ela responde, e em grande estilo. Depois de ser reconhecido no último Festival de Cannes com o prêmio Un Certain Regard, o filme de Karim Aïnouz é o inscrito brasileiro para a pré-seleção do Oscar de Filme Estrangeiro e, sinceramente, não acharia nenhum absurdo se entrasse entre os cinco candidatos e levasse o tão perseguido prêmio. Aí sim, com um filme feminista, vetado para exibição pelo próprio governo em órgãos públicos, seria o mais lindo tapa na cara do atual governo poderia levar. Se bem que..., provavelmente eles diriam que esse pessoal da Academia de Hollywood é tudo um bando de comunista e viado.
“Consegui
sair bem – Prometi não voltar atrás e cumpri a promessa. (...)
Graças ao povo soviético, ao povo chinês, tcheco-eslovaco e
polônes e ao povo do México, sobretudo ao de Coyoacán onde nasceu
minha primeira célula, concebida em Oaxaca, no ventre de minha mãe,
que havia nascido lá era casada com Guillermo Kahlo – minha mãe
Matilde Calderón, morena esbelta de Oaxaca.”
(Frida Kahlo, 1957)
“Minha
infância foi maravilhosa. Ainda que meu pai estivesse enfermo
(sofria vertigens cada mês e meio), para mim constituía um exemplo
imenso de ternura e trabalho (como fotógrafo e pintor) e, sobre
tudo, de compreensão para todos os meus problemas.”
(Herrera,
1984)
“Pés,
para que te quero, se tenho asas para voar?”
(Frida Kahlo, 1953)
Frida Kahlo nunca deixou de ser a menina da Casa Azul. Filha de pais
de origens étnicas diferentes: Guillermo, judeu-alemão, e Matilde,
uma mestiça mexicana indígena. Frida viveu 47 anos sendo a criança
modelo das fotos de seu pai. Teve uma vida de constante sofrimento
corporal que a levou a crises emocionais também constantes, mas quem
de nós não possui seus traumas e suas feridas? Em Frida estas
vivências estiveram sempre presentes. Mas a existência de algumas
pessoas passa encoberta pela grosseira vestimenta corporal humana,
que morre junto com elas. Em outras, o corpo dilacera-se para mostrar
o quanto forte e bela é a alma. Este é o caso de Frida.
Francisco
Haghenbeck, Rosa Montero, Frederico Morais, eu e a torcida “pop”
do mundo são admiradores de Frida Kahlo. Já perceberam quanto o pop
tende a endeusar pessoas que aparentemente tiveram vidas
“desajustadas”, “fora de padrão”, “incômodas” a quem se
diz normal? Esta mulher, ainda hoje, 61 anos após seu desencarne, é
comentada sob o viés humano do “coitadismo” e da maledicência,
mas poucos se atentam que ela deixou uma obra que poucos de nós
ousaríamos produzir se estivéssemos assim, em estado de
“desintegração”, como ela se definia. Frida era uma legítima
personalidade azul-índigo que não à toa, vazou os limites
corporais e fixou-se nas paredes da Casa Azul, em Coyoacán, onde até
hoje está parte da sua produção, parte das suas vivências íntimas
e histórias imaginárias, transmitidas no meio das Artes por pessoas
que nela se inspiram.
Admiro
Frida desde que vi sua primeira obra e isso me basta, me inunda e me
intriga. Sempre gostei do seu “estilo artístico”, talvez porque
o Surrealismo sempre tenha sido uma escola que falasse o meu idioma
mais interno. Sonho, distância e inconscientes, todos ali pulsando.
O feminino sempre em evidência de maneira exposta, sem meandros e
firulas. Sentindo tudo o que se passa e aquilo que perpassa o
invisível, o mais íntimo.
Diferente
da maioria das pessoas que fala sobre Frida só fui saber dos
detalhes biográficos de sua vida anos após de ver a primeira
reprodução de seus quadros. A mistura entre a biografia de artistas
referenciais, a vida e a sua produção artística me deixam
incomodada assim num primeiro momento. É claro que saber do contexto
em que um artista viveu e quais foram suas trilhas humanas pode
interessar, mas só em parte. A análise superficial e o grau de
preciosismo é muito abaixo do que se tem sobre sua Arte se comparar
com o demasiado excesso de comentários sobre sua vida, suas doenças.
Com isso eu não compactuo, porque simplesmente não faz diferença
para mim sua opção sexual, suas relações amorosas, sua escolha
política ou quantas cirurgias e abortos passaram. A Arte vai além
das humanidades: é algo oriundo d’alma de quem se coloca como um
intermediário, um leitor atento de si e do meio em que está em prol
dos outros. Interessa-me a Arte mais puramente genuína, os seus
guardados, como por exemplo: a descoberta de um “diário”, a
ideia da perda literária de um imaginário “livro de receitas”
ou a grande concha-azul: a casa de Coyoacán.
Por
isso, quando escuto algo sobre ela sempre me vem perguntas: “Quais
os temas que Frida pintou que de forma surreal não percebemos num
primeiro contato?” “Quais mensagens ela quis registrar com essas
pinturas?” “É acaso a pintora reproduzir seus retratos
incessantemente?” “Quais vestígios ela quis nos deixar com seus
quadros e códigos do inconsciente?” “Quem de fato se aventura a
mergulhar aí, neste universo particular da pintora?” Porque,
convenhamos, discorrer sobre criticas padrão no mundo das Artes é
algo que não cabe na escola surrealista.
“Quem
diria que as manchas vivem e ajudam a viver? Tinta,
sangue, cheiro. Não sei que tinta usar, qual delas gostaria de
deixar desse modo o seu vestígio.”
(Frida Kahlo)
Ela
costumava dizer: “Pinto a mim mesma porque estou frequentemente
sozinha e porque sou o tema que melhor conheço”. Mas se formos
mergulhar em sua história, a pintura é uma continuidade do gesto de
seu pai fotografando-a. Ele, sua maior referência, era fotógrafo e
retratista. Como filha, ela se transformou, assim, para sempre, em
pintora de seus próprios retratos. A retratada reproduzindo
incessantemente sua face, sua persona criada como primeiro plano de
seu universo inconsciente.
Visitando a exposição “Frida Kahlo – As suas fotografias”,
apresentada ano passado no Brasil somente no Museu Oscar Niemeyer/MON, em Curitiba, com curadoria do mexicano Pablo Ortiz
Monasterio pude refletir sobre a forma como se fala e se transmite a
história e a Arte de um artista após a sua ausência física.
Frida
transitou sempre entre dois mundos: o real e o imaginário. Muito do
que ela pintou está neste intervalo entre o que vemos registrado
historicamente e o que é sentido como um bem individual da artista.
