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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Aimee Mann – “Magnolia – Music from the Motion Picture” (1999)



Acima, a capa original, de 1999,
e, abaixo, com os sapos,
da reedição de 2018.

“Aimee Mann é uma cantora e compositora maravilhosa. Provavelmente devo a ela uma tonelada de dinheiro pela inspiração que ela teve neste filme.” 
Paul Thomas Anderson

Esta resenha bem que podia ser sobre o filme. De certa forma é, haja vista que é impossível dissociar, neste caso, filme e trilha. Embora comum a associação entre imagem e música no cinema, nem sempre um resultado tão afinado como este acontece. Tem, claro, as trilhas clássicas, aquelas que basta ouvir meio acorde para lembrar do filme, caso do que John Williams fez com “Tubarão” e a saga “Star Wars” ou Nino Rota para com a trilogia “Chefão”. Igualmente, “Koyaanisqatsi”, dirigido por Godfrey Reggio e musicado por Philip Glass, é assim, mas num nível diferente, haja vista que, para tal, a criação da imagem depende da música para tomar forma e vice-versa. Com “Magnolia”, cuja trilha é escrita pela cantora e compositora norte-americana Aimee Mann, entretanto, essa relação é diferente. A ligação da canção com as imagens do filme se dá num estágio mais sensível de entendimento, tornando-se, por esta via, parte essencial da obra de uma maneira bastante subjetiva e profunda.

Assisti “Magnolia” no ano de lançamento, 1999, cujos 20 anos decorridos só o engrandeceram. O então jovem diretor Paul Thomas Anderson, grande revelação do cinema alternativo dos Estados Unidos dos anos 90 junto com Quentin Tarantino, vinha do ótimo “Jogada de Risco” e da obra-prima “Boogie Nights”. O aguardado “Magnolia”, cujas notícias a respeito davam conta de que trazia um elenco estelar, como Tom Cruise numa atuação elogiadíssima, Juliane Moore, idem, Philip Seymour Hoffman afirmando-se como um dos maiores de sua geração, entre outros destaques, carregava a expectativa de que o cineasta se superasse. E foi o que aconteceu. A trama coral ao estilo Robert Altman, que amarra como sensibilidade a vida de vários personagens, nos deixava boquiabertos e cientes de que estávamos presenciando um novo marco do cinema.

Mas o que aumentava ainda mais essa sensação era a trilha sonora de Aimee, a qual concorreu ao Oscar daquele ano na categoria Canção Original. Responsável por pontuar toda a narrativa, a música composta por ela cumpre o papel de atar a história, contando-a através de sons e poesia. Mas isso não é tudo, visto que a música é tão presente e embrenhada com a história que acaba sendo mais um personagem. São nove preciosidades de um pop cristalino entre o folk e o indie que, além de cumprir a função de banda sonora, funciona perfeitamente como um disco independente do filme que o inspirou. Dá para ouvir “Magnolia” e se deliciar tão somente com a qualidade musical que contém. Contribui para isso também o fato de todas as músicas terem cada uma sua melodia e universo, sem valer-se da comum prática de trilhas sonoras de se desenvolverem variações sobre um ou dois temas musicais centrais para várias faixas.

Mesmo que a audição do disco possa ser aproveitada a qualquer momento, é impossível a apaixonados pelo filme como eu dissociar sua música da memória imagética, pois a trilha faz se transportar para as cenas a cada faixa. Exemplo disso é o tema de abertura tanto do disco quanto do filme: a precisamente intitulada “One”. A quem, como eu, não vem à mente a imagem da flor se abrindo em alta velocidade e os letterings do título aparecendo na tela com a voz de Aimee cantando: “One is the loneliest number/ that you'll ever do/ Two can be as bad as one/ it's the loneliest number/ since the number one”? (“Um é o mais solitário número/ Que você irá encontrar/ Dois pode ser pior que um/ É um número solitário/ depois do número um”).

Após o arrebatador começo, Aimee não dá trégua, emendando uma canção tocante atrás da outra. “Momentum” inicia desconcertada e dissonante para, em seguida, tomar a forma de um country-rock embalado e com um refrão comovente em que a voz de Aimee expressa docilidade mas, igualmente, a força do feminino – elemento narrativo que o filme traz de forma central em vários níveis e aspectos. “Build That Wall”, um pop delicado sobre a sofrida e viciada personagem Claudia (Melora Walters), traz um belo arranjo com flautas Piccolo e a capacidade da compositora de criar melodias e refrões tocantes (“How could anyone ever fight it/ Who could ever expect to fight it when she/ Builds that wall”: “Como alguém pode combatê-la/ Quem poderia esperar para combatê-la quando ela/ Constrói esta parede”).

