Quem é amante de música como eu vai entender essa história, mas quem
é fã da banda inglesa The Cure vai, mais do que isso, se identificar. Embora
tenha ocorrido há uns bons anos, a sensação daquele acontecimento ainda me é
bastante presente. Os “bons anos” a que me refiro significam 23 deles atrás, em
1990. O local: a emblemática loja Mesbla da Voluntários da Pátria, Centro de
Porto Alegre.
Era um início de noite de um dia útil qualquer, terça, quarta,
qualquer coisa assim. Hora do pico: pessoas pegando condução, umas correndo
para os compromissos noturnos, outras voltando para casa, comércio fechando,
meretrício abrindo, ambulantes aproveitando o movimento para vender, frotas de coletivos
lotando as ruas, muito zunzunzum. Minha mãe, que trabalhava na Senhor dos
Passos, combinou comigo de nos encontrarmos ao final de seu expediente, por
umas 18h30. Ela precisava comprar algo ou simplesmente pesquisar preços, não
lembro ao certo. Lembro, sim, de pegá-la em seu trabalho e rumarmos em direção da
Mesbla, por ficar ali perto e por ser um dos poucos estabelecimentos que se
mantinham abertos até mais tarde do que o horário normal do comércio.
A Mesbla, para os que não conhecem, era uma loja de departamentos
(tal qual uma Magazine Luiza ou Colombo da vida) de origem francesa cuja
falência, decretada em 1999, diz-se, se deu por má administração. Porém, naquela
época, princípio dos anos 90, a Mesbla ainda reinava, embora, por debaixo dos
panos, já se prenunciava a derrocada, o que só veio a público anos depois,
quando tentaram em vão salvar o negócio e as lojas foram fechando aos poucos
até definhar. Havia outra loja Mesbla na esquina da Otávio Rocha com Dr. Flores
(onde funciona hoje uma Manlec). No entanto, a da Voluntários era “A” Mesbla.
Majestosa. Moderna. Convidativa. Numa época em que outras boas lojas de
departamento já guerreavam entre si com ofertas e preços, as também extintas
Grazziotin, Hipo-Incosul, JH Santos e Arapuã (que se situavam se não na mesma
rua, no entorno), nenhuma batia a Mesbla. Lá era o shopping de uma Porto Alegre
que, naquele então, tinha apenas o Iguatemi como grande centro comercial.
Parte desta importância se devia, certamente, à arquitetura do
Edifício Mesbla. Projetado pelo arquiteto Arnaldo Gladosch, em 1944, o prédio, marco
da arquitetura comercial da cidade, se já era vistoso por fora, com sua fachada
acompanhando a curvatura da rua e cuja superfície explorava a textura dos
tijolos em tom terroso-escuro, por dentro, então!... No seu interior, os três
primeiros pisos eram integrados através de mezaninos em forma de anéis,
enquanto os demais, destinados a escritórios, desenvolviam-se perifericamente,
liberando uma área central que possibilitava uma iluminação vinda do cume em todos os pisos de loja. Isso sem
falar na visibilidade do seu todo, apreciável de qualquer ponto em que se
estivesse.
Depois que aquela Mesbla fechou as portas, antes mesmo de a empresa anunciar
a falência, duas situações vividas por mim envolvendo o prédio – hoje pertencente ao Centro
Cultural do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia e onde se
pretende, em breve, instalar a nova sede do Museu de Arte Contemporânea do Rio
Grande do Sul – me geraram sentimentos opostos. Uma delas, em 1997,
de puro deleite, quando pude visitar a 1ª Bienal do Mercosul, evento o qual,
inteligentemente, se valeu da beleza e da disposição espacial do prédio para
integrar lindamente o desenho de sua arquitetura a quadros, esculturas e
instalações da nata da arte moderna brasileira. A outra circunstância, no entanto,
nada tem de encantadora, pois foi quando, a trabalho, em 2009, fui à TV Ulbra à
época em que as emissoras da universidade, então dona do imóvel, se transferiram
da cidade de Canoas para lá. Encontrei tudo “remendado”: divisórias, paredes
móveis e estúdios montados no hall que, numa lógica funcional e burra,
descaracterizaram totalmente o local, dando-me, logo ao entrar, a nítida sensação
de que não estava no mesmo lugar. Nada daquele visual clean e do espaço amplo, que
fazia destacar com clareza os produtos e as pessoas que circulavam. Não localizei
nem a grande escada em alas simétricas ao fundo da área central, nos moldes dos
primeiros magazines de departamentos do século XIX, que facilitavam a
progressão vertical do público no interior da loja.