As pistas de Frida são inúmeras e simbólicas. Canceriana literal,
porque vivenciou uma relação direta com a imagem seja ela em
movimento ou fixa, de natureza totalmente passional, Frida guardou as
imagens de sua vida, acumulando cerca de 6.500 fotografias. Dessas,
somente 241 foram selecionadas para o MON.
“Por
isso a morte é tão magnifica. Porque não existe, porque só morre
aquele que não viveu”.
(Frida Kahlo)
A
exposição tinha uma particularidade: não podia ser fotografada.
Então o que guardo após a visita são as bagagens e as correlações
que posso buscar dentro da minha alma feminina, como admiradora de
Frida.
Chamou-me atenção para onde os olhares de Frida convergiam. A
família, os amigos, os amores, a morte, a política e os animais.
Vejam: somente temas comuns a todos nós, seres humanos daquele e
desse século.
Muitas
imagens eram do acervo familiar de seu pai, Guillermo. Frida e ele
têm entre si essa sutil e intensa ligação. Um fotografou com a
câmera e o outro com o pincel. Outras imagens, estas claramente
guardadas e clicadas por Frida, são os seus olhares sobre temas de
sua vida. Num jogo de esconde-esconde, por entre os meandros do pátio
da Casa Azul e o que há lá fora. Vemos fotografias recortadas sem
uma forma definida ou repetida. Recortadas sem uma edição
consciente propositada, mas com foco, seja ocultando rostos, parte da
cena e, muitas vezes, inviabilizando a percepção do que estava
acontecendo ou quem eram as pessoas naquele momento do registro.
Voltando
aos seus quadros, alguns nos deixam no limiar do intraduzível, do
não dito, do não visualizado. Na vida e na Arte Frida mostrava-se
em primeiro plano e escondia o que não interessava ou estava mais
oculto, em plano de fundo. Cenas, bichos, cores faziam esse plano
quase sempre muito detalhado um ocasional cenário para a sua posição
central, de retratada. Aí ela assumia a figura do pai e o seu
próprio ofício de forma sintetizada e interligada. Não esqueçamos
que para os cancerianos, a família é sempre muito referencial, às
vezes quase assume um papel simbiótico e interminável em suas
vidas. Como se a criança estivesse sempre naquele momento onde tudo
era melhor, era confortável e prazeroso. Como se o tempo tivesse
congelado as emoções e nada após esse tempo pudesse dar certo, ser
mais importante ou significativo.
Volto
a dizer, porque ela destinou parte de sua produção aos retratos?
Talvez para resgatar um pouco daquela vida normal até os cinco anos
de idade quando a fotografia e o retrato a deixavam bela e em
destaque na vida familiar. Quem sabe?
Frida
foi dona de uma “mexicanidade” como exalta Frederico Morais (em
seu texto “Frida Kahlo: Tudo é autorretrato”) uma mulher fruto
desse misto entre culturas (a europeia e a pré-colombiana). Sempre
exuberante em sua apresentação através dos vestidos, penteados,
pratarias e referenciais estéticos tehuanas, claro, mas a
história dessa obra diz muito mais e é comentada pela própria
artista.
''Origem
das duas Fridas. Lembranças. Devia ter 6 anos quando vivi
intensamente a amizade imaginária com uma menina de minha idade.
(...) Não me lembro de sua imagem, nem de sua cor. Porém sei que
era alegre e ria muito. Sem sons. Era ágil e dançava como se não
tivesse nenhum peso. Eu a seguia em todos os seus movimentos e
contava para ela, enquanto ela dançava, meus problemas secretos.
Quais? Não me lembro. Porém ela sabia, por minha voz, de todas as
minhas coisas (...) Sozinha com a minha grande felicidade e a nítida
lembrança da menina. Passaram-se 34 anos desde que vivi aquela
amizade mágica e cada vez que a recordo mais ela se aviva e mais
cresce dentro do meu mundo.”
(Pinzón,
1950, As Duas Fridas)
Frida
foi uma mulher concha. Carregou consigo suas vivências e transpôs
cada uma delas a seu jeito para as suas telas. Não foram muitas,
dizem alguns - cerca de 200 pinturas, mas todas guardam uma força e
uma vida incrível. Frida ao contrário do que muitos pensam nunca
negou a morte, mas conviveu com a sua presença constantemente. Nos
mostra em sua Arte que ela é muito real, mas que a sua alma é
livre. Quem de nós em situação tão adversa produzira tanto? Quem
de nós?
Deixemos de lado um pouco a vida dos artistas, isso não interessa
tanto. Deixemos que a Arte venha com a força transformadora que o
feminino possui. Vamos buscar o que de fato interessa na Arte. Este é
o caminho, senão ficaríamos todos vivos e a Arte morreria. E
sabemos que aquilo que acontece é bem o contrário: as pessoas
passam, mas suas Artes boas ou más ficam através dos tempos. Cabe a
nós selecionar as mensagens, desvendar os códigos, ir mais fundo e
voltar nutridos dessa vivência. Uma forma de sermos muitos através
do aprendizado dos outros que vivenciaram fatos que talvez nunca
saibamos como são. Pistas certeiras do quanto se pode voar alto,
quando estamos libertos, de asas abertas para sentir a vida do jeito
que ela é.
(Frida
Kahlo: 06 de julho de 1907/ 13 de julho de 1954 - Coyoacán/México)
O filósofo polonês Zygmunt Bauman, grande leitor dos nossos tempos, bem descreve que a modernidade “líquida” em que vivemos gera, por conta e culpa da globalização descontrolada, o que ele chama de “mixofobia urbana”, a tensão permanentemente desagradável e perturbadora da estranheza ao outro. Essa presença irritante entre estranhos da mesma cidade, vizinhos separados pelas diferenças sociais por meio de espaços “interditados”, é, segundo ele, “uma fonte inesgotável de ansiedade e de uma agressão geralmente adormecida, mas que explode continuamente”. O longa sul-coreano “Parasita”, escrito e dirigido por Bong Joon-Ho, é um dos filmes mais perspicazes na leitura destes tempos líquidos. Mordaz e crítico à sociedade capitalista, a obra expõe uma alegoria da vida real, em que, recorrendo aos mais animalescos recursos de sobrevivência nesta selva chamada cidade, todos os caminhos dessa violência sistêmica levam a uma coisa: a morte.