Outra das mais emocionantes, “Deathly”, sobre suicídio, abre com a voz de Aimee rasgando em uma balada sofrida e realista: “Agora que te encontrei /Você se incomodaria/ Se não nos víssemos mais?/ Pois eu não posso me permitir/ Subir sobre você/ Ninguém tem tamanho ego a gastar“. A letra fala também da dificuldade emocional da personagem Claudia (um reflexo de vários outros personagens, como o arrogante Frank, de Cruise, e o abusador astro da TV Jimmy Gator, vivido por Phillip Baker Hall) de aceitar o amor do oficial Jim (John C. Reilly), que pelas coincidências da vida, encontrou-a e se apaixona: “Nem comece/ Pois eu já tenho problemas demais/ Não me importune/ Quando um simples ato de bondade pode ser/ Mortal/ Definitivamente”.

“Driving Sideways”, linda, repete a fineza comovida das composições, Já a instrumental “Nothing Is Good Enough” dá uma ligeira trégua para, na sequência, mandar outra bomba sentimental: “You Do”, em que novamente Aimee solta a voz com tamanho trato e verdade que é impossível ficar alheio ao ouvir. A também bela “Nothing Is Good Enough” toca num ponto basal do longa, que são as relações familiares: “Era uma vez/ Esta é a maneira como tudo começa/ Mas eu serei breve/ O que começou com tal excitação/ Agora eu felizmente termino com alívio/ No que agora se tornou um motivo familiar”.

Se a carga emotiva já era grande, Aimee, acompanhando o desenrolar do filme, também a intensifica mais para o final. “Wise Up”, tema que marca a sequência logo após a célebre cena da chuva de sapos sobre Los Angeles, revela uma série de tomadas de consciência dos personagens, todos com suas aflições, dificuldades, culpas e medos. O contexto de vícios, desentendimentos, suicídio, incesto, fugas emocionais e rancores, que os personagens trazem cada um a seu grau, ganha a redenção depois daquele fenômeno surreal, o que lhes oportuniza um momento de autoesclarecimento e arrependimentos. Isso, por sua vez, é brilhantemente desenhado pelos acordes de “Wise Up”, que inicia com um leve toque de piano simulando o som da batida de um coração. Figura nada mais adequada. Quando a voz de Aimee surge, é como se aquela vida ainda existisse. Ainda há esperança! Aimee, aliás, mais uma vez, esbanja sensibilidade na melodia e no canto. E o refrão, inesquecível, diz: ”It's not going to stop/ It's not going to stop/ Till you wise up” (“Isso não vai parar/ Isso não vai parar/ Até você se tocar”).

Um desavisado que estivesse escutando apenas o disco poderia achar “Wise...” um final falso. No entanto, quem conhece o filme sabe que, além desta, ainda vem outra para desmanchar em lágrimas de vez qualquer um: “Save Me”. Literalmente, a “salvação” final. Como se a redenção divina expressa naquela sequência de acontecimento recaísse sobre os homens. Misto de country e balada pop, num de seus trechos, diz assim: “Você me pareceu tão banal como radium/ Como Peter Pan ou como o Super-Homem/ Você aparecerá para me salvar/ Venha e me salve/ Se você puder, salve-me/ Deste bando de loucos/ Que suspeitam que nunca irão amar ninguém”. A música, além de marcar a cena de encerramento do filme, representa, na figura da personagem Claudia, a tentativa humana de superar suas dificuldades e dar espaço para o amor. É o arrebatamento final que Aimee dá ao genial filme de P.T. Anderson.

Duas músicas da Supertramp, uma de Gabrielle e um tema orquestrado por Jon Brion ainda desfecham o álbum, mas é evidente que a trilha de “Magnolia” é, de fato, a parte de Aimee Mann. Num momento muito inspirado da carreira, ela consegue imprimir personalidade ao filme através da música e, ao mesmo tempo, compor um disco de igual personalidade quando ouvido separadamente da obra cinematográfica. As músicas dela, através de uma sintonia muito profunda com o filme, se adéquam às cenas muito menos por sua representação narrativa do que por uma afinação que apenas o sentimento imagem/som proporciona. Talvez seja isso que distinga “Magnolia” de outros soundtracks, mesmo os mais clássicos: a música faz remeter ao sentimento que o filme traz, e não à obra a qual está ligada. Pode parecer um detalhe, mas faz toda a diferença. A música de "Magnolia" é como mais um personagem, mas onipresente, imbricado dentro de todos eles: homens e mulheres como nós.