Naquele início de noite com minha mãe, no entanto, não subi as
escadas da Mesbla. Enquanto ela comprava-pesquisava suas bugigangas noutros
andares, eu permaneci no térreo, pois ali ficava o que me interessava: os discos.
O setor de Música e Vídeo era ao fundo e à esquerda do salão principal, com
seus módulos para LP’s separados por categorias (Cantor Nacional, Banda
Nacional, Gauchesco, por exemplo) mais os mostruários de fitas K7 e as de VHS,
que não recordo como ficavam expostas. Ao chegar, o vendedor do departamento,
um rapaz de uns 30 anos de quem não lembro o nome (perdoem-me, mas quem me
conhece sabe que tenho dificuldade de gravar nomes, ainda mais quando de um
acontecimento de tanto tempo atrás), cumprimentou-me como pede a conduta de um
bom atendimento varejista. Porém, percebi que ele ficou observando (com motivo
de sobra) aquele pré-adolescente de 12 anos vestido de blusa preta, calças
jeans rasgadas num dos joelhos, tênis tipo basquete sujos, cabelo pixaim com
corte quase moicano, óculos de grau com armação redonda e de cor azul
fluorescente e, para arrematar, pendurado no pescoço por uma corrente metálica,
um crucifixo de ferro fundido de uns 14 cm de altura, que tomava a extensão do
tórax, comprado não numa loja de artigos de rock, mas num antiquário da rua
Fernando Machado. Sim: eu me vestia desse jeito, algo entre o punk, o dark e eu
mesmo. E pior: minha mãe, mais por coragem do que por amor, mesmo que fizesse
algum comentário a respeito de um exagero ou outro, andava com seu filho numa
boa pelo Centro ou onde fosse. Inclusive em lojas de departamentos.
Como não tinha por hábito comprar filmes para assistir no
videocassete, pois me eram caros (alugava-os como solução), meu interesse ali
era voltado especialmente para os discos de vinil. Diletante já naquela época,
colecionava junto com meu irmão o que me era possível com a mesada, mas a
maioria dos discos, inevitavelmente, eram apenas objetos de desejo que eu não
cansava de admirar nas prateleiras das lojas. Repetia este ritual de
contemplação mais uma vez ali na Mesbla, dedilhando volume após volume para,
ávido por conhecer mais, descobrir novos títulos, ver os já conhecidos e
aqueles que almejava ter ou rever os que já figuravam na discoteca de casa.
Passando pela letra C da fileira de Bandas Internacionais, deparei-me com os
LP’s de um dos meus grupos preferidos desde aqueles idos: o The Cure. Tinham
posto para venda os mais populares em vendagem e conhecimento do cliente
mediano, afinal, tratava-se de uma loja de departamentos que, vendedora de produtos
muito mais caros e rendosos, não se preocupava em ser especialista justamente
em discos. Disco era coisa para aficionados como eu. E o vendedor.