Palma de Ouro no Festival de Cannes e vencedor de três Globo de Ouro – Filme, Diretor e Roteiro –, “Parasita” retrata as ações de uma família pobre, os Kim, que manipula outra família, os abastados Park, para arrumar trabalho. Através de uma série de mentiras e planos mirabolantes, os vigaristas conseguem se "infiltrar" na mansão luxuosa, como um parasita que habita um corpo sem que ele perceba. A casa, no entanto, também está cheia de mistérios, que os Kim vão desvendando ao longo do desenrolar dos fatos, o que vai tornando a narrativa de um humor ácido para um terror psicológico. Muito bem fotografado e montado, alia ainda com precisão trilha sonora e edição de som para adensar essa atmosfera sinistra.
Os Kim: pobreza e miséria social que os assemelha a defuntos
A densidade psicológica do filme, entretanto, é evidenciada logo de princípio com a fotografia suja da casa onde os Kim moram. Ou melhor: se entocam, haja vista as condições subumanas daquele porão escondido e da indignidade social a que são sujeitados. Para piorar, na era digital não são apenas as condições de moradia, trabalho e ensino que compõem a situação de miserabilidade: a tecnologia se torna mais um elemento de segregação. Se tem internet, está-se vivo; ao contrário, não. As pessoas da família Kim, esteticamente parte essencial deste cenário, são tão emporcalhadas daquela subvida que parecem defuntos. Eis um dos elementos narrativos principais do longa: a morbidez, expressa tanto nas peles e corpos quanto, mais simbolicamente, nas relações sociais e interpessoais. Cenas como o casal Kim deitado sobre o chão e enfileirados, o momento em que se arrastam para fugir da mansão sem serem percebidos ou o sono profundo do qual a senhora Park é acordada pela governanta denotam esse aspecto mórbido.
O designo irrefreável da morte que “Parasita” suscita, assim como em Kafka, é uma metáfora a vários níveis da sociedade, seja a da oriental sul-coreana, seja a nossa, do Ocidente. A exclusão das classes desfavorecidas, a displicência cruel do estado liberal, a americanização desmedida – que leva à descaracterização/morte cultural – e as feridas não curadas da guerra se embolam, formando um suco de insegurança e medo de todos os lados: os miseráveis, já muito próximos da morte caso não melhorem sua condição; e os ricos, permanentemente inseguros quanto à invasão do “estranho” às suas vidas estabelecidas. Assim, num sistema desequilibrado em que se privilegia o que está na superfície, aquilo que é feio e não quisto vai para baixo, é disfarçado, tapado, soterrado. Como defuntos sepultados – ou, pior, pessoas enterradas vivas. A casa dos Kim e o bunker da mansão dos Park – cujos portais simbólicos, a porta rodeada de objetos e a que dá acesso ao porão, fazem a ligação entre os espaços “interditados” – são cânceres que inevitavelmente coexistem com o mundo ideal do capitalismo. Mas mesmo que se finja não existirem, o lado escuro é retroalimentado pelo próprio sistema e suas desigualdades. Seus habitantes, proibidos à convivência “civilizada”, são como ratos e insetos que vivem de parasitar. Mas essa interdição, claro, tem seus limites, e é aí que se abre espaço para a explosão de toda a agressividade silenciada.
O portal simbólico que separa sonho de realidade
Tal tensão mixofóbica, vista também em filmes como “O Som ao Redor” (Kleber Mendonça, 2013) ou “Amores Brutos” (Iñárritu, 2000), inibe tanto a empatia quanto a razão. A tal ponto que resta apenas recorrer aos instintos. Não há planos para o futuro: apenas deixa-se os acontecimentos virem, como diz o personagem a certa altura. A esperteza murídea dos Kim de ascenderem do seu subterrâneo a qualquer custo, bem como a superficialidade nada inocente dos Park para com estes e entre eles próprios, são dois lados da mesma miséria. O sexo, a comida e o consumo para a satisfação física são, digamos, o lado “legal” desta instintividade. Mas as coisas complicam, obviamente, haja vista que ninguém recorre à consciência humana e, assim, a luta pela sobrevivência se impõe. É quanto o individualismo, a perversidade e a violência se juntam a este rol de comportamentos, que remetem ao mais animalesco dos seres. Brilhante a analogia com a figura mítica do índio – originária da criticada sociedade norte-americana –, elemento semiótico fundamental para a cena da festa. O roteiro merece aplausos também pela sequência da chuvarada, em que a natureza se mostra alertadora, visto que mais implacável do que qualquer disfarce social. Igualmente, a pedra, presenteada aos Kim como um amuleto, e que serviu, como nas cavernas, para abater o inimigo.
Song: atuação que merecia indicação ao Oscar
Fazia certo tempo que não via um recente Palma de Ouro e, como sempre, ao contrário do que proporciona às vezes o Oscar – ao qual “Parasita” concorre como Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro, simultaneamente, além de Diretor, Roteiro Original, Montagem e Direção de Arte –, não decepciona. A aceitação à crítica e a diversidade ideológica sempre tiveram bastante espaço na premiação francesa, enquanto que, na norte-americana, não raro falte. Até por isso, é evidente que o filme, já ostentador do feito inédito de levar um título sul-coreano ao Oscar, não leve a principal estatueta da noite, mas provavelmente seja devidamente compensado – como ocorrera com o mexicano “Roma”, no ano passado –, com o de Melhor Estrangeiro. Talvez até pinte o de Roteiro, por exemplo, pois merece. Mas senti falta de ver o ator Kang-Ho Song, que faz o pai da família Kim, concorrendo, talvez até no lugar do meu admirado Leonardo DiCaprio, bem em “Era Uma Vez em... Hollywood”, mas abaixo do que já foi desafiado em ocasiões anteriores – inclusive, as várias em que não ganhou.
“Parasita” pode ser considerado daqueles divisores-de-águas no cinema. Em certo sentido, países capitalistas em emergência como a Coreia do Sul, o México e o Brasil estão enfrentando momentos de tensão sociopolítica semelhantes em alguns aspectos e diferente noutro, mas certamente transformadores de suas sociedades e, haja vista a polarização reinante a que somos acometidos atualmente, de alta carga de mixofobia. Talvez por isso não seja coincidência que o Brasil também viva um momento especial em seu cinema com filmes como “A Vida Invisível” e “Bacurau”, principalmente, que, igualmente a “Parasita”, demarcam um “pré” e um “pós” em termos de produção dos países em que se originam. “Bacurau”, aliás, assim como o filme de Joon Hoo, também toca na questão da invasão norte-americana e a tentativa de apagamento do outro, do “estranho”. Metáforas denunciadoras da “mixofobia líquida” que Bauman nos alertou. Espero, no entanto, que obras como “Parasita” não signifiquem apenas denúncia e resistência, mas um princípio de consciência e de mudança a quem as assista com olhos de alerta. Sinceramente, espero.