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Lançado em 2018, a versão intitulada "Magnolia - Original Motion Picture Soundtrack" traz, além de um disco com as músicas de Aimee Mann, outros dois com o Original Score composto pelo maestro Jon Brion.


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FAIXAS:
1. “One” (Harry Nilsson) - 02:53
2. “Momentum” - 03:27
3.  “Build That Wall” (Jon Brion/Aimee Mann) - 04:25
4. “Deathly” - 05:28
5. “Driving Sideways” (Michael Lockwood/Aimee Mann) - 03:47
6. “You Do” - 03:41
7. “Nothing Is Good Enough” - 03:10
8. “Wise Up” - 03:31
9. “Save Me” (04:35)
10. “Goodbye Stranger” – Supertramp (Rick Davies/Roger Hodgson) - 05:50
11. “Logical Song” – Supertramp (Davies/Hodgson) - 04:07
12. “Dreams” - Gabrielle (James Bobchak/Tim Laws) - 03:43
13. “Magnolia” - Jon Brion (Brion/ Mann) - 02:12
Todas as composições de autoria de Aimee Mann, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

domingo, 27 de março de 2022

"Licorice Pizza", de Paul Thomas Anderson (2021)


“Licorice Pizza”
não irá ganhar o Oscar se Melhor Filme em 2022. Isso é certo. O mais cotado é, de fato, “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, mesmo que “O Beco.do Pesadelo”, do já ganhador desta estatueta Guillermo Del Toro, em 2018, com “A Forma da Água”, pareça o mais talhado entre os 10 títulos concorrentes – e embora “Amor Sublime Amor” e “O Ritmo do Coração” corram por fora. O filme de Paul Thomas Anderson, portanto, não figura entre os favoritos. Aliás – e isso não é um demérito – o cineasta norte-americano talvez nunca venha a obter este êxito, visto que o seu cinema, definitivamente, não confere em conceito com a badalada premiação da indústria cinematográfica, e o seu novo longa é mais uma prova disso.

Mas não se enganem: “Licorice...” é, por mais que pareça uma contradição, quiçá o melhor entre os candidatos nesta categoria junto com “Drive my Car” (outro que também não deve levar o Oscar de Melhor Filme, uma vez que, ao que tudo indica, o de Melhor Filme Internacional esteja lhe esperando). O filme de Anderson (cujo estranho título faz uma referência a uma loja de discos que realmente existiu, mas que não aparece em nenhum momento), conta a história de Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman), dois jovens que, embora a diferença de 10 anos dela para ele, vivem a adolescência no Vale de San Fernando, no Sul da Califórnia do início dos anos 70, engendrando vários negócios juntos e flertando um com outro, mas também se desencontrando.

Comédia romântica com ares de nouvelle vague e realismo poético, “Licorice...”, que também é escrito por PT Anderson, diferencia-se, por isso, muito do que a Academia costuma prestigiar. Desde seu primeiro longa, “Jogada de Risco", de 1996, passando pelo genial “Boogie Nights” (1997) e pelo retumbante “Magnolia”, Melhor Filme em 1999 (só que em Berlim...), fica claro que o estilo de seu "cinema de autor" carrega singularidades que lhe aproximam bastantemente da escola europeia. Neste sentido, ele é muito mais peculiar do que seus contemporâneos Tarantino, Rodriguez e Nolan, todos também autorais mas com um pé muito mais firme em Hollywood do que ele. Com o forte “Sangue Negro”, de 2007 – para muitos, sua melhor realização –, pode-se dizer que Anderson tenha se esforçado para arrebatar o prêmio máximo do cinema, mas sua mão “pesada” o fez dar tons muito mais trágicos à história que os jurados da Academia estão acostumados. 

trailer de "Licorice Pizza"de Paul Thomas Anderson


A última tentativa de Anderson de levar esse bendito Oscar de Melhor Filme parece ter sido há quatro anos com “Trama Fantasma”, seu até então último longa e no qual repete a parceria com o excelente ator irlandês Daniel Day-Lewis. Porém, mesmo recebendo seis indicações (inclusive a de Filme), novamente sem sucesso. “Licorice...”, assim, dá a impressão de ser saudavelmente aquele filme em que o diretor disse a si mesmo: “Quer saber? Foda-se! Aceitem-me como eu sou!”. E deu muito certo. Descompromissado, o cineasta fez uma obra carregada de sentimentos, daquelas que ao mesmo tempo fazem emocionar terna e alegremente. É de encher o peito em uma gargalhada, mas também de soltar risos surpresos durante o decorrer por conta de seus diálogos e roteiro inteligentes. 