Havia ali dois ou três do Cure, provavelmente “The Head on the
Door”, álbum de carreira repleto de hits da banda, de 1985, e “Standing on a
Beach”, de um ano depois, a coletânea com os maiores sucessos de Robert Smith e
Cia. até então, um campeão de vendagens. O terceiro, no entanto, não podia ser
classificado exatamente um estrondo de vendas. Não era o exótico “The Top” nem
o deprê “Pornography”, mas, sim, o único LP oficial ao vivo da banda até aquele
momento, de 1984: o “Concert”. Embora fosse dos que já tivesse em casa, puxei-o
da pilha com surpresa e emoção e fiquei a admirar a capa. Foi quando ouvi uma
voz atrás de mim perguntar-me com empolgação:
- Tu gosta de The Cure?!
Virei-me e constatei que quem me perguntava era o vendedor da loja.
Respondi que sim com um sorriso tanto de surpresa quanto de identificação.
Comentei que meus preferidos (na época era) do Cure eram o “Pornography” e o
“Faith”, os bem gothic-punk, mas que gostava muito, no “Concert”, entre outras
coisas, da sonoridade da bateria do Andy Anderson, um negrão que assumira as
baquetas do grupo naquela época e que tocava forte como um bate-estacas. Foi
visível que o tal moço da loja também se identificou comigo, tendo ficando,
inclusive, positivamente espantado por aquele pirralho conhecer e gostar do
mesmo que ele, de uma geração mais velha – situação que vira e mexe me ocorria
quando era mais guri. Ele ainda disse:
- Eu fui no show deles no Gigantinho. Foi demais. – contou-me com
emoção. – Cara, me dá esse disco aqui que eu vou colocar pra rodar.
Sim: ele interrompeu uma Paula Abdul ou George Michael qualquer que tocava
sonolentamente na vitrola e substituiu por The Cure. Pelo “Concert”. O som dos
alto-falantes, espalhados por toda a loja, saía, tirando as interrupções para
os anúncios em voz dos vendedores ao microfone, somente dali. Ou seja: toda a
Mesbla estava prestes a escutar The Cure. Ele pôs na primeira faixa. Chiados da agulha no sulco e entra um sobe-som da plateia ovacionando a
banda que, percebe-se, entrava no palco naquele instante para abrir o
“concerto”. Robert Smith dá boa noite e anuncia a canção de
abertura. Andy Anderson faz um longo rolo na bateria conjugando tom-tom e
surdo, abrindo caminho para que toda a banda entrasse explodindo naquele clima
soturno e denso, de guitarras distorcidas, teclados espaciais e bateria
possante. Era “Shake Dog Shake",
para delírio do público, meu e do vendedor.
Escutamos a música inteira entre uma conversa e outra sobre partes da
mesma que achávamos legal e sobre nossa paixão pelo Cure. Tudo num volume
ambiente, afinal, o som ia para toda a loja. Não que Cure não pudesse tocar na
Mesbla, mas o “Concert”, cheio de músicas da fase dark da banda, carregado em
sonoridades ruidosas e perturbadoras, além do fato de ser ao vivo, o que adensa
as vibrações irregulares por causa do rumor da plateia, não era exatamente o
mais aconselhável para uma situação como aquela. Por isso, respeitávamos os
ouvidos das senhoras que, como minha mãe, estavam lá para comprar uma colcha,
roupa de banho, artigos para casa, etc. Mas nossa vontade era de arrebentar as
caixas de som! Durante a conversa, concordamos que a melhor performance da
bateria era a de “A Forest”. Sem dúvida. Afinal, aquela marcação de ritmo da
música original pedia mesmo uma batida forte. Empolgado, ele virou o lado e foi
direto nesta faixa. Largou a agulha ainda no fervor da multidão, que vibrava
com o final de “A Hundred Years”, a anterior. Foi a partir dali que a luminosa
e moderna loja Mesbla se transformou...
A clássica abertura de teclados, num tom grave e ritualístico,
mórbido como que vindo de dentro de uma caverna, e as espaçadas frases da
guitarra prenunciando o riff, levam a galera ao êxtase. E nós também. Começava
um dos épicos do Cure. Já alheio a qualquer outra coisa que estivesse por
perto, inclusive o seu gerente ou outros clientes, o vendedor aumentou o
volume. Naquele mesmo momento, a sensação foi de que anoitecera dentro da
Mesbla e de que entrávamos definitivamente para dentro de uma selva fechada e
escura. Parecia que ninguém mais existia em nossa volta. Só nós, a música e uma
floresta.