"Olho na Boca" - RODRIGUES, Daniel grafite sobre sulfite com manipulação digital (15,5x13cm)
Talvez
a vida seja mais importante quando estamos de olhos fechados. Para
bem e para mal. Talvez, se formos contar todos os milésimos e até
segundos de piscadelas, as horas de sono e as fechadas de olho
involuntárias que praticamos durante um dia inteiro, perceberemos
que passamos a maior parte do tempo de olhos fechados do que abertos.
Esse simples ato serve para situações tão díspares: surpresa,
frustração, dor, insegurança, incredibilidade, resignação,
esquecimento, choro, conquista, derrota, tristeza, cansaço,
concentração. Oramos assim. Saboreamos um prato gostoso assim.
Paqueramos assim, fechando um olho e deixando o outro aberto. Talvez
passemos, sim, mais tempo da vida de olhos fechados do que abertos se
formos ver (ver?). Quando nascemos, intercalando com os momentos de
mama, dormimos quase todo o tempo, mas, diz-se que, antes disso, na
barriga, passamos ali um bom tempo só de olhos fechados (fora que
deve ser de um escuro tão cândido que é quase como o de não abrir
os olhos).
De
modo a reter as sensações, daquelas importantes, fechamos os olhos.
Ouve-se música desse jeito. Quantas vezes já não o fiz, e sempre
repito, ao escutar o verso: “I’m So Sorry” de Morrissey em
“Suedehead”, ou o primeiro pronunciar de Lennon em “Dear
Prudence”. Até em filmes, em que se supõe manter-se
permanentemente de olhos abertos, há momentos em que,
inevitavelmente, os fechamos, tamanha a surpresa que nos acomete.
É-me assim na cena d’”A Fonte da Donzela”, do Bergman, quando
ela bate com a cabeça no chão e começa a fluir a água – para
ficar em apenas um exemplo do arrebatamento que nos provoca o cinema,
esse exercício lúdico de luz e escuro.
Cantamos,
todos, fechando os olhos. Sinatra, João, Cathy, Ibraim, Ramil,
Cobain, Cássia, Elis, Ella. Isso parece que nos faz sentir melhor os
sons que emitimos, não sei porque. Também dançamos,
invariavelmente, desse modo: selando as vistas. Seja sozinho, no meio
da pista ou em qualquer lugar, naquele ritualismo extasiante, ou
acompanhado, juntinho, sentindo um corpo no outro. Para isso, fechar
os olhos é fundamental, nem que seja para poder abri-los alegres
depois.
E
quando algo é sério, é fato: os cerramos, como para um gol feito
desperdiçado ou um gol adversário na hora mais indevida do jogo.
Beijamos, quando amamos, de olhos fechados. Às vezes, por longos
minutos, sem abri-los. Semicerrados, talvez, mas, de forma prática,
fechados. No êxtase, apertamos bem forte os olhos naquele prazer
intenso. Gozo não é gozo de olho aberto! Com tesão, antes do gozo,
é aquele fechar e abrir devagar, câmera lenta, curtindo a sensação
que te absorve.
Olhar,
portanto, torna-se a raridade, o menos comum. Por que não gastar,
então, esses lapsos do tempo, entre uma piscada e outra, para
enxergar? Tem o sol, o raio do sol, o verde da grama, o vermelho do
sangue, o movimento das gentes, os filmes bons e ruins, os telhados,
as letras dos livros, o traço do pintor, as bobagens coloridas da
tevê, os bichos, o rosto de quem se ama. O céu. Tanta coisa... Ver
tudo que é visível ou nem tanto. Ver o invisível. Digo-lhes: dá.
Pois,
por vários motivos que não só esses (talvez precise me concentrar,
achando o que quero na escuridão, para lembrar-me de mais), creio
que a vida toda seja mais importante quando estamos de olhos
fechados. Refleti sobre isso ontem quando, de olhos fechados, fui
beijado sobre minha pálpebra, num beijo dado de olho fechado em um
olho fechado, o meu. Meu globo ocular, faceiro de tanta emoção,
agitava-se por debaixo daquele beijo. Acho que os olhos têm um canal
direto com o coração (há de se estudar mais nossa anatomia).
Tomo-me
de paz ao pensar que esta pessoa que me beija tão solenemente de
olho fechado em meu olho fechado acompanhará todos os momentos de
olhos abertos (e fechados) da minha vida até o fim dela, quando,
enfim, os fecharei para sempre. A morte, penso, calando neste
instante os olhos levemente, é a confirmação de que, por todo o
tempo anterior a esta, recebemos luz. Mas que, no agora de quando
for, simplesmente, não mais. Escuro. A morte, essa não-luz, talvez
seja, por isso, a síntese.
Talvez
os cegos sejam os verdadeiros abençoados por Deus. Talvez.
Meu
último fechar de olhos, quando silenciá-los de vez, quero, por isso
tudo, seja com ela, absorvido na beleza do escuro que sempre me
acompanhou.
Gotham City, 1981. Em meio a uma
onda de violência e a uma greve dos lixeiros, que deixou a cidade imunda, o
candidato Thomas Wayne (Brett Cullen) promete limpar a cidade na campanha para
ser o novo prefeito. É neste cenário que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix)
trabalha como palhaço para uma agência de talentos, com um agente social o
acompanhando de perto, devido aos seus conhecidos problemas mentais.
Uma direção perfeita,
tecnicamente impecável, uma atuação espetacular, uma das melhores construções
de arco de personagem que já vi, fazem de “Coringa” uma obra de arte, que, no entanto, pode vir a se tornar extremamente perigosa se for interpretado de certas maneiras.
É, mas o fato de classificá-lo como perigoso, não deixa de ser também um mérito, uma vez que mostra o personagem principal como um homem que apenas está respondendo, tomando ações para
confrontar a forma com que pessoas e o sistema, o tratam, levando um cidadão a atitudes e ações extremamente violentas, que na
obra, dentro deste contexto, acabam mostrando-se justificadas. E digo que pode ser perigoso, no caso de qualquer um assistir ao filme e acabar se identificando com Arthur (o que é bem possível devido ao realismo da
trama) e tudo aquilo servir como inspiração e um gatilho para atitudes
parecidas. Então, cuidado! Procure conversar com alguém sobre o filme, ok?