Gary e Alana: feitos um para o outro (mas será que
eles próprios sabem disso?)
Estão preservados elementos clássicos do estilo de Anderson: trilha sonora escolhida com esmero e paixão; ritmo de montagem que intercala agilidade com planos bem demorados, tributo a um de seus mestres, Martin Scorsese; planos-sequência realizados com bastante habilidade; o olhar especial para as musas, as quais invariavelmente dedica belos enquadramentos como faz desta vez com Alana; direção de atores bem encontrada entre o drama e a comédia; aparição de tipos exóticos impagáveis (Bradley Cooper, em uma ponta, arrasa fazendo o tresloucado playboy Jon Peters); mas principalmente, personagens que fascinam o espectador. Por que isso? Porque são, como sensivelmente fizeram Renoir, Carné ou Clair, pais do realismo poético francês ao qual o cinema de Anderson faz tributo, são capazes de construir personagens que refletem o interior humano equilibrando beleza e naturalidade. Os medos, as angústias, as aflições, os desejos, os amores. Alana e Gary, protagonistas a quem se torce para que fiquem juntos e parem com a infantilidade de se brigarem para fugirem do medo de não serem aceitos, são a tradução disso: gentes. Mas, claro: com o “filtro” mágico do cinema: não só o filtro da câmera, mas o do olhar.

Se não é o melhor entre todos da safra 2021/22, “Licorice...”, ao menos, é o que melhor cumpre um dos requisitos dos grandes filmes: o encerramento marcante. O cineasta conduz o espectador até o último segundo para, com sutileza, deixá-lo suspirando na poltrona com um sorriso no rosto – ou uma lágrima. Sabe aquele sabor de terminar de assistir “Nós que nos Amávamos Tanto”, “Pierrot le Fou” ou “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios”? É este o sentimento que fica com "Licorice...". Tudo bem: “Ataque...”, “O Beco...” e “Drive...” também terminam muito bem. Mas é tão mais impactante sentir uma ponta de "cinema de arte", assim, tão espontaneamente numa produção norte-americana, que o valor se duplica. Neste caso, o melhor que PT Anderson pode fazer é não ganhar prêmio nenhum mesmo. Será sinal de que continuará fazendo seu cinema tão original quanto encantador.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 15 de março de 2010

"O Segredo de Seus Olhos", de Juan José Campanella (2009)




Um envolvente misto de suspense, romance e policial, com deliciosas pitadas de humor e uma leve cutucada política, é um pouco do que pode-se dizer sobre "O Segredo de Seus Olhos", vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010.
A trama toda é a de um ex-funcionário de um tribunal que resolve escrever um romance sobre um crime que investigou há anos atrás e recorre às suas memórias para refazer a trajetória dos fatos, se deparar novamente com eles e, de certa forma, ter a chance de reescrever a história.
O roteiro bem elaborado com uma ótima condução da trama, as caracterizações muitíssimo bem construídas dos personagens, diálogos naturalíssimos e bem cotidianos, e as brilhantes atuações da trinca principal de atores, sobretudo do bêbado (hilário) Sandoval, são alguns dos grandes méritos desta produção argentina que não à toa alcançou o que alcançou.
Por incrível que possa parecer, minha curiosidade inicial pelo filme deu-se porque li sobre um plano-sequência longo que se passava dentro do estádio do Racing. Não era só pelo fato de ser num estádio de futebol, o que já era interessante para mim que sou um apaixonado, mas também porque adoro os clássicos planos-sequência como o do início de "A Marca da Maldade" do Welles, o de "Boogie-Nights" ou o d"O Jogador" do Altmann. Este, de "O Segredo de Seus Olhos" certamente pode-se incluir desde já entre os melhores da catagoria, vindo desde uma tomada aérea sobre o estádio, entrando no campo, indo pra arquibancada, explodindo num momento de gol entre a torcida, e culminando numa perseguição às correrias pelo interior e escadarias do estádio, até acabar dentro do campo rente ao gramado. Demais!
Vale pelo plano sequência mas vale por todo o resto. O interesse do filme não se resume a isso.