A introdução de “A Forest”, de pouco mais de 1 minuto, parece ter
durado uma hora. Nós, diante daquele som, não falávamos, talvez com receio
de alertar os bichos à espreita. Até que, finda a abertura, entra, enfim, a tal
batida, marcada em dois tempos, pesada, esmurrando as caixas da bateria e até
mais acelerada que na versão original. Arrasador! Meu companheiro silvícola não
se conteve e aumentou ainda mais o volume. Para o máximo! Os acordes de “A
Forest” retumbavam pelos corredores, fazendo vibrar as mesas, os
eletrodomésticos, as vidraças e as louças do setor de Bazar.
Robert Smith dizia: “The sound is deep/ In the dark/ I hear her
voice/ And start to run/ Into the
trees/ Into the trees...” (“O som é profundo/ Na
escuridão/ Eu ouço a voz dela/ E começo a correr/ Para dentro das árvores/ Para
dentro das árvores...”). E corríamos, ali,
parados. Sentíamos o som reverberar por todo o espaço, tomando totalmente os 15
metros de altura que iam do chão ao teto (ou seria a copa?).
Absorvidos por aquela atmosfera selvagem, os versos: “Again and again and again...” nos fazia
investir mais ainda mata adentro. E de novo, e de novo, e de novo. Será que
saberíamos voltar agora? “I’m lost in a Forest”? We lost in a Forest? O maravilhoso
solo de guitarra, cheio de efeito de pedal, já avançava e levava a canção para
o final, em que os instrumentos pouco a pouco vão morrendo, perdendo-se no
escuro da noite silvestre. Anderson dá o último soco da bateria; ficam apenas
as guitarras e os teclados, que logo se retira, para, por fim, manterem-se as cordas,
que saem de cena uma a uma. Cessam as guitarras e fica apenas o baixo, que suspira
espaçadamente os últimos pares de acordes: “tan
dan - tan dan - tan dan...”, até sua propagação esvaecer de vez no espaço.
Bastou a música terminar para tudo voltar a ser como era antes.
Claridade, senhoras comprando ou pesquisando preços, crianças correndo e
berrando, vendedores vendendo. Uma loja de departamentos. Entretanto, entreolhamo-nos
com a sensação de que algo diferente ainda pairava no ar, mas que não tínhamos
mais como saber ao certo o que era. Retomados, trocamos ainda algumas animadas
palavras de “cureanos” até que minha mãe retornou para irmos embora. Despedi-me
do parceiro de viagem calorosamente, afinal, só nós sabíamos a experiência que
tínhamos vivido naqueles 6 minutos e 46 segundos minutos entre o primeiro e o
último acorde de “A Forest” que pareceram durar uma madrugada inteira.
Indo em direção à porta de saída, minha mãe ainda observou
impressionada:
- Tu faz amizade rápido, hein, Dã?!
- ... É-é... – respondi meio bobo, ainda sem muita noção do que se
sucedera ali naquele magazine entre tantos objetos supérfluos e desnecessários,
entre tantas pessoas que eu não conhecia e jamais conhecerei.
O segurança abriu-nos a porta da entrada e, ao sairmos para a rua,
educadamente deu-nos “boa noite” antes de fechá-la novamente como quem passa o
cadeado numa jaula. Antes de a passagem ser totalmente fechada, porém, juro ter
escutado, vindo lá de dentro da loja, o uivo de um lobo, o que,
lamentavelmente, logo se perdeu no ruído metálico da frenagem desvairada dos
ônibus que cumpriam, com suas toneladas de realidade, a correria irracional da
vida, deixando-me com a dúvida, até hoje, se realmente escutei aquilo.