Como obra cinematográfica, o
longa chega perto da perfeição. Desde de um roteiro bem escrito, uma fotografia
sublime, e uma direção que sabe o quequer, onde pretende chegar e nos levar. Mas o que torna o filme realmente
memorável é atuação de Joaquin Phoenix. O homem está possuído em cena! Tudo,
definitivamente TUDO, que ele faz no filme é ESPETACULAR! Uma atuação com o
corpo todo, uma fisicalidade assustadora e visceral. Seus olhares, suas falas, até
os momentos que está em silencio conseguem ser espetaculares. Me chamou muito
atenção a mudança de postura de Arthur quando se transforma em Coringa: deixa de
ser aquela pessoa com aparência fraca, corcunda para se tornar um homem poderoso,
intimidador.
Um dos melhores estudos e
construção de personagem dos últimos tempos no cinema. Um protagonista que sai do ponto
A e vai até o ponto B muito bem conduzido pelo roteiro e direção, o que é ótimo de observar. Ver que ao final da história,
não só o personagem mudou você também mudou. Isso é cinema e o seu melhor como
arte. Aquilo que instiga, faz refletir e ainda é delicioso de se assistir. E como se não bastasse tudo isso, "Coringa" é uma bela homenagem a Scorsese e seu cinema da nova Hollywood.
Vá
com calma, acompanhe toda jornada desse palhaço louco, tenha medo, mas não
deixe de acompanhá-lo pelas perigosas ruas deNova..ops.. , quero dizer... Gotham.
Pura genialidade! Uma aula de atuação.
Algo que não se esquece tão cedo.
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A descida ao inferno
por Daniel Rodrigues
Poucos filmes me geraram tamanha expectativa antes de assisti-lo como “Coringa”, de Todd Phillips. Mas neste caso, foi mais do que expectativa: foi medo mesmo. Medo de ficar decepcionado com a comum ideologização permeada de parcialidade do cinema comercial norte-americano, com a superficialidade com que tratam muitas vezes assuntos profundos ou, pior, com a recorrente banalização de temas ricos como se fossem apenas produtos de entretenimento. Geralmente tento estar com a mente aberta ao que o filme me trará, não raro sem ler nada a seu respeito antes. Mas com Coringa era impossível, pois tinha receio que o deturpassem, e isso me irritaria muito, uma vez que me é um personagem caro. Já não basta o que fizeram com o seu arquirrival, Batman, cuja DC Comics, sem controle de seu personagem mais icônico na transposição para o cinema – diferentemente da Marvel para com as suas marcas – deixou que o Homem-Morcego fosse mais inexpressivo que os vilões nas versões de Tim Burton, virasse um existencialista falastrão na trilogia de Christopher Nolan e alterasse totalmente o porquê de seu embate com Superman por pura falta de colhões em reproduzir a obra original dos quadrinhos.
Com o Coringa não podiam cometer o mesmo erro. Não podiam desperdiçar uma mitologia tão rica, a oportunidade e contar uma história inigualavelmente promissora como ainda não se tinha feito. Quem como eu acompanhou os HQ’s de Batman nos anos 80 e 90 sabe o quanto este personagem é especial e – mesmo com o fio condutor que monta a sua biografia desde que foi criado – complexo. E foi exatamente isso que o filme de Phillips conseguiu: construir um personagem denso e crível, não apenas respeitando a sua saga como amarrando aspectos sociológicos e psicológicos com surpreendente minúcia.
O ponto que mais me preocupava antes de assistir era o de se querer dar a um maníaco assassino como Coringa um caráter meramente vitimista para sustentar o clichê de que a sociedade moderna é a principal responsável por criar monstros como ele. Subterfúgio, claro, usado unicamente para imobilizar as consciências e manter tudo como está em favor daqueles que comandam o sistema. É quase isso, uma vez que a opressão social, política, ideológica e a consequente invisibilidade que esta condição subalterna dá aos desfavorecidos ou diferentes como ele é, sim, combustível para a formatação da persona Coringa a que o personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) acaba por assumir em sua caminhada de loucura e dor. O problema é que Coringa é um velho conhecido, uma vez que não se trata de um personagem como os de vários filmes em que os elementos narrativos vão dando subsídios para que se construa do zero na cabeça do espectador o psicológico e a identidade dele. Trata-se, no caso do principal vilão dos quadrinhos do Batman – quiçá de toda a história dos HQ’s – de uma “pessoa” a quem já se sabe onde vai chegar e quais os traços essenciais o compõem enquanto sujeito. Ou seja: precisavam ser bastante críveis para me convencer.
Por isso, a questão é mais profunda quando se fala em Coringa. Entretanto, o roteiro do filme é muito feliz ao abarcar todos esses aspectos e ir ao cerne das coisas. Além da visível esquizofrenia e a propensão à psicopatia, controladas até certo ponto pelo sistema através não só de medicações como da opressão social, há nele uma motivação estritamente subjetiva e humana, que é a família. O histórico de maus tratos, o desajuste familiar e a condição de pobre, inadequado e fracassado poderiam até ser equalizadas se continuasse levando uma vida medíocre e sem visibilidade como de fato tinha.
Mas é a perda da figura central da mãe (a quem ele duplamente perde, simbólica e materialmente, uma vez que ele mesmo a mata) a chave para o desencadeamento do que lhe havia de pior, para que se concretizasse o Coringa que conhecemos. Representa a ruptura, a definitiva descida ao que estava represado, a qual o cenário da escadaria simboliza na trama o caminho: para cima, a redenção, para baixo, o inferno. A mãe, única pessoa a quem ele podia dedicar carinho, era a como o pino de uma granada: se fosse removida, a bomba explodiria. E foi. Uma justificativa altamente plausível que, aí sim, juntada aos fatores externos da igualmente violenta sociedade é um prato cheio para o surgimento de indivíduos perigosos como Coringa. Ele é vítima, sim, mas é também produto do descuido da sociedade para com o dessemelhante, o cidadão não-comum, que não se encaixa nos padrões estabelecidos. Fosse pelo talento de artista, a encarnação do dualístico e bufão clown, fosse pela loucura latente que lhe prejudicava a socialização, nunca lhe deram atenção. Ninguém. Sua resposta veio em forma de um empedramento doentio e de vingança. Agora teriam que lhe dar atenção, da pior maneira possível.
O ótimo resultado de “Coringa” é em grande parte fruto da atuação exuberante de Phoenix – o que, aliás, mesmo com a desconfiança do que o filme apresentaria, tinha certeza de que seria brilhante. A construção que Phoenix dá a Coringa considera a trajetória dos HQ’s, a literatura, o imaginário social e todos os outros que vestiram o personagem antes dele no audiovisual. É possível enxergar Jack Nicholson, Heath Ledger, Cesar Romero e Jared Leto, assim como estão ali o Coringa dos HQ’s “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham” ou “O Cavaleiro das Trevas”. Porém, Phoenix, até por esta capacidade cênica muito sensível de síntese, consegue o feito de superar todos.