Cly Reis

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Hiromi – Jazz All Nights 2016 - Teatro do Bourbon Country – Porto Alegre/RS (29/09/2016)



A virtuose Hiromi, em um show espetacular em Porto Alegre.
(foto: divulgação/Teatro Bourbon Country)
Foi um show espetacular o da pianista japonesa Hiromi no Teatro do Bourbon Country,. Cercada de expectativa, pois é considerada uma virtuose no seu instrumento, Hiromi não deixou por menos. Ela começou a apresentação, que integra a programação Jazz All Nights 2016, fazendo um longo passeio pelas sonoridades do ragtime e do boogie-woogie até chegar ao tema "I Got Rhythm", dos irmãos Gershwin, construindo e desconstruindo a canção ao bel prazer de sua técnica apurada.
Alguém poderia imaginar que Hiromi jogaria pra torcida, fazendo pirotecnias pianísticas bem ao gosto do leigo. Não foi o que aconteceu! A japonesa passeia por inúmeros estilos e tem um approach diferenciado para cada música. A faixa-título do disco “Place To Be” tem todo o clima de lirismo apropriado de Keith Jarrett, Brad Mehldau e, em alguns momentos, chega a lembrar Bill Evans.
Outra influência no trabalho é de Chick Corea, com quem gravou um CD de duo de pianos. O interessante é que, mesmo com todas estas influências, o toque pianístico de Hiromi é totalmente pessoal e intransferível.

Esforçando-se para falar em português algumas frases, a pianista demonstrou também uma total empatia com o público. O concerto encerrou com a suíte em três movimentos "Viva Vegas" (também do álbum “Place To Be”) e que, em sua terceira parte, "The Gambler", permite à pianista imitar os sons de um cassino, com seu piano transformado em máquinas caça-níqueis e roletas. Como se não bastasse, Hiromi voltou ao palco no bis para interpretar uma peça que não estaria deslocada em qualquer disco mais recente de Keith Jarrett. Uma noite luminosa de música onde a plateia foi brindada com uma overdose de notas boas!



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

The Beach Boys - "Pet Sounds" (1966)

Os Sons de Estimação

 “ 'God Only Knows' é a música
que eu queria ter escrito.”
líder dos Beatles


A psichodelic era dos anos 60, sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John LennonPaul McCartneyJimmi HendrixSid BarretRay DaviesBrian JonesArthur LeeArnaldo BaptistaLou ReedRocky EriksonFrank Zappa e mais uma dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes, também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock. Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros aspectos.

“Pet Sounds”, diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian, um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.

E conseguiu.

“Pet Sounds” é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys. Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The Beach Boys' Christmas Album”, trabalho anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e lúdico do harpschord executa uma ciranda, que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês, a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravo repete o tempo três vezes até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock. Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda. Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e agudos.

Um dos principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais, guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim), Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais, órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos rufares.

Outro trunfo do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a voz de Love, que, limpa e sem overdub, desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na orquestração.

Por falar em orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: I’m waiting for the day when you can love again”, violinos e cellos, sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”, em dois. Estupendo.

A segunda especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão, reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.

Depois do tom médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que se estende, ambos marcados pelo tic-tac de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.

Para os apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música moderna como "Like a Rolling Stone""Bolero""A Day in the Life""Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros, igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam, criando um efeito onírico tal como um Cantus Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos e dissesse: “só Eu sei”.

“I Know There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes. Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”. Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que equilibra temple blocks, bateria e tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em termos de música pop: o electro-theremin, sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como, inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito, Deus e homem fossem a mesma matéria.

Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.

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Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.

Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde ZombiesPink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.



por Daniel Rodrigues
(Consultas técnicas e agradecimentos: Maria Beatriz Noll e Leocádia Costa)

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FAIXAS:
1. Wouldn't It Be Nice - 2:26 (Wilson, Asher, Mike Love)
2. You Still Believe in Me - 2:31
3. That’s Not Me - 2:30
4. Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder) - 2:53
5. I’m Waiting for the Day – 3:06
6. Let's Go Away for a While - 2:21
7. Sloop John B - 2:54
8. God Only Knows - 2:46
9. I Know There's an Answer - 3:10 (Wilson, Terry Sachen, Love)
10.  Here Today - 2:55
11. I Just Wasn't Made for These Times - 3:10
12. Pet Sounds - 2:23
13. Caroline, No - 2:54
14. Unreleased Backgrounds - :50
15. Hang on to Your Ego – 3:17
16. Trombone Dixie – 2:53

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