Mas fora o encanto que protagonista causa, tudo funciona em “Coringa”. A obra, mesmo que tenha na atuação justificadamente a sua maior força, é incrivelmente coesa, harmônica, forte e crítica. Um tapa na cara sem concessões ao modo de vida norte-americano e ao que a nação mais rica do mundo vende ao mundo como modelo de felicidade. Além disso, a fotografia suja e fantasmagórica, a trilha sonora econômica e muito bem escolhida, a direção de arte impecável e a edição, que faz questão de deixar subentendimentos em nome do foco da narrativa, são igualmente destaques.
Dentro da crítica aos modelos norte-americanos que o longa traz, a referência a dois filmes de Martin Scorsese – não à toa ambos estrelados por Robert De Niro, brilhante no papel do apresentador de tevê Murray Franklin – são sintomáticas. Primeiro, “Taxi Driver” (1976), quando Arthur, em seu mundo interno, aponta um revólver para a televisão e para os “inimigos imaginários” de sua sala. A condição de degradação mental a que o ex-combatente do Vietã vivido por De Niro e a de um rejeitado como Arthur são sujeitados expõe o quanto a política dos Estados Unidos é capaz de gerar indivíduos tão desassistidos e doentes. Igualmente, “Coringa” retraz, ao abordar o stend-up comedy e os programas de auditório em que as massas riem do que lhe é imposto como piada, o controvertido “O Rei da Comédia” (1983). Naquele, a piada sem/com graça é o sequestro do astro da televisão Jerry Langford (Jerry Lewis) pelo obsessivo e igualmente invisível Rupert Pupkin (De Niro) para que este apresentasse seu número no lugar do apresentador oficial. A reflexão que “Coringa” levanta, assim como o filme de Scorsese, é um questionamento do que é “felicidade” numa sociedade acrítica e controlada pela indústria do entretenimento como a atual.
“Coringa” não tem nada a ver com os filmes de super-heróis explosivos, frenéticos e plastificados como os que Hollywood vem fazendo às pencas. É um drama sobre uma pessoa inventada mas talvez tão mais real quanto um ser humano de carne e osso. Um drama sobre um triste arquétipo da doença e da violência as quais somos submetidos hoje. Um drama sobre alguém que bem que poderia existir. E será que não existe mesmo?
Coringa na escadaria: a definitiva descida para o seu inferno interior
"O Mistério de Candyman", de 1989 já ocupa seu lugar entre os clássicos do terror, mas "A Lenda de Candyman", de 2019, não veio pra brincadeira e quer desbancar o favorito.
É o caso de remake que não é exatamente uma refilmagem, estaria mais para uma sequência, um reboot, uma vez que tem ligação com os fatos já acontecidos, faz referência a personagens da trama original, mas cria de tal forma um novo conceito que o termo re-fazer torna-se totalmente mais adequado.
No original, de 1989, uma pesquisadora acadêmica, Helen, em busca de um bom assunto para sua tese universitária, investiga uma suposta lenda urbana de um homem negro, com um gancho no lugar de uma das mãos, que, segundo dizem, aparece sempre que invocado, cada vez que seu nome é repetido cinco vezes diante de um espelho. Ela mergulha na pesquisa e descobre que, há mais de um século atrás, o homem em questão, um negro filho de escravos, dotado de grande talento artístico, contratado para pintar um retrato da filha de um importante aristocrata, teria sido morto cruelmente por um poderoso aristocrata, depois de se apaixonar e engravidar a moça. O negro, conta a lenda, teria sido torturado, sua mão decepada e colocado um gancho em seu lugar, além de lambuzado em favos de mel, exposto a abelhas dentro de um antigo apiário, sendo picado até a morte e depois ainda, como se não bastasse jogado em uma fogueira. Ela visita um conjunto habitacional de baixo padrão na periferia de Chicago, o Cabrini-Green, construído no local onde há tempos atrás teria ocorrido a barbaridade com o artista, e onde moradores alegam ver a entidade, atribuindo a essa assombração a autoria de vários crimes ocorridos lá.
Ainda cética e incrédula quanto à lenda, ela invoca a entidade e a partir de então sua vida torna-se um inferno. Visões, apagões, pesadelos passam a fazer parte de seus dias, e assassinatos nos quais ela estivera presente nas cenas dos crimes, a tornam a principal suspeita das mortes, sendo que, sem memórias claras, nem ela mesmo tem certeza de não tê-los cometido.
É que Candyman, depois de invocado por Helen, passa a ter com ela uma estranha ligação e a exige em sacrifício em troca da vida de um bebê que sequestrara no Cabrini-Green. E, vingativo e ressentido, não pretende parar de matar até que Helen se entregue a ele e compense, de certa forma, a mulher por quem foi sacrificado.
"O Mistério de Candyman" - trailer
No novo, essa questão da injustiça social, do julgamento racial, de um negro pobre ser morto simplesmente por ser negro e pobre, ganha muito mais força e significação. Em "A Lenda de Candyman", todos aqueles fatos já teriam acontecido e agora ecoam como um boato, um mito distante, uma lenda, que quase ninguém leva a sério. No entanto, Anthony, um artista plástico em crise criativa, em busca de uma maior expressão em sua arte, que pretende recorrer às raízes do povo negro, suas mazelas, suas dores como inspiração para sua arte e nesta busca, numa conversa casual, esbarra na tal da lenda de Candyman. Descobre que o bairro onde vive localiza-se numa área hoje revitalizada mas que outrora abrigava um bairro de classe baixa tido como "barra pesada", onde um homem negro que costumava dar doces para as crianças, fora morto injustamente, linchado pela polícia. Resolve desenterrar a história e ver até onde aquilo tudo tem algum fundo de verdade. O próprio interesse dele na história, no personagem e sua verificação dos fatos e contestação dos acontecimentos desperta a força sobrenatural adormecida. Curioso, cada vez mais intrigado e envolvido com a história, meio que na brincadeira, ele resolve invocar a entidade, só que aquilo era tudo que Candyman precisava: um homem negro, angustiado, em busca de respostas, em busca de si mesmo... Quando esse negro se olha no espelho ele vê todos os negros injustiçados, subestimados, subvalorizados, pré-julgados, espancados, linchados, mortos, e todos esses negros estão simbolizados na figura de Candyman.
Inspirado pelo personagem que pesquisara e descobrira, Anthony cria uma instalação artística, uma espécie de espelho de banheiro, repleto de símbolos, imagens e recados em seu interior, que, exposta numa galeria causa alvoroço e incita alguns brancos desavisados, céticos, descrentes, ignorantes, a ousarem dizer seu nome na frente do espelho. "Candyman, Candyman, Candyman, Candyman, Candyman...". Branco, você não devia ter feito isso...
Se para um negro que o chama ele surge com essa força ancestral poderosa (assustadora, é verdade, difícil de incorporar com naturalidade), para um branco que o faz, por galhofa ou curiosidade, Candyman revela toda sua fúria justiceira deixando um rastro de sangue vingativo.
Aos poucos Candyman vai se apossando de Anthony. O que vemos é desagradável, não é bonito mas... é isso: nunca foi bonito. É a vez do artista encarnar toda a injustiça e a violência sofrida pelos negros ao longo dos tempos. Mas ele aceitará essa tarefa?
"A Lenda de Candyman" - trailer
Jogo duríssimo, hein...
Propostas de jogo parecidas mas com alternativas táticas diferentes.
Se o primeiro é um filme de serial-killer sobrenatural que toca em pontos sensíveis, como machismo, desigualdade social, violência policial, gentrificação e, sobretudo, racismo; o segundo coloca essas discussões no centro da trama e, ao contrário, faz do terror um acessório importante.
É o duelo dos técnicos! De um lado o britânico Bernard Rose que não brilhou muito em trabalhos posteriores mas que aqui mostra muita competência, e do outro a jovem treinadora Nia da Costa, cheia de novas ideias e já mostrando um ótimo trabalho em seu segundo longa. Mas com tramas tão bem desenvolvidas, mais do que um duelo de treinadores, a batalha dos Candyman revela-se uma guerra dos roteiristas. De um lado, nada menos que o mestre do terror Clive Barker, idealizador e roteirista do filme de 1989, e do outro um dos grandes nomes do gênero na atualidade, o excelente Jordan Peele. Como dá pra notar, comissões técnicas de peso.
E dentro de campo a coisa não é diferente. O antigo aposta nas individualidades com Virginia Madsen, do primeiro "Duna", numa ótima atuação, no papel da pesquisadora Helen, e o lendário Tony Todd, do remake de "Noite dos Mortos-Vivos", espetacular como o personagem que dá nome ao filme. O novo, sem nenhuma grande estrela, aposta no conjunto e como ponto a seu favor traz um um elenco predominantemente preto num filme sobre questões negras.
Partida equilibradíssima!!!
Quem leva?
Tony Todd é um Candyman muito melhor, mais assustador, mais impressionante com aquele rosto crivado de abelhas, do que o inexpressivo Michael Hargorve que é o Candyman que aparece na maior parte das vezes na nova versão. Embora sejam utilizados outros atores também no papel ao longo do filme em diferentes situações, Hargrove é quase aquele jogador que joga 'no nome'. Impressiona porque é O CANDYMAN, pois qualquer ator podia estar ali que faria o mesmo efeito, tanto que, grande parte das vezes, sequer vemos seu rosto com nitidez. Candyman 89 abre o placar.
Nia da Costa mostra-se mais diretora que Bernard Rose com um produto final mais bem acabado. Cor, iluminação, direção de arte, opções estéticas... tudo depõe a favor da norte-americana que conduz seu time com fluidez para o gol. Candyman 2019 empata o jogo. Jogada com o dedo da treinadora.
Mas o time de 1989 tinha uma arma secreta. A trilha sonora ficara a cargo de ninguém menos que o gênio Philip Glass. E ele não decepciona, entregando uma atmosfera tensa mas ainda assim extremamente elegante e sofisticada. É Candyman 89, novamente à frente no placar. 2x1.
Num time sem grandes estrelas, a diferença está na casamata. A treinadora Nia da Costa desequilibra de novo, com três momentos incríveis: o flashback recontando a origem do Candyman e os acontecimentos em Cabrini-Green, contado com muita sensibilidade estética num teatro de sombras; a morte da crítica de arte, Rebecca, sendo erguida e arrastada por uma força invisível, no interior de seu apartamento, filmada numa tomada afastada, quase como um vizinho observando; e a evocação final de Brianna, a namorada de Anthony, dentro da viatura entendendo o verdadeiro significado do Candyman. Cena fantástica, linda mas brutal, violenta mas emocionante. Golaço! Candyman 2019 deixa tudo igual novamente, 2x2.
Michael Brown, Jesse Washington, Sarah Bland, Geroge Floyd... Todos eles são Candyman. Diga o nome deles.
Difícil dar a vitória para algum dos dois aqui mas... a denúncia social, o recado anti-racista, a incisividade do discurso, a reinvenção de um clássico, dão a vitória para "A Lenda de Candyman".
A evocação de Candyman na frente do espelho é um convite a que cada negro olhe seu reflexo e entenda que a imagem que vê guarda consigo cada um dos outros tantos que foram escravizados, espancados, pendurados em árvores, injustiçados, vistos com desconfiança só por serem negros, presos só por serem negros, mortos por serem negros. Quando Nia da Costa propõe que seus personagens falem o nome de Candyman, remete ao "Say Her Name", movimento que defende mulheres vítimas de agressão policial. Uma provocação inteligente colocada de forma brilhante. Chamar o Candyman é um desafio para que evoquemos nomes como Jesse Washington, Michael Brown, George Floyd e outros tantos. Você, irmão, negro, não esqueça dos nomes deles e delas. Você, branco, você tem coragem de dizer o nome deles? É golaço! Sabe de quem? Candyman é o nome da emoção!
Vitória da Lenda de Candyman. Mas não foi fácil. Dois times de respeito num jogo, daqueles, para não esquecer.
No alto, à esquerda, Helen, e à direita, Anthony, ambos em busca de respostas sobre Candyman. Abaixo, os dois Candyman, à esquerda, o da primeira versão e, à direita, o (ou um dos) da refilmagem.
Parafraseando a letra daquela música que a galera canta no estádio:
Acima, a capa original
seguida da capa da reedição.
“O essencial é invisível aos olhos
e só pode ser percebido
com o coração.”
Antoine de Saint-Exupéry
O ano de 1967 carrega uma aura mítica para a música moderna, pois marcou incisivamente a vida e a obra de artistas importantes e, consequentemente, da música em geral. Na Inglaterra, os Beatles mandam às favas o Iê-Iê-Iê e ousam dar um passo adiante com o lançamento de "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", mudando para sempre a rota da música pop. Com semelhante peso, mas nos Estados Unidos, o The Velvet Underground, sob a batuta de Andy Warhol, surpreenderia o mundo com um LP de estreia onde casam rock, poesia, psicodelia, contracultura e vanguarda. Aqui no Brasil, também ventos de revolução: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes e cia. lançam “Tropicália”, disco-manifesto do movimento tropicalista, que influenciaria todas as gerações seguintes de “emepebistas” e roqueiros brazucas e estrangeiros. Isso para ficar em apenas três exemplos.
Porém, 1967 também selaria a carreira de outro artista, experiente e já consolidado desde os anos 50: o maestro e compositor Antonio Carlos Jobim. Depois da exitosa estreia solo no mercado fonográfico norte-americano quatro anos antes, Tom havia antes disso ajudado a difundir para o mundo a já consagrada bossa nova. Para completar, ainda realiza, no início daquele mesmo ano, um feito jamais alcançado por um músico latino até então: gravar com o maior cantor popular de todos os tempos, Frank Sinatra. O disco “Francis Albert Sinatra and Antonio Carlos Jobim”, um sucesso de vendas, é tão definitivo que decreta, aliado ao desencanto de uma Rio de Janeiro que passou de paradisíaca a ditatorial com o Golpe de 64, além da força dos festivais, popularescos demais para a sofisticação da bossa nova, o fim da chamada primeira fase deste estilo. Então, para que caminho ir agora? Render-se ao poderio yankee e seguir produzindo uma música “made in USA” ou voltar para um Brasil linha-dura e atrasado tecnicamente simplesmente para não fugir às raízes?
O que para alguém menos preparado seria uma encruzilhada, para o “maestro soberano” foi resolvido de forma leve como uma onda que quebra mansa na praia. Ao invés de criar um paradoxo, Tom criou “Wave”, álbum gravado em apenas três dias do mês de julho daquele fatídico 1967 no célebre estúdio Rudy Van Gelder, em Nova York (uma antiga igreja adaptada cuja elogiada acústica presenciou sessões memoráveis do jazz, como "Night Dreamer" de Wayne Shorter e “Maiden Voyage”, de Herbie Hancock). Nele, se vê um artista inteiro e num momento de alta criatividade. Valendo-se de toda a técnica disponível somente naquele país até então, além de contar participações mais do que especiais – como a do mestre Ron Carter deixando sua assinatura faixa por faixa com seu baixo acústico, ou da fineza do spalla da Orquestra Filarmômica de Nova York, Bernard Eichen –, Tom apura ainda mais a sofisticação harmônica e melódica da bossa nova, seja nas composições inéditas ou nos novos arranjos para as antigas.
A começar pela faixa-título, que já nasce clássica. “Wave”, uma das mais conhecidas e celebradas canções brasileiras, abre o disco em seu primeiro e primoroso registro, dois anos antes de receber do próprio Tom a linda letra que a identificaria – e a qual, mesmo ouvindo somente os sons, é impossível não cantarolar ao escutá-la: “Vou te contar/ Os olhos já não podem ver/ Coisas que só o coração pode entender/ Fundamental é mesmo o amor/ É impossível ser feliz sozinho...”. Instrumental como praticamente todo o disco, mostra a beleza e o refinamento da orquestração do maestro alemão Claus Ogerman (que assina os arranjos), em sua terceira parceria com o colega brasileiro.
Elegante, o disco resgata o legado da bossa nova, porém, sempre lhe trazendo algo a mais. Em “The Red Blouse” e “Mojave” (minha preferida), principalmente, nota-se a força da influência do primordial violão sincopado e dissonante de João Gilberto, tocado pelo próprio Tom – que ainda opera piano e cravo no disco. Vinicius, o outro protagonista da bossa nova, também se faz presente indiretamente na letra da única cantada do álbum: “Lamento”. Nova versão para “Lamento no Morro”, interpretada por Roberto Paiva na trilha da peça “Orfeu da Conceição”, que Tom compusera com Vinícius em 1956 –, é mais uma vez resultado do avanço proposto por Tom. Mesmo meses depois de gravar com a maior referência em voz da época, ele não se intimidou e pôs-se a fazer algo que não lhe era tão comum até então: cantar. Insatisfeito com sua primeira experiência vocal, no LP anterior, “The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim” (1965), o maestro, ora veja!, voltou a estudar canto e respiração. O empenho resultou numa peça majestosa, que virou um marco da segunda fase da bossa nova. O lindo solo de trompete é um exemplo disso, uma vez que, pincelando-a com uma elegância toda jazzística, renova uma canção arranjada, em virtude do tema da peça original, como um samba de morro.
Há ainda “Dialogo”, um belo samba-canção em que o trompete e a trompa dizem notas sofridas um para o outro; “Look at the Sly” (regravação para “Olhe o Céu”), de perfeita harmonização entre orquestra e instrumentos solo; “Triste”, que, assim como a faixa-título, estreia aqui e viraria um clássico posteriormente – ainda mais na gravação de Elis Regina com o próprio compositor, sete anos depois; e “Batidinha”, um samba com os ares da Copacabana dos anos 50 fortes o suficiente para soprarem e serem sentidos na cosmopolita Big Apple. O disco termina alegre com a colorida “Captain Bacardi”, onde Tom aproxima Brasil, Cuba e Estados Unidos com leveza e sabedoria.
“Wave” é, por várias razões, um trabalho de homenagem à bossa nova mas, acima de tudo, um passo adiante na trajetória de seu autor e da música brasileira. Um disco que soube manter nova a bossa. Se Tom Jobim ainda sofria com a crítica dos detratores por fazer um samba sem personalidade e para estrangeiro ver, “Wave” se impõe com seu altíssimo refinamento e apuro, forjando uma obra tão homogênea que é impossível classifica-lo só como bossa nova, samba, jazz ou (termo que seria inventado tempo depois) world music. É, simplesmente, música, música sem fronteiras, daquelas que não perdem a validade e que poderia, se Tom estivesse vivo, ter sido gravada ontem sem se sentir a diferença de épocas. Ao mesmo tempo universal e fincada em suas raízes. Algo que só mesmo quem carrega “brasileiro” no nome poderia realizar, fosse no Brasil ou em qualquer parte do mundo.
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Os versos iniciais de “Wave”, contou Tom Jobim certa vez, surgiram de duas fontes: a primeira frase é de autoria de ninguém menos que Chico Buarque, a quem Tom entregara a música para que o amigo inventasse a letra. Porém, bloqueado, Chico não consegui passar do verso: “Vou te contar”. Cansado de esperar pelo parceiro, sobrou, então, o restante ao próprio Tom escrever, o qual se inspirou num texto do escritor infanto-juvenil francês Antoine de Saint-Exupéry extraído do clássico “O Pequeno Príncipe”, obra a qual Tom havia musicado em 1957 para a interpretação do ator e diretor teatral Paulo Autran.
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todas de Tom Jobim, exceto indicada
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